INTERFACE LINGÜÍSTICA E RELIGIÃO
A LINGUAGEM DOS SERVIÇOS RELIGIOSOS

Cleide Emília Faye Pedrosa (UFS)

Especificidades
do discurso esotérico e exotérico

E necessário, primeiramente, entendermos o que significa esotérico nesse contexto de discurso. “ Esotérico é aqui um termo técnico para designar o discurso destinado aos membros de uma instituição” (RODRIGUES, 2002: 220, nota de rodapé). Assim, para sua compreensão, exige-se o domínio de representações simbólicas, por isso esse discurso se torna opaco para os que não pertencem ao corpo dessa instituição.

Essa e uma boa orientação para que nos, membros de um corpo religioso, que estamos acostumados com nossa própria linguagem simbólica, nos preocupemos em alternar nosso código lingüístico quando por ocasião de serviços litúrgicos para os que não apresentam o mesmo pertencimento religioso. Então caímos em outro conceito chave, exotérico – diz respeito `as modalidades discursivas que não pertencem exclusivamente a um corpo institucional, porem a todos indiscriminadamente. O entendimento desses dois conceitos-chave vai nos ajudar a sermos mais eficazes em nossa comunicação.

Às vezes, estamos tão imbuídos de nosso vocabulário e construções lingüísticas que não nos apercebemos de sua opacidade, de sua especificidade inerente ao nosso mundo religioso. A simbologia que construímos a partir de nossas crenças se torna tão legitima que não nos damos conta o quanto pode ser hermético o nosso discurso para os que não professam a mesma fé.

Até mesmo nossa linguagem não-verbal torna-se enigmática para nossos visitantes, pois muitas de nossas ações e atitudes durante nossos serviços religiosos são respostas quase que skinneanas, imitadas por eles, sem se aperceberem do significado.

Sem dessacralizar, nossa linguagem sacralizada, precisamos utilizar estratégias discursivas que contribua para a permeabilidade de nossas mensagens, ou elas ‘ voltarão vazias’. Ao alcançar isso, estamos pondo em pratica nossa dimensão pragmática, ou seja, somos também detentores da competência para interferir com eficácia em nosso domínio de experiência. Pois quem, além de nós, quem poderia reescrever e adaptar nosso próprio discurso?

Aplicação: quando professor, pastor ou palestrante procuram recodificar através de uma metalinguagem o assunto abordado. Os cultos de domingo, as classes bíblicas devem ser adaptados em uma linguagem exotérica, deve-se tornar os ensinos doutrinários e proféticos o mais simples possível, tornando-os compreensíveis a destinatários alheios a comunidade religiosa.

 

Características do discurso religioso

Analista do discurso, como Orlandi, não concorda que o discurso religioso apresente características peculiares, contudo admitimos que, pelo menos, em um aspecto, esse discurso se diferencia dos demais, o tratamento de temas sagrados e a comunicação que os fiéis fazem com seu DEUS. Não cremos que haja outro domínio em que a linguagem abeire-se ao sagrado. Os discursos religiosos se mostram com estruturas rígidas quanto aos papeis dos interlocutores (a divindade e os seres humanos). Os dogmas sagrados, por exemplos, fé e Deus, são intocáveis (SETZER, 1987: 91).

Ademais, podemos apontar duas características do discurso religioso:

Intertextualidade. “Todo discurso religioso (pela sua natureza) tem a ver com outro discurso religioso.” (CASTRO, 1987: 31, nota de rodapé).

Discurso profético. Exploração das dimensões espaço e tempo. Característica: “dissimulação da sua [discurso profético] relação com o momento histórico como possibilidade mesma de constituir-se.” (CASTRO, 1987: 30)

Aplicação: trechos de oração, de sermões.

Funções das instituições pedagógica,
simbólica, mobilizadora e reparadora

As instituições fazem uso de discursos esotéricos a fim de atender suas funções principais. Considerando toda e qualquer instituição, podemos afirmar que se destacam quatro funções:

Pedagógica. ‘E através do discurso que as instituições, entre elas, a Igreja, garantem a aprendizagem de suas crenças e a transmissão da sua legitimidade para prescrever os preceitos destinadas a regular os comportamentos e para interferir quando necessário. Se essa função e utilizada em situação de não pertença, então, provavelmente, se fará uso do discurso exotérico.

