ANÁLISE ESTILÍSTICAS DE CANÇÕES DA MPB

Renata Melo Leon (UERJ)

INTRODUÇÃO

Minha intenção neste trabalho é colaborar com a poesia popular brasileira, com a nossa cultura, com a urgência de crítica e autocrítica das pessoas, em particular com os interessados na poesia, na música, nas nossas Letras.

Não há “donos da poesia”. Assim, pretendo desmitificar certa concepção elitista, infelizmente perdurando atualmente, de que poeta é Drummond, Cecília Meireles, Ferreira Gullar etc. Não há bom ou mau poeta. Há, simplesmente, o poeta. Se é poeta, é “bom”. A própria palavra, poeta, já identifica, já evidencia. É aquele que produz signos novos, por meio das diversas relações entre as palavras, frases e orações. É aquele que, subvertendo o sistema lingüístico, cria, recria, inventa, enriquecendo esse mesmo sistema por ele subvertido. É alguém que traz a novidade, que produz sob a chancela do novo, do inusitado da expressão.

E os poetas populares seguem esse caminho, criam através dessa produção. A poesia popular brasileira, por meio de sua linguagem, cumpre, de forma radical, a sua função simbólica. Os poetas populares dizem, com sua maneira específica, a sua mensagem. E, da mesma forma que outros poetas, com seu discurso próprio, peculiar, demonstram uma consciência poética e social. O poeta popular brasileiro sempre esteve e está atento ao tempo do seu tempo. Por isso mesmo, como poeta, anuncia todos os tempos. A poesia está além do tempo e do espaço. Permanece. Sempre.

A MPB investiga o real, permitindo um considerável acréscimo de conhecimento e de vivência por meio da palavra. A palavra, que é a arma do poeta, através do seu poder recriador, transfigurador, pensando o homem e o mundo, propondo, sempre, novos e promissores caminhos.

CONSTRUÇÃO

Amou daquela vez como se fosse a última

Amou daquela vez como se fosse o último

Amou daquela vez como se fosse máquina

Beijou sua mulher como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a única

Beijou sua mulher como se fosse lógico

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas

Ergueu no patamar quatro paredes flácidas

Sentou pra descansar como se fosse sábado

Sentou pra descansar como se fosse príncipe

Sentou pra descansar como se fosse pássaro

E flutuou no ar como se fosse pássaro

E flutuou no ar como se fosse sábado

E flutuou no ar como se fosse príncipe

E acabou no chão feito um pacote flácido

E acabou no chão feito um pacote tímido

E acabou no chão feito um pacote bêbado

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Morreu na contramão atrapalhando o público

Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Este poema, além de sua extraordinária construção artística, reflete uma face trágica do homem, visualizado num momento de vida (em “construção”). Mas, ao construir, o homem é destruído por todo um sistema desumano, por toda uma concepção egoísta. Passa por um processo de coisificação, desde a primeira estrofe:

Amou daquela vez como se fosse máquina

O que se confirma pelo resultado desse processo:

E acabou no chão feito um pacote flácido

E acabou no chão feito um pacote tímido

E acabou no chão feito um pacote bêbado

E é reafirmado na última estrofe, em que o ser humano é visto, diante da coletividade, de forma irônica, já que o sábado é um dia convencionalmente feito para o lazer. E esse homem, que nem nome tem, tão coisa que é, tão nada, não poderia ficar impune. Sua desgraça foi morrer num sábado, na contramão, atrapalhando a vida, os divertimentos. Contudo, esse anônimo atrapalhou a sociedade, perturbou o sistema, destruiu o instituído, desestabeleceu o estabelecido, desfez o que estava feito, desarmou o armado. Por isso mesmo, Construção “desencanta o encantado, desmitifica o mito, ordena o caótico”.

O poeta questiona insensatez da sociedade, seu desdém pelo próximo, seu desinteresse comunitário. E, ratificando a castração dos valores essenciais do homem, durante essa triste vida (“construção”), o amor é praticamente anulado, enquanto impossibilidade de concretização:

Amou daquela vez como se fosse a última

Amou daquela vez como se fosse o último

Chico atesta a desumanização do homem:

Amou daquela vez como se fosse máquina

O fim demonstra a anulação total. O resultado de tudo é a inutilidade:

Morreu/Morreu/Morreu

Chico Buarque mostra a indiferença, a opressão exercida sobre os mais humildes, redução, cada vez maior, da individualidade humana. Registra o homem esquecido, perdido em seu anonimato.

Por meio de grande intensidade rítmica, com o final dos versos em proparoxítonas e trissílabas (recurso raro em língua portuguesa), numa cadência coerente ao tema (a repetição de palavras e frases reflete a própria repetição rotineira da vida do anônimo), o texto articula os contrários, sem suprimi-los, dado característico da imagem poética.

