PIRANDELLO
MACHO E FÊMEA NO TEATRO PIRANDELINO
Lívio Panizza (UERJ)
Introdução
A obra de Pirandello pode ser considerada como uma das experiências mais originais do novecentos, derivada da necessidade de uma lúcida análise da angústia e da neurose dos tempos modernos. Pirandelo, como “mártir e confessor”, da modernidade penetrou com sensibilidade, com consciência e com som de denúncia na alienação do homem de hoje. Pirandelo vive e representa esta crise do homem contemporâneo, nele está presente a consciência da condição do indivíduo e de sua amarga constatação da absurdidade da vida.
No caso italiano Svevo, Pirandelo e mais tarde Ungaretti e Montale serão os escritores que ao tomar consciência transferem a crise do homem do plano histórico para o plano existencial. Este fenômeno no contexto europeu aparece em várias frentes, na literatura com Musil, Kafka, Proust, Joyce, Stein, Dos Passos, Garcia Lorca, Fitzgerald, Hemingway, na pintura com Klee, Miro, Kandinski,.. na música com Schonberg, no cinema com Chaplin, no plano metafísico com a filosofia existencialista, no plano psicanalítico com Freud.
É a partir desse plano existencial que emergem da obra de Pirandelo os temas da relatividade da verdade, a incomunicabilidade do homem, a impossibilidade de conhecer a realidade, a máscara e o homem, a sobreposição do personagem-pessoa, o eterno fluir da realidade, a absurdidade do existir, a necessidade de recorrer ao mito como esfera a partir da qual se pode compor uma verdadeira estética da tragédia humana.
O percurso deste trabalho segue as relações conjugais e extra conjugais dos personagens, como: entre o macho e o marido, entre a fêmea e a esposa, entre o macho e a fêmea, entre o marido e a amante, entre a esposa e a prostituta, entre a mulher e a mãe, entre o pai e a mãe. Outros temas são destacados, como: o mito do macho: sua superioridade e solidão; o mito da maternidade como função inalienável da mulher; o “Sãojosepismo”
O teatro de Pirandello não é um teatro de amor, segundo o triângulo amoroso tradicional, onde as duas mulheres disputam o mesmo homem; aqui as duas disputam o direito de ter um filho com ele. É a luta da legítima esposa que não teve filhos contra a amante que teve tal bênção. As duas são rivais, mas unidas pela mesma ideologia da maternidade; a verdadeira desgraça da mulher não está em não ser amada, ou ser traída, em não ter prazer algum, mas em não ser mãe. Porém mesmo que a mãe e a prostituta sejam irmanadas pelo sentimento materno, as duas não podem conviver, coexistir; a mulher enquanto prostituta detentora de seu corpo, sedutora por seus encantos femininos, não pode conviver com a mãe, a única verdadeira mulher, a santa. O erotismo não pode conviver com a maternidade, o sexo profanador com o instinto materno. Essa superioridade matriarcal não só exclui a prostituta, mas também o macho, ela não necessita de um macho, mas de um “São José”.
O mito da paternidade se esgota na herança, o mito da maternidade no filho: os dois mitos estão unidos por uma materialidade cósmica, considerados como leis naturais.
O Teatro de Pirandello está repleto de mulheres delineadas sobre três modelos: mulher-mãe, mulher-amante, mulher-prostituta, nos três esquemas a mulher aparece como uma criatura generosa, despojada, disponível, pronta a servir o macho, não exige nada, nem mesmo o prazer do orgasmo. Este quadro tem algo da disponibilidade erótica da escrava, da exclusividade da prostituta privada e pessoal, da generosidade e da capacidade de sofrer da mãe.
Essas reflexões resultam da leitura de algumas peças do teatro pirandeliano compiladas em quatro volumes “Maschere Nude, editados pela Arnaldo Mondadori Ed.,1948
O macho Solitário
Começamos por analisar alguns textos onde transparece a superioridade do macho e sua solidão.
Il Gioco delle parti.(O Jogo das partes)
Resumo
Silia, esposa separada de Leone Gala, discute com Guido Venanzi, seu amante e amigo do marido, sobre o seu desconforto de mulher pelo fato de ser sempre vista e julgada pelo “espelho dos olhos dos outros” sentindo-se assim, como sufocada num cárcere. Esse sentimento de paralisia, de asfixia é provocado pelo marido traído que a faz viver esse pesadelo de impossibilidade da liberdade. Leone revela ao amigo que a sua concepção de vida está em antinomia com a de Silia, pois os limites com que nos deparamos são os da própria vida e não podem ser destruídos, como o matrimônio, “eu continua sendo o marido” sentenceia.
