ARTE DA PALAVRA E DO DESENHO
NA APRENDIZAGEM DA
LÍNGUA

Maria Suzett Biembengut Santade
(FIMI, FMPFM-Mogi Guaçu/SP e UERJ)

 

Apresentação

A criança, por natureza, apresenta o viver imaginativo-criativo espontaneamente. Ela, interativamente, está sempre pesquisando todas as coisas no seu conviver. E mais, sua imaginação ultrapassa os limites da imagem, levando-a conceber e criar objetos que simbolizam ou lhe possam valer alguma representação. Uma roda metaforiza-se a ela como um carro; e assim, uma boneca, uma criança; um cabo de vassoura, um cavalo. Nada há o que não lhe inspire e estimule a criatividade. A criatividade está em todo o seu viver e agir.

Segundo Ostrower (1986) ,

A criatividade se manifesta em todo seu fazer solto, difuso, espontâneo, imaginativo, no brincar, no sonhar, no associar, no simbolizar, no fingir da realidade e no fundo não é senão o real. A criança age impulsivamente, espontaneamente para ver o que acontece. Criar é viver, para a criança.

Isso significa que criar, parte do processo vital, contribui para a ampliação de conhecimento e consciência da criança. E a criação de símbolo ou objeto não deixa de ser um componente importante para isso.

Essa criatividade, contudo, tende a diminuir ou obscurecer ao longo da jornada escolar. A educação escolar com conteúdos herméticos e processos tradicionais de ensino pouco tem oportunizado à criança a desenvolver seu talento criativo. Na educação escolar há uma existência submissa que contribui para a destituição de idéias. As pessoas, em seu meio, aprendem criativamente. No entanto, na educação escolar, na maioria das vezes, ignora-se a criatividade.

Como a imaginação e a criatividade são inerentes à criança, cabe à escola propiciar condições para que esse talento não se iniba ao longo de sua vida, mas sim, que floresça o conhecimento e a habilidade em aplicá-lo em benefício da natureza.

Gardner (1997) defende que as artes manuais contribuem para o desenvolvimento da criatividade, principalmente, quando a criança é levada a imaginar os meios a executar. Sua criatividade emerge, por exemplo, ao buscar transformar refugos em objetos úteis ou ornamentais. As artes manuais requerem imaginação ¾ paradar existência a alguma coisa’. Ao praticar desenhos, a criança assinala sua imaginação. Cada traço, cada forma, cada cor impressos tendem a revelar como se associam suas idéias.

Com o pretexto de evitar o rompimento desse talento que muitas vezes parece nato, conduzimos um trabalho com crianças das séries intermediárias do Ensino Fundamental, aliando os tópicos da gramática à arte do desenho. Esse tipo de trabalho, na denominação de D’Ambrosio, recebe o nome de Etnomatemática. Valendo-nos da observação dos elementos que compõem o meio circundante e da orientação de técnicas de desenho, levamos a cada criança a aprender conceitos de gramática por meio de desenhos espontâneos, aguçar o senso estético e perceptivo, valorizar a arte da linguagem e desenvolver o talento criativo. Vejamos as palavras de D’Ambrosio (1999) referente a nosso trabalho:

O princípio que Silvanus P. Thompson defende é uma pedagogia da desmistificação, que muitos chamam de ingênua. Não se impede uma pessoa que não sabe fazer um relógio de usá-lo. Assim como manejar uma calculadora não exige que se faça o que calculadora faz.

É interessante que Silvanus Thompson faz um paralelo com o ensino da gramática. Diz que a gramática se elabora sobre o ato de falar.

Com motivação e objetivos completamente diferentes, Maria Suzett Biembengut propõe um estudo de gramática associado com a oralidade dos alunos. Da linguagem espontânea, fazendo uso de desenhos e cores, ela leva o aluno a reconhecer a gramaticalidade da língua. Esse é um enfoque ao ensino da linguagem absolutamente afim com o a Etnomatemática. De fato, ela incorpora no estudo da redação a codificação matemática. Ao descrever através de desenho a sua pessoa e a sua casa, a criança toma consciência dos numerais e da sua importância na vida do homem como por exemplo: endereço, dinheiro, medida, etc. (p. 35). Esse é um exemplo da prática da Literacia.