A tensão entre humano (flácidas, flácido, tímido e bêbado) e não-humano (paredes, pacote) retrata a densidade poética e a visão social do autor.

O uso do pra não é só marca de oralidade mas faz-se necessário o uso do pra no sentido de manter a musicalidade, a rima.

O homem (“bêbado, “tímido” etc.) é coisificado (“paredes”, “pacote” etc.), ratificando a crítica política e social do texto.

A consciência social de Chico Buarque de Holanda em Construção, como em toda a sua obra, é evidente. Sabe o poeta que a poesia é o seu instrumento, o seu veículo de denúncia, de crítica, de representação de uma realidade desumana e injusta, pois é preciso que o homem não seja “máquina” nem “pacote”. Mas que signifique. Que também possa exercer sua liberdade. Assim deve ser visto pela sociedade. Chico aponta para uma estrutura social que não gostaria que existisse para uma coisificação do homem que não deve persistir. Em Construção, o sujeito é generalizado. O homem é visto, em relação à sociedade, de maneira trágica, oprimido, marcado pela inutilidade. Ele constrói, mas é destruído.

A BANDA

Estava à toa na vida

O meu amor me chamou

pra ver a banda passar

cantando coisas de amor

A minha gente sofrida

Despediu-se da dor

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor

O homem sério

Que contava dinheiro, parou

O faroleiro

Que contava vantagem, parou

A namorada que contava estrelas

Parou para ver, ouvir

E dar passagem

A moça triste

Que vivia calada, sorriu

A rosa triste

Que vivia fechada se abriu

E a meninada toda se assanhou

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor

O velho fraco

Se esqueceu do cansaço e pensou

Que ainda era moço

Pra sair no terraço

E cantou

A moça feia debruçou na janela

Pensando que a banda

Tocava pra ela

A marcha alegre

Se espalhou na avenida, insistiu

A lua cheia

Que vivia escondida, surgiu

E a cidade toda se enfeitou

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor

Mas para meu desencanto

O que era doce acabou

Tudo tomou seu lugar

Depois que a banda passou

E cada qual em seu canto

Em cada canto uma dor

Depois da banda passar

Cantando coisas de amor.

No poema, A Banda, Chico afirma dois dos caminhos por que tem percorrido a sua poesia: a certeza de que a poesia é uma das soluções para a crise do homem e da sociedade e a consciência de sua função social, como poeta.

A “banda” simboliza a própria poesia como razão maior do homem. Por causa da banda, cessa a ociosidade (“Estava à toa na vida”), levando o homem à participação, afastando-se da alienação. Através da poesia, conduzida pela união (“amor”), o ser humano vive, participa, é. Assim, o poeta, nos quatro primeiros versos, acena para a rejeição da ociosidade e a busca da integração.

A poesia (“banda”) é sinônimo de alegria, de vida. E propõe o amor, querendo a anulação da dor, do sofrimento, da tristeza:

A minha gente sofrida

Despediu-se da dor

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor

Reafirmando a cada verso a sua consciência poética e social, observa-se que a poesia de Chico se opõe à ganância, ao consumismo, à mentira, à alienação:

O homem sério

que contava dinheiro, parou

O faroleiro

Que contava vantagem, parou

A namorada que contava estrelas

Parou para ver, ouvir

E dar passagem

A poesia é o percurso. Deve ser o caminho de todos, de acordo com seu caráter universalizante. Poesia é satisfação, prazer, alegria, acima de tudo participação vital:

A moça triste

Que vivia calada, sorriu

E a meninada toda se assanhou

A arte, a música, a banda, tudo isso é força, vigor, capaz de transformar o procedimento do homem. Ela é uma forma de despertar, de fazer acordar. E também é beleza:

O velho fraco

Se esqueceu do cansaço e pensou

Que ainda era moço

Pra sair no terraço

E cantou

A moça feia debruçou na janela

Pensando que a banda

Tocava pra ela

A arte está no coletivo ou deve ser feita para o povo. Banda, poeta e povo se associam numa perfeita integração. Nesse sentido, é instrumento da verdade, trazendo consigo a luz, a claridade, o que significa conhecimento, entendimento. Assim, a luz da natureza (“lua cheia”) comunga dos mesmos ideais do poeta e da poesia:

A marcha alegre

Se espalhou na avenida, insistiu

A lua cheia

Que vivia escondida, surgiu

E a cidade toda se enfeitou

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor

O motivo maior da postura poética e social de Chico é a poesia (“banda”), conduzida por decisiva razão, que é sinônimo de poesia; o amor. Que é união, integração, formando a grande corrente da humanidade. Para um mundo melhor, menos egoísta, opressor e prepotente, é necessário que a “banda” continue a “passar”, com toda a sua força. É preciso que ela prossiga “cantando coisas de amor”.