Leone com um raciocínio frio e calculista mostra a Guido como ele aprendeu a ficar sempre em pé e com humor até nas situações mais adversas.
Depois que o marido se retira, Silia arquiteta o homicídio; a ocasião aparece imediatamente, quando um grupo de jovens invade sua casa pensando ser a da vizinha prostituta Pepita. Diante das invectivas desaforadas dos jovens, ela exige do marido um gesto cavalheiresco – o duelo – para reparar sua honra. Leone recebe a notícia do duelo em sua casa; e sem titubear aceita imediatamente, estabelecendo as regras do pacto de sangue. Leone mostra-se como um domador em controlar suas emoções e até em recusar com leonina indiferença a proposta de Silia de passar talvez a última noite com ela. No dia do duelo chegam à casa de Leone, o Dr. Spiga, os padrinhos do duelo Guido e Barelli, como estivesse ainda dormindo foi acordado pelo empregado Filipo. Leone diz que como marido lhe cabe formalizar o desafio, mas quem deve enfrentar o duelo é Guido. Guido aceita e morre no duelo. Silia aterrorizada foge, e Leone impávido assiste o desfecho da trama.
Leone Gala é a mais completa encarnação do personagem que compreendeu qual é o jogo e como deve ser jogado, do calculista que realiza a poética do mascaramento e do desmascaramento dos fingimentos sociais e pessoais. Leone é um Killer que mata friamente com charme, poesia e tragicidade. É um anjo exterminador, está acima do sexo, não necessita mais da mulher, uma visita de meia hora diariamente é mais do que suficiente, nem de prostitutas sente necessidade.
Há um moralismo antigo de superioridade masculina no embate dramático com a mulher; Leone agarra a Silia e empurrando-a grita: “Mas se você é a minha vergonha” (p.387 – I), esta relação de crueldade manifesta-se nas palavras de Silia: “Pagaria com a minha vida, se alguém o matasse” (p.333 –I); “este homem me paralisou” (p.322-I). Mesmo depois da separação Leone não abre mão do domínio conjugal “Eu sou o marido” (p. 327-I) e consegue articular tão bem o duelo no qual o amante Guido o substitui e encontrará a morte. Leone já não representa o marido traído que finge muito bem de não saber, mas, joga as duas partes, traçando o modelo de superioridade e de independência masculina da grande inimiga.
Chega até a trabalhar na cozinha, golpeando assim no coração o reino da mulher, até recusa a empregada, Filipe, o empregado, a substitui perfeitamente, supera o ofício dos sexos, supera a antiga dependência do macho em relação à mulher-empregada. É o herói que recusa a mulher. Felipe aparece como seu duplo e cúmplice, “Ele poderia ser muito bem o meu diabo” (347-I), os dois aparecem na cozinha com o barrete do cozinheiro e o avental. Felipe, o fiel empregado, representa a história do ciúme masculino, ele assume com perfeição e propriedade a função da empregada ciumenta de seu patrão, o dono lhe pertence, reage nervosamente todas as vezes que se aproxima a sua grande inimiga, a portadora de loucura, de desgraça (p. 352-I). Filipe como alter-ego é radical, rigoroso, minucioso na observância do horário, não permite que os amigos o acordem para o duelo marcado às sete, porque o horário de acordar o patrão é às sete e meia. Leone calcula e mede com frieza os passos que deve dar para destruir a mulher que o traiu, e acabar com seu amante que não respeitou as convenções sociais do matrimônio e nem a relação mais pura da amizade, é frio e superior no momento em que o amante morre e a mulher foge; ele se senta tranqüilamente à mesa preparada com rito culinário por Felipe.