Familiarizar o aprendiz, reforçar sua auto-estima, criar confiança nas suas habilidades, pode ser um excelente instrumento pedagógico. Essa é a proposta de Carl Rogers, infelizmente pouco conhecida. Na mesma direção vai a proposta da Inteligência Emocional, de Daniel Goleman. Muitos matemáticos dizem "com matemática é diferente". Essa não é a posição de Hassler Whitney que, como muitos outros, procuraram trabalhar sobre o emocional da criança, estimulando a auto-confiança e a criatividade na Educação Matemática

Nesses termos, objetivamos com a pesquisa conhecer, entender e explicar como cada criança das séries intermediárias percebe o meio que a circunda e explicita ¾ representa a vida cotidiana usando conceitos de gramática ilustrada.

Neste texto, apresentamos a síntese: do encaminhamento da pesquisa, das atividades do material de apoio didático que elaboramos para professores desenvolverem o trabalho com crianças e considerações sobre os resultados da pesquisa.

 

Encaminhamentos para a pesquisa

Por considerar que a criatividade se aguça quando a pessoa realiza a combinação de elementos existentes, constituindo, assim, algo novo, elaboramos, preliminarmente, um material de apoio didático fazendo uso de desenhos na ilustração das bases lingüísticas da gramática para ser desenvolvido com crianças das séries intermediárias do Ensino Fundamental.

A gramática ilustrada estabelece a classificação das palavras e suas funções, enfatizando os usos lingüísticos de oralidade, escrita, leitura e reflexão ou glissoreflexão. Dada uma figura (menor parte de uma forma) e aplicando uma ou mais propriedades de desenho, obtemos uma reflexão de linguagem. Com base nisto, verificamos a possibilidade de buscar uma isomorfia entre o desenhar e o escrever, conforme pôde demonstrar a tese que proporcionou o letramento e a produção de pequenas narrativas a uma turma de alunos em defasagem idade/série que não conseguiam adquirir a língua escrita pelos métodos tradicionais: do verbal para o verbal (cf. Simões, 2003). A autora demonstrou a possibilidade de aquisição das formas da língua como se fossem desenhos, comparando-as com os desenhos utilizados nas figuras de livros-sem-legenda.

Na língua, consideramos quatro tipos de classificação gramatical:

Ø   A fonologia/fonética, na qual a fala apresenta-se classificada por fonemas e sua classificação, dentro de uma faixa limitada por regras sobre a sílaba, sua emissão e articulação conveniente (Ortoepia) , localização correta da sílaba tônica (Prosódia);

Ø   A morfologia, na qual a palavra ocorre dentro de problemas lexicais como estrutura, formação e sentido das palavras e, ainda, ocupa-se de problemas gramaticais como a classificação de palavras variáveis e invariáveis;

Ø   A sintaxe, na qual a função das palavras é colocada em termos oracionais paradigmáticos e sintagmáticos e, também, é tratada no condicionamento frasal das palavras, de sua ordenação e conformação flexional;

Ø   A semântica, na qual as figuras de estilo são colocadas em excertos recortados da linguagem de cunho literário.

Valendo-nos desses tipos de classificação gramatical, elaboramos um material de apoio didático e procuramos nos ater em três focos assim denominados: estímulo à observação e interesse, aprimoramento do conhecimento e associação de idéiascriatividade.

Para estimular a observação e aguçar o interesse foram promovidas atividades que envolvessem a criança ao contato com a gramática (sua beleza, seu encanto, sua harmonia) e com as artes que ilustram o meio e a corporalidade do sujeito. O aprimoramento do conhecimento baseou-se na apresentação, na justificativa, enfim, no ensinar às crianças sobre esses elementos constituintes da gramática e das artes que fazem parte delas. E, a associação de idéiascriatividade – foi o momento de levá-las a representarem por meio de desenhos ou elaboração de objetos os elementos que observavam e se interessavam.

Uma vez elaborado o material, buscamos aplicá-lo dentro de nossas aulas para, nesse momento, nos dar informação durante o processo. Embora o material tenha sido divulgado a alguns professores, esses ainda preferiram o livro didático com exercícios preenchidos no “livro do professor”, acreditando nesse livro como material didático único a ser utilizado para ensinar o processo da língua.

Dessa forma, participaram dessa pesquisa cerca de 80 crianças de uma Escola Pública, no ano de 1997. Vale destacar que o material didático serviu apenas de guia na disciplina de Língua Portuguesa para ensinar os processos da língua de forma lúdica e leve e, ao mesmo tempo, estimular a arte de observar, respeitar, criar. A forma e a criatividade em conduzir as atividades com as crianças foram as próprias de cada uma delas.

 

Síntese do Material Didático

O material de apoio didático compõe-se de três etapas: Aspectos da fonologia, da morfologia das palavras variáveis, da sintaxe na aplicação dos termos essenciais da oração. Cada atividade, desenvolvida por bimestre em um período de dois semestres, duas vezes por semana, foi apresentada às crianças em linguagem simples de forma a permitir que entendessem a proposta. Testemunha disso são os resultados.