Aplicação: culto evangelísticos, conferencias públicas

Simbólica. Essa função estará baseada principalmente no discurso esotérico. A opacidade da linguagem constrói um discurso só entendido pela membrezia. Ele servirá de suporte para as funções mobilizadora e reparadora. Essa função permeia todas as outras funções.

Aplicação: voto batismal, voto de comissão

Mobilizadora. O discurso que da conta dessa função tem a ver com os valores defendidos pela instituição. Observemos que há uma mobilização quando identificamos que alguns de nossos valores estão ‘ caindo por terra’. Há todo um discurso de confirmação e reafirmação de nossas crenças.

Aplicação: semana de oração, palestras, conselhos em visitas

Reparadora. Se algumas das regras ou normas são quebradas, o discurso da função reparadora será o responsável pelo estabelecimento da ordem, seja através de simples observação, seja através de advertências, seja através de disciplina ou exclusão. O discurso com função reparadora tem o objetivo de reafirmar o que foi ensinado na função pedagógica e identificado como problema na função mobilizadora.

Aplicação: voto da comissão para advertência e disciplina e mesmo eliminação.

Observamos que as funções institucionais dão conta de objetivos, principalmente, que atendem seus membros, por isso, se faz necessário a adaptação de nosso discurso esotérico a fim de que se torne exotérico em muitos contextos. Algumas atitudes compromissadas de membros e lideranças seriam de bom-tom, especialmente, em programações em que contamos com um número representativo de visitantes que não pertencem ao nosso grupo institucional.

Tornam-se comum entre nós as observações resultantes da função reparadora, quanto à reverência. Situação em que muitos pregadores esquecem da presença de visitantes, e os membros, por sua vez, esquecem das orientações recebidas pela função pedagógica. Exemplo: conhecemos o restante da história (...) para não contar o restante da historia que servia de ilustração.

Outro fator preocupante, é o nível do registro utilizado na linguagem com as crianças. Quantos de nos já não presenciamos pequenos repetirem vocabulário e estruturas sintáticas de adultos em orações que não fazem sentidos para eles. As historias infantis, contadas, na hora do Culto Divino, por alguns professores, trazem conceitos e explicações tão abstratos e concretizados em vocabulário rebuscado, que temos dúvida da compreensão delas até mesmo por adultos.

FUNÇÕES DA LINGUAGEM E OS SERVIÇOS RELIGIOSOS

Esta abordagem será de acordo comas funções da linguagem propostas por Jakobson. Embora seja ponto pacifico que não há um texto marcado apenas por uma função, ressaltaremos que as funções serão indicadas de acordo com sua predominância no texto bíblico ou situação do discurso religioso.

Função emotiva. Através do contato com o divino o ser humano expressa suas emoções. Nos cultos de oração, de ação de graça, nos momentos de confraternização entre os membros. “são momentos solenes quando o interior se encontra com o exterior, através das palavras. São também momentos em que o humano reconhece sua dependência e, por isso, alcança o Divino.” (Pedrosa, 2000: 11).

Aplicação: momentos de oração, de reflexão, do cântico, de confraternização.

Função apelativa. Significa tentar influenciar alguém através de um esforço (do latim: conatum). A persuasão é uma forte característica da mensagem com essa função, por isso, explora a linguagem argumentativa. Tem objetivo influenciar o comportamento do destinatário. Conforme Infante (1994: 160):

No processo de elaboração de um texto, sempre se consideram as características de seu receptor. Isso significa que todo emissor, ao produzir uma mensagem, faz um esforço no sentido de adaptá-la às características sociais e psicológicas de que vai receber. Portanto, podemos afirmar que todo texto traz, de uma forma ou de outra, manifestações da função conativa da linguagem.

Aplicação: estudos bíblicos, campanhas evangelísticas, sermões, histórias infantis de cunho moral.