I Giganti della montagna (Os gigantes da montanha)
Resumo:
A ação deste mito acontece num tempo e espaço indeterminados. O Mago Crotone depois de ter abandonado tudo atribui para si uma missão filantrópica, a de fornecer alimento para os sonhos de seis habitantes de uma misteriosa vila Scalogna. O personagem Crotone é o apóstolo da justiça, e oferece mil e um segredos ou verdades. À Scalogna chegam os sobreviventes de uma companhia de arte: Ilse, a Condessa; Conte seu Marido, Diamante, a segunda atriz, Cromo, o caricaturista, Spizzi ,o jovem artista, o Sacerdote. Os habitantes tentam manter essa gente longe com sinistros efeitos de luz, mas Crotone tenta convencê-los para que recebam na vila os artistas perdidos. A Condessa Ilse chega carregada e exausta, o Conde tinha vendido tudo para tornar-se empresário da Companhia por capricho da mulher. Ilse está dominada por uma idéia fixa, encenar “A fábula do filho trocado” um drama que um poeta, suicida tinha escrito para ela. Durante a noite Crotone mostra aos hópedes os prodígios do lugar; Ilse recusa a proposta de Crotone de apresentar a peça para os habitantes de Scarogna, por se tratar de um mundo de ilusões, enquanto que a peça deve ser apresentada a homens para que guardem para sempre viva a lembrança do poeta morto. Crotone, com a intenção de livrar-se daquela mulher, lhe aconselha de apresentar o drama numa vila próxima, onde Gigantes festejavam um casamento. Mas estes não compreendendo a mensagem do drama, difícil demais para eles, investem contra os atores que fogem carregando sobre os ombros a primeira atriz Ilse com o corpo agonizante.
O Mago Crotone tudo abandonara, também as mulheres, quando a Condessa invade seu espaço, parece recebê-la com simpatia, mas estabelece-se logo uma rivalidade entre os dois, a rivalidade da arte, ele, um ilusionista, alimentador de sonhos, ela deve apresentar para homens a sua arte. A proposta de Crotone de apresentar sua peça na terra dos Gigantes nada mais é do que sua intenção homicida, deseja ver-se livre daquela mulher.
Ela afirma: “Sou atriz” (p.613-IV), ele ironicamente responde : “Então vamos, toque a trombeta, vamos ver se consegue juntar um pouco de gente” (p.609-IV). Ela, amante do poeta, recusou-se dividir com ele a cama, por isso ele se suicidou, e agora carrega a tarefa de apresentar a peça que ele escreveu para ela “Ela representa para si e para todos nós o câncer que nos devorou até os ossos” (p. 615-IV) e Crotone ainda mais sarcástico e incisivo: “Pobre obra! Como o poeta não teve seu amor, assim a obra não terá dos homens a glória” (6638-IV)
Crotone lhe propõe para recitar uma parte de mãe: “Experimente por um momento viver a sua função de mãe” (p. 656-IV), mas ela não teve filhos, não soube cumprir seu papel de esposa nem de amante. O marido lhe diz: “Eu a amo”, “Obrigado querido, responde, você tem a especialidade de pensar o que não deve” (p. 641-IV). Ela é a negação da mulher, não foi mãe, nem amante, portanto nem sua arte merece viver: “Entram os atores carregando o corpo de Ilse, despedaçado como aquele de um fantoche quebrado. Ilse agoniza e morre”. (p. 664-IV).
Liolá
Resumo:
A trama tem início na casa de campo da tia Croce Azzara, onde jovens campesinas limpam as amêndoas vigiadas pelo tio Simone Palumbo, um sexagenário muito rico. Simone sofre porque depois de quatro anos de casamento com Mila, em segundas núpcias, ainda não lhe deu um herdeiro. Esta falta de paternidade desencadeia uma série de intrigas e vinganças entre Tuzza, Liolá, e Mila. Tuzza, filha de Croce, e sobrinha de Simone, Liolá um jovem campesino, cantor e sedutor que já seduzira três moças do lugar com as quais teve três filhos, que ele mesmo educa; Mila, uma pobre órfã que o tio Simone casorau para ter dela o consolo da herança e é por ele desprezada por julgá-la estéril. Tuzza seduzida por Liolá engravidou, com a cumplicidade da mãe faz com que o tio Simone reconheça a paternidade do filho. Simone joga na cara de Mila que o filho que Tuzza espera é dele. Mila escapa das fúrias do marido e se refugia na casa da tia Gesa que mora ao lado do Liolá. Mila e Liolá sentem-se unidos por motivos de rancor e ódio contra Tuzza. Liolá oferece a Mila seus préstimos de amante para dar ao velho Simone um herdeior. Assim o tio Simone pode finalmente anunciar que sua mulher lhe deu o consolo de um filho legítimo. Simone gostaria que Liolá se casasse com Tuzza, mas este recusa o matrimônio, porém assume o filho para criá-lo com os outros três. Tuzza enlouquecida de ódio atira-se sobre Liolá com uma faca em mão ferindo-o levemente. A este ato vingativo Liolá responde com uma canção:” Tuzza, não sofra! Três mais um quatro e eu lhes ensino a cantar”.
