O PROJETO DO LÉXICO DOS AUTOS DE QUERELLA
Expedito Eloísio Ximenes (UECE)
Emilia Maria Peixoto Farias (UFC)
Ednusia Pinto Carvalho (UFC)
APRESENTAÇÃO
Os Autos de Querella são documentos do poder judiciário, nos quais, estão registradas as queixas referentes a diferentes tipos de crimes. Para efeito desta pesquisa, serão consultados quatro livros do século XIX, compreendendo o período que vai de 1802 a 1832, da Capitania do Siará. Nosso trabalho tem como base a obra de Ximenes (2004), que apresenta a transcrição dos 67 documentos que compõem os quatro livros.
Os textos foram transcritos pelo autor seguindo o modelo de edição semidiplomática conservando, sempre que possível, as formas originais dos documentos, conforme as normas estabelecidas pelo PHPB, Para a História do Português do Brasil. Os documentos constituem rica fonte de informação a respeito da realidade das pequenas vilas e fazendas do Ceará da época, como também torna evidente a vida social, política, econômica, religiosa, educacional como, também, revela aspectos demográficos desse estado, no início do século XIX.
A escolha pelos Autos de Querella deve-se ao fato de serem narrativas longas revelando aspectos os mais variados do uso da língua. A estrutura dos autos, segundo Ximenes (op. cit.)
consta invariavelmente de um resumo no auto da folha, onde são destacados os nomes dos querelantes e dos querelados numa rápida apresentação destacando estado civil, cor e local onde moram. Em seguida, há uma referência à folha do livro de sumário, onde consta o relato das testemunhas. Abaixo, há uma introdução em que são destacados novamente os nomes dos envolvidos, a data da querela, onde ocorreu, o nome do juiz corregedor e o teor da querela com a narrativa dos fatos. No final, há o despacho e a distribuição do juiz e, em seguida, são arrolados os nomes das testemunhas. Quando o crime requer um exame de vistoria, este vem logo abaixo da relação das testemunhas. Segue a conclusão com o nome do escrivão, a assinatura do juiz e do querelante.
Ainda com o autor, “os textos registram os crimes sofridos pela população, principalmente, o povo mais humilde, destacando-se como vítimas mais iminentes as mulheres e os pequenos agricultores.” Através das narrativas, temos um retrato da realidade social do século XIX, que possibilita não só o conhecimento lingüístico, mas do funcionamento da sociedade como um todo.
Devemos também mencionar que a pesquisa lingüística histórica possibilita a edição e, conseqüente disponibilização de documentos que servirão de fonte de pesquisa com objetivos os mais variados. Em nosso estado, por exemplo, essa área da Lingüística ainda se encontra em fase germinal, cabendo a nós, curiosos por nossa língua e nossas tradições discursivas, documentar e publicar os fragmentos de um passado que traçou o nosso presente.
O GLOSSÁRIO
O Léxico dos Autos de Querella é resultado de um subprojeto do Projeto de Pesquisa TRADICE, Tradições Discursivas do Ceará, criado em 2004, na Universidade Federal do Ceará, no âmbito do Departamento de Letras Vernáculas. Nosso objetivo em organizarmos esse léxico é descrever os termos arrolados nos Autos, com vista à compreensão e ao registro ordenado dos termos pertencentes a esse gênero textual.
Como dito na introdução do referido projeto reconstruir tradições discursivas (TD) é, como afirma Kabatek (2004, p. 1), estabelecer ligações entre elementos historicamente relacionáveis, como
um laço entre atualizações e tradições textuais; qualquer relação que se possa estabelecer semioticamente entre dois enunciados, seja quanto ao próprio ato de fala, seja quanto à elementos referenciais, ou a certas características da forma textual ou a elementos lingüísticos empregados.
O objetivo maior da pesquisa é, de acordo com Biasi, coordenadora geral do projeto, “descrever algumas tradições discursivas que compuseram a memória cultural das comunidades do Ceará do século XIX, comparando-as com as práticas discursivas dos séculos XX e XXI neste Estado.” O TRADICE faz parte do Projeto Para a História do Português Brasileiro (PHPB), iniciado na USP, em 1997, mas que hoje abrange diferentes universidades do país como: UNESP, UNICAMP, UFBA, UFPE, UFPB, UFMG, UFRJ, UEL e UFSC. Com esta pesquisa, inserimos a Universidade Federal do Ceará e o Programa de Pós-Graduação em Lingüística no âmbito desses estudos em diacronia.
A TERMINOGRAFIA LINGÜÍSTICA -TEXTUAL
Para a elaboração do Léxico dos Autos de Querella, tomaremos como base os pressupostos teóricos da Terminografia Lingüístico-Textual, que considera segundo Krieger (2004:.333):
– os propósitos cognitivos e/ou pragmáticos da área temática, itens relacionados à especificidade do conhecimento produzido, caso típico das ciências, e ainda, quando for pertinente, o exame das determinações estabelecidas textualmente a exemplo do que ocorre com textos legais e normas jurídicas, técnicas, além de outras. É nesse âmbito que se identificam os objetivos motivadores da comunicação especializada; -as particularidades textuais articuladoras da comunicação especializada, englobando os aspectos relacionados às tipologias textuais que vão variar conforme se trate do gênero artigo científico, texto de lei, manuais de operação, entre tantas outras tipologias que veiculam conhecimento especializado.