A “banda” simboliza algo muito mais criativo que uma banda. Ela é poesia, participação, amor, vida. A “banda” une poeta e povo, natureza e poesia. Reúne velhos e moços, coisas e objetos, tudo isso num processo de recriação. Imagens como “A minha gente sofrida / despediu-se da dor” e “A rosa triste / que vivia fechada se abriu” e a renovação e atualização de “o que era doce acabou” confirmam a poeticidade de A Banda, sem deixar de lado a crítica social.

AMÉLIA

Eu nunca vi fazer tanta exigência

E nem fazer o que você me faz.

Você não sabe o que é consciência

Não vê que eu sou um pobre rapaz.

Você só pensa em luxo e riqueza

Tudo o que você vê você quer.

Ah, meu Deus, que saudade da Amélia

Aquilo sim é que era mulher.

Às vezes passava fome ao meu lado

E achava bonito não ter o que comer.

E quando me via contrariado

Dizia, meu filho, o que se há de fazer ?

Amélia não tinha a menor vaidade

Amélia que era mulher de verdade.

Amélia é, acima de tudo, um símbolo de verdade, liberdade e amor. Portanto, significa muito mais que uma mulher. Vai muito além. Por trás desse nome, Mário Lago constrói um mundo de fraternidade, autenticidade, configurando um universo de ideais, de anseios de humanidade e entendimento que, sem dúvida, são os ideais de Mário Lago.

Os seis primeiros versos focalizam o presente, o que se constata pelo emprego dos verbos: “faz”, “sabe”, “é”, “sou”, “pensa”. Mesmo o “vi”, do primeiro verso, tem o seu sentido voltado para o presente. Trata-se de um recurso muito usado na linguagem oral, aqui absorvido pela poesia. Entre outros aspectos, esse é um dado que garante o caráter popular de Amélia, samba que ocupa os espaços mais diversos na sociedade brasileira.

Esse presente se mostra com a rejeição do poeta ao “luxo” e à “riqueza”, ao supérfluo, ao não-essencial, assim como à ganância e à ambição:

Tudo o que você vê você quer

Mas Amélia vem através do passado como contraponto a todo o presente antes rejeitado:

Ah, meu Deus, que saudade da Amélia

A partir do aparecimento de “Amélia”, os verbos estão no passado: “era”, “passava”, “achava”, “via”, “dizia”, “era”. Contudo, num passado não-concretizado em definitivo, já que os verbos se apresentam no pretérito imperfeito do indicativo. Como símbolo de fraternidade e amor, opondo-se ao teor dos seis primeiros versos, “Amélia” é presentificada, numa evocação que se atualiza. Nesse sentido, faz de “Amélia” o seu ideal perene, colocando-o além do tempo e do espaço. “Amélia” não exprime um tempo delimitado, mas a razão de ser do poeta, seu motivo existencial e humano. “Amélia” é o que vale, o que significa, o que engrandece. Assim, antes de “Amélia”, o tempo sem “Amélia”, ou a vida sem “Amélia” é:

Ingratidão: “E nem fazer o que você me faz”

Inconsciência: “Você não sabe o que é consciência”

Aparência: “Você só pensa em luxo e riqueza”

Ambição: “Tudo o que você vê você quer”

Por outro lado, a vida com “Amélia” representa:

Autenticidade: “aquilo sim é que era mulher”

Inocência: “e achava bonito não ter o que comer”

Simplicidade: “Amélia não tinha a menor vaidade”

Verdade: “Amélia que era mulher de verdade”

“Amélia” é, também, povo, gente. É o protótipo de ideais que, conjugados, se destinam a todos, atingindo, portanto, evidente grau de universalidade. Nesse aspecto, o autor, consegue a perfeita união de conteúdo e expressão, de significado e significante, na medida em que “Amélia” é referida com palavras de expressões de realce, de uso constante na linguagem popular e oral:(“sim”, “e que”) (“que”):

Amélia sim é que era mulher

Amélia que era mulher de verdade

O poema apresenta uma linguagem simples, o que confirma o próprio ideal simbolizado em Amélia, além da naturalidade que acompanha todos os seus versos.

Mário Lago cria um espaço do qual tem saudade, talvez inexistente, em dias que vivemos, de atribulações e injustiças. Está presente, contudo, em seu sentimento, em seu pensamento, faz parte de sua verdade.

Amélia é uma lição de vida, de dignidade. Amélia deve ser lida / ouvida como um texto de reflexão. Permite pensar o homem, vivenciando-lhe uma conduta: a conduta de “Amélia”.

Bibliografia

HOLANDA, Chico Buarque de. 4ª capa de Canto Brasileiro. Paulo César Pinheiro. Rio de Janeiro: Cia. Bras. de Artes Gráficas, 1976.

PINHEIRO, Paulo César. Depoimento. In: DANTAS, José Maria de Souza. Mário Lago, Poeta de verdade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980. p. XV.

MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística, São Paulo: T. A. Queiroz, 1997.

 

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