Nesse drama a expropriação da maternidade é radical em dois casos:
a. no caso da esterilidade do casal, a culpada é sempre a mulher, é sobre ela que recai a infâmia da não procriação. Liolá diz a Mila, a esposa do velho Simeone:
Eis o seu azar! Seu marido cansou-se. Você sabia muito bem, casando-o esperava de você um filho. Você lhe deu este filho? Não. Espera hoje, espera amanhã; no final tanto disse, tanto fez, que encontrou uma outra que lhe dará o filho no seu lugar (p. 680 – IV)
É o próprio Simone que joga na cara de sua mulher a culpa sua desgraça: “Vá embora! Vá embora! Para que você serve? Para que a gente fale mal de mim! Vá embora, para sua casa!” (p. 644-III).
b. no comportamento de Liolá em relação às mulheres e aos filhos. Suas mulheres “todos o sabem, são moças de rua” (p. 661-III) para serem usadas e em seguida deixadas. Porém a luta de Liolá contra as mulheres vai além; Liolá tem por princípio segurar para si todos os filhos que as mulheres pariram, tirando assim da mulher a sua função natural e histórica de criar os filhos. Liolá subtrai à mulher sua função materna, Leone Gala subtrai o espaço da cozinha. Liolá tem três filhos e está pronto a assumir um quarto: “Três pobres filhos inocentes, sem mãe” (p. 6648-III); “o filho, pode ficar comigo” (p. 700-III) e todos, segundo Liolá, “educados na escola do papai” (p. 690-III).
Liolá é o homem-mãe, é a celebração do homem macho solitário, é a utopia da sociedade sem mãe, na qual o filhos são criados pelo pai, e a mãe é só de aluguel por nove meses.
O macho Liolá domina absoluto na função da educação, do afeto, do jogo. É emblemática a cena na qual Pirandelo descreve Liolá ao tomar seus filhos adormecidos para levá-los para casa:
Liolá se inclina sobre eles, faz o sinal da cruz na fronte do filho adormecido, depois assobia para despertá-lo; mas vendo que o menino não acorda, entoa a costumeira canção, batendo as mãos; então Titino se levanta; levantam-se também os outros irmãos e esfregando-se os olhos com as mãozinhas começam a pular, e assim todos pulando, acompanhados pelo pai que continua cantando e batendo as mãos, entram em casa (p. 678-III).
II A MÃE
Piacere d´onestá (Prazer de honestidade)
Resumo:
Ângelo Baldovino aceita a proposta para casar com Ágata engravidada pelo marquês Fábio Colli, casado. Ele deverá ser somente um marido para salvaguardar a respeitabilidade de Ágata e livrar o marquês de adultério e poder continuar a freqüentar a casa de Ágata. Baldovino é escolhido para tal tarefa por ser um homem fraco, falido, de pouca moral e disposto a fazer qualquer negócio por dinheiro.Casado, ele assume a nova função com respeito e honradez para lavar a honra de Ágata e oferecer o seu nome limpo ao menino que vai nascer; sua posição é firme “Casarei por fingimento uma mulher, mas seriamente a honestidade”. O seu comportamento digno deixa todos perplexos. Fábio revoltado cria uma sociedade e o convida para ser sócio, esperando que ele roube ou cometa erros com os quais possa desmascarar sua moralidade e assim livrar-se dele. Baldovino faz seu trabalho com dignidade e competência sendo exemplo para todos. Fábio vendo fracassadas suas tentativas o acusa de roubo. Baldovino desmascara Fábio na frente de Ágata, mas mesmo assim aceita ser acusado de roubo e abandona Ágata para não prejudicar o filho que nascerá, deixando o caminho aberto para Fábio.
Em “Piacere D´Onestà Pirandello traça o perfil feminino: aquele que conduz a mulher de amante à mãe: Baldovino diz: “Sem dúvida, com a maternidade, a amante tinha que morrer: - eis, você não é outra coisa além de mãe” (p. 451 –I). Baldovino sempre olhou e pensou em Ágata em termos de mãe “... para salvar, nestas condições, a minha dignidade, será suficiente ver na mulher que terá meu sobrenome – uma mãe” (p. 414-I). “A mãe é uma construção irreduzível” (p. 410-I); e a igreja, na voz de seu pastor, confirma a tradicional posição que o filho pertence à mãe” (p. 432-I). Baldovino continua afirmando a sua função de serviço à grande mãe: “... conceber minhas relações com ela através da criatura que virá – isto é, através a função que terei que exercer: cândida, nobilíssima função, tudo compreendido na inocência de quem vai nascer” (p. 414-I).