Função referencial. Função que está centrada no referente, isto é, no objetivo ou situação de que trata a mensagem. Há preocupação em informar os dados da realidade, transmitir informações. A linguagem procura ser objetiva, impessoal, denotativa. Usa uma linguagem que busca o estreitamento entre a palavra e o objeto.

Aplicação: agenda da igreja; palestras; estudos doutrinários.

Função metalingüística. A utilização do código para explicitar elementos do próprio código. “Consiste numa recodificação e passa a existir quando a linguagem fala dela mesma. Serve para verificar se emissor e receptor estão usando o mesmo repertório.” (MARTINS;ZILBERKNOP, 1997: 31). Para Castim (1994: 24) “a função metalingüística pressupõe uma língua-objeto, aquela que é objeto da descrição, e uma metalinguagem, aquela que traduz a língua-objeto ou a mensagem codificada na língua-objeto.”

Aplicação: cultos evangelísticos, classes bíblicas, lição da Escola Sabatina, classes de professores, estudos apocalípticos, classes por faixa etária – crianças, juvenis, jovens, adultos; palestras.

Função fática: O centro dessa função é o canal de comunicação ou o contato. Visa estabelecer, manter ou mesmo interromper o processo comunicativo. O objetivo é testar o canal, melhor falando, testar a própria comunicação.

Aplicação: cumprimentos, linguagem dos gestos, abraços, aperto de mão.

Função poética. A maneira como a linguagem é trabalhada vem a ser o cerne dessa função. “O que primeiramente se mostra, podemos assim dizer, é a realidade da palavra, no que ela tem de concreto.” (CHALHUB, 1991: 34). Facilmente se verifica essa função tanto na prosa, como principalmente na poesia. Ela é identificada sempre que a forma e a estrutura da mensagem reforçam ou modificam o conteúdo veiculado por essa mensagem. Há forte predomínio da conotação e do subjetivismo.

Aplicação: os cânticos, os salmos, poemas.

Releitura de textos bíblicos
e atitudes religiosas
com base na teoria dos ‘Atos de fala’

Atos de Fala

Teoria, no campo da Pragmática, desenvolvida pelo filósofo britânico J. L. Austin, na década de 1960, tendo como reforço os trabalhos de John Searle.

Ato de Fala é a “menor unidade que realiza, pela linguagem, uma ação (ordem, solicitação, asserção, promessa...) destinada a modificar a situação dos interlocutores. “ (MAINGUENEAU, 2000:16). Defende a seguinte hipótese: “’dizer’é, sem dúvida, transmitir ao outro certas informações sobre o sujeito de que se fala, mas também é ‘fazer’, Istoé, tentar agir sobre o interlocutor e mesmo sobre o mundo circundante.” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004: 72).

Esta teoria aceita a fala como uma forma e um meio de ação, por isso, identificam os enunciados performativos como aqueles que apresentam a propriedade de poder realizar os atos que eles denotam, ou seja, ‘o dizer’ realiza o ‘fazer’.

Um Ato de Fala pode ser dividido em três aspectos:

Ato locucionário – ato de dizer alguma coisa. Seqüência de sons com organização sintática e uma referência a algo.

Ato ilocucionário – aquilo que se tenta fazer com a fala, atos realizados ‘ao dizer alguma coisa’. Realizamos com nossa fala uma ação que modifica as relações entre os interactantes.

Ato perlocutório – o efeito daquilo que se diz.

Outro aspecto relevante nessa teoria é considerar as ‘Condições de felicidade’. Essas condições são necessárias para que um ato de fala tenha sucesso, ou seja, cumprir seu objetivo ilocutório.

Searle afirma que:

Os atos ilocutórios são as diferentes ações que se podem realizar por meios linguageiros: ordenar, prometer, agradecer...

As forças ou valores ilocutórios: “componentes de um enunciado que lhe permitem funcionar como um ato particular.” CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004: 73).

Os verbos ilocutórios: unidades de lexicais que dão condições, em uma certa língua, designar os diferentes atos – ex.: verbo ‘ordenar’

São apresentadas cinco categorias de atos de linguagem: assertivos, diretivos, promissivos, expressivos e declarativos. Num ato de linguagem há dois componentes: o proposicional e sua força ilocutória.