Para efeito de ilustração, a seguir, apresentamos algumas atividades de cada uma das três etapas que compõe o material didático. A numeração das atividades a seguir como as etapas não correspondem à seqüência e à forma que estão no material. Isso porque o trabalho com crianças requer acurado detalhamento e orientação. Seguem as descrições de algumas atividades:

 

Atividade 01

Apresentamos um quadro com o corpo e partes do corpo, em especial, da cabeça em corte sagital na apresentação dos órgãos da cavidade bucal e todo o diafragma respiratório. Mostramos também a importância dos elementos da comunicação e funções da linguagem segundo os ensinamentos de Roman Jakobson. (Fig. 1) [1]

Vamos, em seguida, colocando a cavidade bucal no corte sagital, apresentando cada tipo de fonema quanto ao ponto de articulação, além do modo de articulação, para as consoantes e quanto à zona de articulação para as vogais. Há, nesse mesmo momento, a apresentação da oralidade e nasalidade dos fonemas segundo o movimento da úvula. Apresentamos a importância dos órgãos do aparelho respiratório e parte do aparelho digestivo na produção da fala. (Fig. 2)

A seguir, marcamos alguns pontos sobre a produção dos fonemas na explicação dos dígrafos, encontros consonantais, encontros vocálicos na explicação das regras convencionais da ortografia. (Fig. 3)

Estendemos ao apresentarmos os fonemas vocálicos anteriores, central e posteriores a possibilidade de trabalhar com textos de cunho literário e provocarmos por meio desses fonemas a construção poética, mostrando à criança a expressão na produção dos fonemas de fundo e os de frente de boca. Aqui mostramos à criança a expressão do rosto na amostragem de leitura de palavras com esses fonemas demonstrando, assim, a expressão alegre e triste. (Fig. 4)

 

Atividade 02

Tomamos uma folha de papel na forma ofício, desenhamos um quadrado de 8cm. Depois cada criança passa essa folha ao colega que rabisca em linha contínua dentro do quadrado e, em seguida, devolve a folha a mesma criança que achará, nesses rabiscos, figuras. Depois, essa criança colore as figuras encontradas e, em meio da reflexão de encontrar imagens concretas, vai refletindo para escrever um texto redacional. (Fig. 5)

Também utilizamos o temaMinha Casapara a criança escrever sobre ela após fazer uma planta desta. A liberdade aqui é que a criança desenha a casa e o itinerário que faz da sua casa à escola. Os desenhos são construídos de acordo com a experiência da criança e a noção de espaço que ela tem disso. (Fig. 6)

q               Antes dessas atividades, as crianças do Ensino Fundamental observaram diversos focos gramaticais que compõem o meio, e assim, elas elaboram desenhos sobre fatos do cotidiano, para o estímulo ao pensamento lógico representado pelas normas da escrita ¾ à noção de espaço e à de tempo ¾ descrição e narração. Na medida em que cada criança foi elaborando sua gramaticalidade ilustrativa, desenvolveram-se os conceitos de textualidade (coesão e coerência) e de aplicação lingüística (pontuação; acentuação; notações lexicais, ortografia e morfossintaxe; e, relação de sentidos das palavras na textualização) sem qualquer formalidade, mas apenas a idéia. Vale ressaltar que cada criança criou sua metodologia e pode observar a validade dos conceitos da língua, a partir do que ela mesma pode elaborar.

 

Atividade 03

Procuramos, novamente, a ilustração dos diagramas-árvore na aplicação da sintaxe, e, assim, cada criança passa a criar frases, orações e pequenos parágrafos para a ilustração dos elementos constituintes da oração. Usamos as noções básicas do lingüista Noam Chomsky. (Fig. 7)

 

Pontos de registro

Conforme expusemos, esse trabalho visava, primordialmente, aguçar o senso criativo das crianças no âmbito escolar por meio de atividades didáticas que as levassem a observar as bases gramaticais através da ilustração criadas por elas, e ainda, expressá-las, desenhando.

Assim, em cada atividade, procuramos estimular a observação e o interesse, isto é, estimular a percepção das crianças. Afinal, cada sensação ou percepção, que temos do meio, faz gerar em nossa mente imaginação e idéias, que a partir da compreensão e do entendimento, podem transformar-se em conhecimento. Conhecimento que nos permite formar imagens, conceitos; criar objetos; dar a forma, a cor, o sentido ao mundo em que vivemos.