Neste ponto nos encontramos frente a um homem-Baldovino que cumpre as funções de São José: “... o honesto marido de uma mulher, que não pode ser sua mulher; o honesto pai de uma criança que não pode ser seu filho( p. 415-I), e frente a Ágata que se eleva de amante à mulher, de mulher à mãe, de mãe à Virgem.
Madalena..., carregando nos braços o recém-nascido num port-ènfant riquíssimo, coberto por um véu celestial. Todos o rodeiam, com exclamações, saudações, enquanto a senhora Madalena levanta cuidadosamente o véu para mostrar o recém nascido (p. 440-I)
Sintomática é a expressão “o véu celestial”, ou seja, o dom do céu, a beatitude na qual se encontra envolto o nascido de uma “Virgem” e protegido por um “São José”.
Ágata procura uma figura de “São José”; por isso prefere Baldovino a Fábio, o pai de seu filho; Baldovino entrou em casa como um empregado, por dinheiro, não teve relações sexuais com ela, não pode ter o orgulho e o domínio de um homem que se deitou com ela submetendo-a e possuindo-a. Baldovino é o fiel intérprete do poder matriarcal, é mais idôneo para cumprir a função de São José, enquanto o amante Fábio, pai do filho, é sepultado ao nascer o filho. “Os filhos pertencem só à mãe”, diz Ágata, pois o germe fecundador pode ser tirado também de um bruto, resultado de um estupro, para ela o amor de mãe pelo filho lavará toda imundícia, santificará o recém nascido em seus braços.
Nesta comédia é mais uma vez destacado o jogo de Pirandelo emao opor um macho ao outro, Baldovino será o seu escudo para defendê-la das contínuas invectivas de Fábio.
Innesto (Enxerto)
Resumo:
Laura está casada há sete anos com Giorgio Banti, este estéril está impossibilitado de dar um filho a Laura. Esta por vários dias seguidos sai cedo de casa para pintar. Não tendo voltado no horário costumeiro para casa é procurada e encontrada desmaiada depois de ter sido violentada, estuprada e engravidada por um bruto. Banti depois de saber que está grávida lhe aconselha que faça o aborto, mas Laura tenta convencê-lo de aceitá-lo como filho. Diante da recusa do marido, Laura o abandona, renunciando ao nome de casada, para o marido não carregue a desonra de um filho que não é seu.
Pirandelo nesta peça nos reporta ao mito da “Grande Mãe” que não pode renunciar à sua função primordial de ser procriadora. Sendo o marido estéril, a desgraça da não procriação recai sobre a mulher, ou ela carrega o estigma da esterilidade por toda a vida ou busca uma forma de realizar sua missão: ser mãe.
O desgaste e a destruição do casal acontece justamente na falta dos filhos. Francesca, a mãe de Laura diz: “Você sabe qual é o verdadeiro mal? Faltam os filhos” (p. 427-II); “ você não entende nada! A mulher, minha querida, se depois de tantos anos não tem filhos se desgasta! Se desgastam os dois. E mais ainda o homem que perde a idéia de ver na própria mulher a mãe de seu filhos” (p. 429-II).
A crise pela falta dos filhos está arraigada numa sociedade ancestral, porque está em jogo a virilidade do marido e a continuidade dos bens da família pela herança. Banti rejeita a idéia de ter um filho que não seja seu, ainda mais que este filho é fruto de um bruto e de uma leviandade de Laura. A mãe como a irmã acusam Laura pela leviandade:
Laura se procurou esta ocasião, imagine sair de casa às seis, sozinha, num jardim deserto, a violação e o estupro ela os procurou, porque desejou consciente ou inconscientemente ser violentada. Como o marido pode aceitar tal situação? (p. 426-II).
Laura procura convencer a mãe e o marido que foi um ato de amor: “... nesta minha pobre carne surrada, mãe, devia haver amor. E para quem? Só podia ser para ele, para o meu marido” (p. 464-II), para Giorgio diz: “Eu amei, quase morri por amor por você, fui toda sua como nenhuma outra mulher, você o sabe, você deve ter sentido que eu era toda para você” (p. 474-II).