Exemplos: Paulo vem? (pergunta) E Paulo vem (asserção) , mesmo conteúdo proposicional e força ilocutória diferente.

A força ilocutória pode ser marcada explicitamente:

Por um verbo – eu te prometo, afirmo

Por uma modalização da frase – Você vem? –reconhecida pelo contexto

A partir da abordagem interacionista temos o seguinte posicionamento:

Van Dijk fala de ‘macroatos’, presentes em textos ou discursos, esses são produzidos pela “integração sucessiva de microatos” CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004: 73).

Ato iniciativo e ato reativo – presentes nos pares adjacentes, como: saudação – saudação, perguntas-respostas, oferecimento aceitação/ recusa.

Na relação interpessoal, os atos de fala podem ter efeitos bem variáveis sobre as ‘faces’ dos participantes.

Ato de linguagem indireto– quando um ato se exprime implicitamente em um outro ato. ‘Você pode fechar a porta?” – direto (secundário par Searle) / pergunta; indireto (primário para Searle) a ordem por traz da pergunta.

Aplicação:

Criação: As palavras poder.

Milagres: As palavras poder de Cristo; Moisés e os magos no Egito; Mar vermelho

Condições de felicidade e infelicidade/ insucesso. Os discípulos mandaram os demônio saírem e não tiveram sucesso; os magos no Egito.

Dimensões religiosas da palavra

A palavra é uma realidade dotada de poder. Os livros bíblicos, do gênesis ao Apocalipse, falam da eficácia da palavra divina que não volta vazia. Na Bíblia, não somente a divindade tem o poder da palavra, ela também transfere seu poder para seus servos, os profetas. Ezequiel fala aos ossos do vale, e esses se reúnem, tomando vida novamente.

A palavra é o alimento dos que ‘têm fome e sede de justiça’; pois ‘não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus’.

a) Palavra-gênese

“Todas as culturas nascem de um palavra criadora, dita em tempos imemoriais por um poder divino” (BIDERMAN, 1998: 84).

Segundo o relato criacionista, Deus ‘falou’ e tudo aconteceu. As coisas surgiram em sua diversidade de acordo com o multiforme uso da palavra. Tudo que há no mundo natural assim o são porque se tornaram primeiramente palavras de um Poder Original. Os seres humanos categorizam através da palavra seu mundo. Deus deu existência ao mundo através de sua palavra criadora.

O gesto criador de Deus identifica-se com esta palavra ontológica essencialmente divina. O que nós homens somos e o que sabemos nasce dessa revelação primordial da palavra criadora, do gesto divino de dizer (BIDERMAN, 1998: 45).

Na palavra-gênesis reside a força do sagrado. Aliás, a palavra é o próprio Deus em forma da classe gramatical verbo.

b) Palavra– milagre

Nos evangelhos encontramos fartos exemplos de palavra-milagre. Cristo falou e a tempestade se acalmou. Falou um outro dia, e Lázaro ressuscitou. Da mesma forma, sucederam outros muitos milagres que confirmam a eficácia e poder da palavra de Cristo.

E o cristianismo continuou com a palavra-milagre em evidência. Os milagres ocorriam no mundo físico e no mundo do coração. Pedro fala: ‘não tenho prata, nem ouro; porém o que tenho te dou’. Ele tinha a palavra-milagre, herdada dos três anos de escolaridade, confirmando o papel da escola de nos aperfeiçoar no uso da palavra. Assim, ele pode continuar dizendo: ‘levanta-te e anda’ pois eu conheci aquele que é a própria palavra–poder.

c) Palavra-verbo de Deus

A palavra é Deus tomando a forma da classe gramatical Verbo. Ele é um Verbo de ação. Sua fala na criação tomou uma diversidade de forma. Agora o verbo se transforma em ser humano, se materializa, se realiza, não simplesmente em um Ato de Fala (de Searle) , porém em uma materialização possível de realizar vários Atos de Fala que acontecem plenamente. ‘O Verbo se fez carne e habitou entre nós’.