A autora chama a atenção ainda para a investigação criteriosa da organização e finalidade dos diferentes universos de discurso, por trata-se de uma questão operacional, em particular “para o equacionamento da problemática da pertinência terminológica.Contudo acrescenta que
os postulados da Terminografia Lingüístico-Textual têm-se revelado operacionais, sobretudo, no plano de determinação do valor terminológico de uma unidade lexical. Mas, como o termo é uma unidade complexa, é também necessário o concurso de outros componentes e de distintos planos de análise para os estudá-lo melhor (op.cit, .p.334).
O acréscimo do paradigma lingüístico-textual nos Estudos Terminográficos propuseram um enorme avanço no processo de reconhecimento terminológico ao incluir como recurso metodológico para o reconhecimento do status terminológico de uma unidade lexical a investigação do contexto discursivo (Person, 1998: 35-38).Tal recurso possibilita observar também a presença de variação, sinonímia, supressão de sintagmas.
Tudo isso deve-se à inclusão da visão lingüística na Terminologia e na Terminografia. O resultado dessa mudança resultou em um fazer terminográfico de ordem descritiva que privilegia o exame dos termos em seus reais contextos discursivos, que leva em consideração aspectos como a variação terminológica e a sinonímia e assim, atende aos reais propósitos comunicativos dos usuários.
Nessa troca de paradigmas, em que o prescritivo dá lugar ao descritivo, investiga-se os textos especializados e conseqüentemente as unidades terminológicas in vivo modificando o que antes denominava-se estudos dos termos em textos e adotando agora os estudos dos textos que contém termos (Finatto, p. 352).
Nesse trabalho, entendemos o texto especializado como “habitat natural das Terminologias” conforme Krieger (2002 apud Finatto, op.cit. p. 347) e ainda segundo Hoffmann (1998: 77) “é o instrumento ou o resultado da atividade comunicativa sócio-produtiva especializada”. O autor comenta ainda que é válido considerar “o texto especializado não como produto dos efeitos das regularidades inerentes à linguagem, mas sim como a comunicação em uma situação profissional condicionada por fatores extralingüísticos e sociais” (op.cit., p. 82).
Nesse contexto é válido examinar o texto especializado e seu fatores condicionantes com o objetivo de caracterizar uma determinada linguagem especializada e sua referida terminologia e no caso do nosso projeto – a linguagem especializada dos Autos de Querella do século XIX do estado do Ceará, que pertence ao domínio do judiciário.
É válido ressaltar que nossa concepção de Linguagem especializada segue o conceito proposto por Hoffmann (1998: 51) ao afirmar que trata-se do “conjunto de todos os recursos lingüísticos que se utilizam em um âmbito de comunicação, delimitado pela especialidade, com o propósito de garantir compreensão entre as pessoas que trabalham nesse âmbito”.
METODOLOGIA
O Léxico dos Autos de Querella constará de três subdivisões: (01) das partes constitutivas, (02) dos sujeitos participantes e (03) dos crimes praticados. No glossário, haverá também uma seção destinada às unidades fraseológicas registradas nos documentos investigados.
Os verbetes estão organizados em ordem alfabética dentro de seus respectivos subdomínios e apresentam a seguinte microestrutura: termo + enunciado lexicográfico (informações gramaticais + paradigma definicional + paradigma pragmático + remissiva +/- nota enciclopédica).
No verbete constam as seguintes abreviaturas: v.g. – variante gráfica; L – livro; A – Auto; l – linha do Auto; p. – página do corpus editado; V – remete para o termo sinônimo mais recorrente e aquele que traz a definição; Sin. – para as formas sinonímicas. A notação (...) indica omissão de trechos do Auto, pois não acrescentam informações ao termo definido. Para a omissão dos sujeitos participantes arrolados nas querelas utilizamos a notação xxx. Nossa equipe achou, por bem, guardar a identidades desses sujeitos por entender ser essa informação facultativa para o glossário.
De acordo com Farias (2003), “o termo, como unidade terminológica, não pode ser percebido isoladamente, ao contrário, ele sempre fará parte de um conjunto de significados relacionados a um mesmo domínio especializado.” O termo é apresentado em sua forma lematizada, geralmente, substantivo no masculino singular. As informações gramaticais dão conta da classe gramatical, à qual o termo pertence, acrescidas do gênero e número da entrada.
As variantes gráficas das denominações são casos em que o termo ou um elemento da lexia complexa apresenta formas alternativas de grafia atestadas no corpus e apresentadas contextualmente também.
As definições apresentarão o termo genérico e os traços que particularizam o termo definido. A preocupação central será na conservação, sempre que possível, da mesma estrutura. A linguagem a ser usada será objetiva e escorreita para que o consulente perceba com clareza o sentido do termo procurado.
O paradigma pragmático traz o contexto ou contextos, nos quais os termos-entrada aparecem. Aqueles foram arrolados a partir de Ximenes (2004), em seu segundo volume que apresenta a coletânea de Autos investigadas, devidamente transcritos em edição semi-diplomática, como dito anteriormente. Seguindo o paradigma pragmático, encontraremos a fonte de onde foi/foram extraído(s) o(s) contexto(s).
As remissivas integrarão a microestrutura do verbete e para identificá-las utilizamos a notação V precedendo o termo sinonímico mais recorrente, em cujo verbete encontramos a definição. A sinonímia é marcada pela notação Sin. e antecede os termos participantes da rede de relações de sentido, seja por hiponínia, co-hiponímia ou hiperonínia.
As notas apresentarão informações de caráter enciclopédico a respeito do termo-entrada. Essas serão informações obtidas através de consulta a especialistas da área, mais precisamente, juristas, que nos ajudarão a estabelecer de forma mais clara os aspectos constitutivos do universo em discussão.
BIBLIOGRAFIA
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