Frente à intransigência e resistência do marido, está determinada a ter o filho para si; entre o filho e o marido ela fica com o filho: “Não sou mais tua mulher! Vamos mãe para casa!” Giorgio: “É fácil ir embora!”. Laura: “O que eu carrego de seu?”, Giorgio: “O meu nome”. Laura: “Não se preocupe! Vamos mãe” (p. 476-II).
Laura renuncia ao marido e ao seu nome, não tem mais nada dele, este homem só foi capaz de dar-lhe o nome; foi incapaz de cumprir o papel que o bruto realizou, como também foi incapaz de engravidar sua amante.
Giorgio está derrotado, terá fôlego unicamente para reconhecer sua derrota e Laura triunfalmente grita: “O meu amor venceu! O meu amor venceu” (p. 477-II).
Parece que nunca Pirandello tenha infligido tamanha humilhação ao macho, aqui o “sanjusepismo” não é assumido por Giorgio, mas sai derrotado, violentado em seus princípios, em seus sentimentos genuínos e instintivos, por uma mulher que enfrentando tudo e todos só quis cumprir sua missão: ser mãe.
III MÃE - AMANTE – PROSTITUTA
L´Uomo , la Bestia e la Virtù (O homem, a besta, a virtude)
Resumo:
A peça propõe um caso grotesco no qual o Professor Paolino (o homem), professor honesto e respeitável, depois de engravidar a virtuosa senhora Perella ( virtude) durante uma longa ausência do marido capitão do exército ( a besta), obriga este último ao voltar para casa cumprir seus deveres conjugais; para facilitar sua volta lhe serve uma torta preparada com afrodisíacos.
Nesta farsa-trágica Pirandello introduz uma situação não tão comum na sua dramaturgia de amante e de mãe ao mesmo tempo. Ágata no “Piacere d`onestà” nega a função de amante para assumir seu papel de mãe. A figura de Perella, em “L´uomo, la bestia, la virtù” permanece por todo o tempo amante e mãe: amante do marido, pois este, longe de sua casa, tinha constituído outra família, e amante do professor; e duas vezes mãe, de Nonò, filho legítimo de seu marido, e mãe do filho do professor que carrega no ventre.
Pirandelo aproxima neste texto a santidade da mãe e a torpeza do sexo. Paolino enquanto maquia Perella para que seduza o marido e assim não descubra que ela está grávida, lhe diz :“ ...Ele a deseja como mãe, você dará a ele esta máscara, à sua bestialidade. Debaixo desta máscara está você que suspira por mim e por você, querida. Aí está todo nosso amor” (p. 531)
I). Assim no final o homem faz-se besta, e a besta homem, como a virtude não permanece igual a si mesma, mas oscila entre a mediocridade e as frustrações de uma mulher que é muito mais objeto que sujeito, faz o jogo das partes, ora de mãe, ora de amante, ora de prostituta.
O binômio mãe-amante vem aqui acrescido de um terceiro elemento: a prostituta, mãe-amante-puta. Esta conjugação desses três personagens no teatro de Pirandello é bastante estranho, porque o que nele predomina é o mito da maternidade e o mito da Grande Santa Mãe .
Tutto per Bene (Tudo pelo bem)
Resumo:
A senhora Barbetti, viúva de Bernardo Agliani e de Clarindo, mãe de Silvia, chega inesperadamente para o casamento da neta Palma. Silvia casara com Martino Lori, mas teve a filha com o Senador Saldo Manfroni. Silvia falecera poucos anos após o nascimento da filha Palma., Martino Lori, mesmo sem ter exercido os cuidados de pai, nunca soubera que Palma não fosse sua filha. Salvo freqüentava a casa de Martino dispensando todo tipo de cuidado a Palma, e também conseguira arranjar um rico casamento com o Marquês Flavio Gualdi. Durante todos estes anos Martino ia todos os dias ao cemitério chorar a sua esposa, motivo de deboche por muitos que conheciam o passado de Silvia. Dias após o casamento, Martino visita Palma na sua nova casa. Encontra o senador e fala sobre uns papeis que o Bernardo Agliani deixara na casa da filha Silvia. O senador retirar-se da sala ficando Martino sozinho sentado numa poltrona; Palma entra na sala e inadvertidamente chama "Pai". Martino vira-se estupefacto pois nunca fora chamado de pai por Palma, esta fica surpresa, pois pensava que fosse Salvo. Martino ao notar o espanto de Palma quer saber da verdade, Palma lhe revela o que todos, há dezoito anos, já sabiam. Martino espera a volta do Senador Salvo para desmascará-lo diante de todos, de ter sido amante de sua mulher e de ter roubado os papeis de Bernardo para publicar um livro.