O ato de prometer: as condições de realização

Searle (1981: 76-82) aponta nove condições como pré-requisito para o sucesso de uma promessa. Essas condições foram resumidas por Mari (1998: 228, 229) , e assumiram a seguinte configuração:

Condição de conteúdo proposicional – “uma promessa prescreve uma ação futura, em relação ao ato de sua enunciação, a ser desempenhada por aquele que a profere.” (228)

Condição preparatória – uma promessa pressupõe duas condições preparatórias. A primeira está relacionada com o desejo do ouvinte de que o falante cumpra com sua palavra. A outra, relaciona-se à expectativa sobre a realização do ato, pois nem falante nem ouvinte conhecem, a priori, “um ato tal que será desempenhado ou não pelo falante, uma vez que, além de ser um ato futuro, não deve estar incluído no curso normal de atos previsíveis para os dois locutores” (228, 229).

Condição de sinceridade – o ato de prometer deve incluir o desejo sincero do falante realizar, no futuro, o conteúdo proposicional de seu ato de fala.

Condição essencial – “ao enunciar o ato da promessa, o falante cria, para si mesmo, a obrigatoriedade de realização da ação futura, correspondente ao conteúdo proposicional” (229).

Aplicação:

João 14: 2, 3 – “Na casa de meu Pai há muitas moradas. (...) vou preparar-vos lugar. E, quando eu for e vos tiver preparado lugar, voltarei e vos levarei para mim...

Conteúdo proposicional – os atos acima comprometem o enunciador com ações futuras que são esperadas por seus ouvintes e leitores: vou preparar-vos lugar, voltarei e vos levarei para mim. Espera-se que o falante desempenhe o que proferiu. Observamos que nenhum dos fatos implicados no conteúdo proposicional existe, isto é, ‘o lugar preparado’, ‘a volta de quem proferiu’, e o ‘fato de levar o ouvinte’ para estar com ele (o falante). O grau de crença em uma promessa religiosa é bem mais forte que em promessas políticas ou familiares.

Condição preparatória – As duas condições preparatórias estão relacionadas, primeiro, com o desejo do ouvinte de que o falante realmente cumpra com sua palavra, pois também é seu desejo habitar nas ‘moradas’ com o Pai. Depois, com a expectativa sobre a realização do ato, tendo em vista, neste caso, apenas o ouvinte não conhecer, antecipadamente, tal ato por não estar incluso no curso normal dos acontecimentos para ele.

Condição de sinceridade – o ato de prometer no, contexto religioso, inclui o desejo sincero do falante realizar, no futuro, o conteúdo proposicional de seu ato de falam, pois ele sabe que da crença em sua promessa depende todo desenvolvimento da fé de seus ouvintes.

Condição essencial – ao enunciar o ato da promessa, o falante (Jesus) criou, para si mesmo, espontaneamente, a obrigatoriedade de realização do conteúdo proposicional inserido em seu ato de fala. Pode-se observar que a sua realização é factível no universo (literalmente) para o qual está sendo projetada.

O silêncio significativo
e o silenciamento opressivo

“O silêncio não são as palavras silenciadas que guardam no segredo, sem dizer. O silêncio guarda um outro segredo que o movimento das palavras não o atinge.” (M. LêBot).

Neste tópico, é nosso objetivo abordar o silêncio no contexto religioso. Em tal contexto, o silêncio é significativo. É uma linguagem utilizada para a comunicação com Deus. Os rituais das igrejas cristãs incluem e destacam o silêncio como prática necessária para reverenciar a divindade. Exemplos e práticas religiosas confirmam que, mesmo ocorrendo algumas mudanças profundas em algumas igrejas, o silêncio da fé continua sendo importante na comunhão com Deus.

Assim como as palavras são múltiplas, os silêncios também o são. A linguagem não é transparente, o silencio também não o é.