Embora a percepção não seja a fonte única do conhecimento, sem dúvida, é essencial para a primeira descrição do meio que nos cerca, permitindo a mente decodificá-la e efetuar representações. Desta forma, uma vez estimulada a percepção e a compreensão de cada criança nos aspectos lingüísticos que lhe circundam, procuramos promover atividades que permitissem a ela ultrapassar imagens apreendidas, levando-a conceber outras imagens, delinear símbolos, aguçar o senso imaginativo e criativo, ou seja, aprimorando o conhecimento e estimulando a associação de idéias ¾ criatividade.

Apesar da ausência de análise mais acurada sobre “o grau de criatividade” das crianças, se é que podemos afirmar que a criatividade pode ser classificada em graus ou níveis, os resultados apresentados pelas 80 crianças são simplesmente animadores para a Educação Básica.

Vale destacar que:

j  as crianças participantes foram de Escola Pública, muitas vezes, carentes de materiais, espaços e entendimentos em relação a uma “novaproposta de ensino;

j  as crianças aprenderam aspectos da gramática de maneira lúdica, apesar de todas as dificuldades que envolveram professor-aluno, seja pela inter-relação, seja pelo reconhecimento;

j  as crianças envolvidas acataram o projeto e demonstraram confiança a nossa proposta, mesmo sem apresentarem qualquer conhecimento sobre o assunto e possíveis problemas que pudessem acarretar a elas, ou mesmo a outras disciplinas;

j  as nossas ações junto aos alunos-crianças foram intensivas, porém, somente em sala de aula na maioria das vezes, devido à distância e ao tempo disponível para estarmos sempre presentes, acompanhando todas as atividades, orientando-as durante o processo.

 

A despeito das condições acima:

j  as crianças realizaram todas as atividades propostas em clima de motivação e interesse em sala de aula;

j  a aprendizagem dos conceitos lingüísticos apresentados foram significativos, conforme verificamos nas avaliações escritas realizadas com esta finalidade;

j  os trabalhos das crianças mostram que são criativas, mesmo sem dispormos de uma metodologia de avaliação para este objetivo ¾ tomando como base nossa percepção pelos resultados apresentados;

j  as crianças mostraram-se motivadas com o processo e o resultado, assim, passamos a assumir como parte do nosso programa curricular;

j  os diversos alunos-estagiários participantes das Faculdades Integradas Maria Imaculada no nosso percurso docente no ensino superior motivaram-se em aprender para ensinar “a arte do desenho na linguagem” às crianças, devido aos resultados presenciados e o testemunho das próprias crianças;

j  os caminhos pedagógicos mostraram-se relevantes não somente pelo resultado positivo em relação ao “talento criativo” apresentados pelas crianças, mas principalmente, por ser um trabalho que instiga a estética, a ética, o culto à Língua, o resgate das culturas, o valor da vida cotidiana, dentre outros.

A Literacia na Educação, baseada na percepção e composição de textos, pode propiciar às crianças melhor apreensão de conceitos lingüísticos; discernimento de valores e concepções dos antepassados; valorização das competências das culturas sociais e estímulo à criatividade.

De nossa parte, o que percebemos, o que presenciamos, o que verificamos nos trabalhos das crianças e nos relatos delas são suficientes para que continuemos apostando no “despertar” do talento criativo das crianças baseados em propostas que permitam a elas a valorizarem costumes, cultuarem a arte e, mais do que tudo, respeitarem a linguagem do cotidiano. Talvez aqui resida um caminho para chegarmos à integração e ao entendimento humano em relação ao seu meio.


 

Referências Bibliográficas

D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: do saber matemático ao fazer pedagógico – o desafio da educação, 1999. In: Etnomatemática: concepção etnoantropológica de matemática. Texto disponível em: http://vello.sites.uol.com.br/macae.htm Acesso em: 04 maio 2005.

GARDNER, Howard. As artes e o desenvolvimento humano: um estudo psicológico artístico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

OSTROWER, Fayga. “Quem quiser que conta...” In: Crescimento e Maturidade. no 12: 22-38, 1986.

SANTADE, Maria Suzett Biembengut. Apreciações semânticas de relatos de aprendizagem. Tese de Doutorado. Universidade Metodista de Piracicaba/UNIMEP, 2002.

SIMÕES, Darcilia. Semiótica & Ensino. Reflexões teórico-metodológicas sobre o livro-sem-legenda e a redação. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2003.


 


 

[1] As figuras 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e outras serão apresentadas durante o Minicurso na pequena amostragem da gramática ilustrada na aprendizagem da língua.

 

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