Nesta peça temos uma sucessão de mulheres malvadas, a avó é o primeiro anel da desgraça: abandonara o primeiro marido para ter um filho com outro, sua filha Silvia traiu o marido desde o primeiro ano de casamento, teve uma filha do amante e morreu sem revelar nada ao marido, a filha Palma, nascida do adultério, casou-se com um nobre por puro interesse e ambição aristocrática sem amá-lo.
Aqui o mito da maternidade é pintado em tons acres, "putanescos". Como vimos em Ágata, a maternidade absolve os pecados do sexo, eleva a amante à condição de mãe, mas nesse caso Silvia foi duplamente amante; primeiro amante do Senador, e depois do adultério, amante de seu marido Martino; ela ofendeu vergonhosamente seu marido e não teve coragem de confessar-lhe que a filha era do amante Salvo Manfroni e permitiu que somente ele não soubesse que Palma não era sua filha, quando a mesma filha sabia que ele não era seu pai.
Martino dirigindo-se à Palma, : "Ele lhe disse que você é sua filha?", "É que o senhor sabe tudo", respondeu Palma. (p.316-II)
Para Silvia a maternidade não foi desejada, não foi uma libertação, uma redenção, mas uma punição, um castigo. O próprio Martino confessa isso, dirigindo-se ao seu rival, depois de ter descoberto tudo:
O odeio, o odeio,... odeio também o fruto de seu amor; ela não desejava ser mãe, eu o sei. Foi mais minha amante do que a mãe dessa aí. E eu era feliz ... eu acreditava que ela fosse minha filha, fruto de nossa reconciliação (p. 332-II).
Silvia recusa a maternidade, a filha foi fruto de um pecado que não pode ser perdoado, na função de amante e de prostituta. Martino confirma isso: "... ela se apaixonou imediatamente dele e casou comigo" (p. 318-II). Foi amante de Salvo Manfredi, rejeitada por este, para vingar-se volta ao marido, traiu o marido com o amante, e traiu o amante com o marido. Silvia em vez de resgatar-se, torna-se amante do marido: "Era minha, era minha, somente minha... por três anos somente minha como nenhuma outra mulher foi de um homem " (p. 318-II). Essa convicção de Martino não esmoreceu nem depois da morte de Silvia, pois por quinze anos vai diariamente ao cemitério e nunca mais conheceu outra mulher: "Por isso eu permaneci assim" (p. 318-II).
Conclusão
O teatro de Pirandello não possui as características de um teatro lírico-amoroso. A relação amorosa parece fadada a ter uma só saída, ou predomínio do macho ou da fêmea, não há harmonia, mas uma contínua tensão, o equilíbrio se dá pela eliminação de um dos dois, quase sempre da mulher. Para Pirandelo o amor é sempre um cenário trágico, de conflito de sexos. Quase todas as mulheres que aparecem no teatro pirandeliano casam-se por interesse, por cálculos, por conveniência, não por amor. Entram submissas e obedientes na casa do marido, querem realizar o seu desejo natural, cumprir a função de ser mãe, pouco importa se são ou não amadas, se alcançam o não o prazer. Muitas das mulheres que não chegam a realizar-se na maternidade são condenadas à impossibilidade de amar, à frigidez sexual e a uma profunda solidão, execradas publicamente. Pirandelo parece punir a crise da maternidade, substituindo-a pela elevação da paternidade, onde o pai passa a cumprir um duplo papel: de pai e de mãe.
Esse mundo conjugal fechado, por vezes trágico, insere-se na mentalidade pirandeliana do teatro. O teatro não é algo sobre a vida, náo é representativo mas é arte em si mesmo, é vida, é a vida mis en scene. O esfacelamento do teatro, retrata não de forma diferente a derrocada de uma sociedade hipócrita, o martírio interior, o relativismo das convenções, a multiplicidade de formas de considerar a vida. A vida tem que ser vivida com humorismo porém, é um humor amargo, sádico, irônico, que provoca o riso ferindo o coração.
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