Orlandi (1995) nos mostra que há diferença entre silêncio e silenciamento. Em suas palavras, “há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido e, de certa maneira, as próprias transpiram silêncio. Há silêncio nas palavras.” “(...) quando dizemos que há silêncio nas palavras, estamos dizendo que: elas são atravessadas de silêncio; elas produzem silêncio; o silêncio fala por elas.” E há também uma maneira de estar no silenciamento que corresponde ao ‘por em silêncio’, processo que gera sentidos silenciados.

A fim de considerarmos o silêncio como importante forma de comportamento e comunicação, faz-se necessário definir o que entendemos por silêncio. Em seu sentido etimológico, silentium/silens, que se cala, silencioso, que não faz ruídos, calmo, que está em repouso. Em sua aplicação religiosa, como o que está em comunicação com a divindade, que está em meditação, em reflexão. Neste último significado, evocamos o posicionamento de Philips (apud JAWORSKI, 1993: 18) em que aponta um tipo de ‘interação estruturada através do silêncio’, explica ela, que há uma categoria comunicativa intercional através do silêncio.

Orlandi explica que o silêncio, nesse sentido significativo, não seria simplesmente aquele que está entre as palavras, mas que estas estariam atravessadas por ele. “O silêncio não são as palavras silenciadas que se guardam no silêncio, sem dizer. O silêncio guarda um outro segredo que o movimento das palavras não atinge.” (Busset apud ORLANDI, 1995: 70).

O silêncio no contexto religioso difere profundamente do silêncio no contexto histórico-social. Neste, o ser humano em silêncio é uma pessoa sem sentido, sem voz, uma pessoa silenciada. Enquanto naquele, uma pessoa em silêncio ‘faz ouvir a voz de Deus’. A presença do divino ocorre em silêncio. Esse silêncio é evocado em apoio ao serviço de adoração e meditação. Na comunicação divina, a intervenção do silêncio mostra que o ser humano está em sintonia com Deus.

No contexto histórico-político, o silenciamento é uma das conseqüências corretivas da opressão e da voz do mais forte, do que tem o poder. A Ditadura militar de 64, no Brasil, fez silenciar as vozes contrárias através do exílio, prisão, tortura e até a morte.

Biblicamente, temos evidências de que o silêncio veio primeiro. No principio, o silêncio, até que se ouviu a voz criadora de Deus. O ‘ato de fala’ de Deus quebrou o silêncio-ausência.

Esboço histórico do silêncio religioso

Grécia – Pitágoras exigia de uma a três anos como forma de iniciação na ordem religiosa. Sócrates ressalvava que o silêncio era uma maneira de conhecimento bem mais importante que a própria linguagem.

Velho Testamento há mais referências ao silêncio que no Novo Testamento. Os sacerdotes deveriam estar em silêncio no Santuário.

Na Idade Média, os cristãos, os persas, os hindus, os árabes, e os judeus fizeram ampla utilização do silêncio como a maneira correta de se encontrar com Deus.

Os católicos da Cotra-Reforma e os Quinhentistas do século XII davam ênfase ao silêncio e o tornavam como prática da presença de Deus.

Os Quakers têm no silêncio um lugar central.

Interessante é saber como diversas culturas e igrejas desenvolveram a prática do silêncio em seus rituais. Diferentes culturas lidam distintamente com o silêncio no discurso religioso. De Rubem Alves (2002) , nos vem algumas histórias e experiências únicas que nos revelam como diferentes povos, distintas culturas praticam o silêncio em suas manifestações religiosas.

Experiência 1. Em um programa educacional da Igreja presbiteriana USA, em 1964, um amigo seu, trabalhando com minorias, observou cultos indígenas e verificou que as reuniões são estranhas (para os moldes de nossa cultura, obviamente). Primeiro há um longo silêncio, longo mesmo. Antes do pianista tocar, ele passa um bom tempo em silêncio, ‘abrindo vazios de silêncio’. Todos os presentes permanecem em silêncio. Inesperadamente, alguém, que julgou ter um pensamento essencial para expressar, fala. Uma fala concisa, objetiva. Depois da fala, o silêncio continua, pois falar logo em seguida seria grande desrespeito pelo pensamento expresso. O longo silêncio é interpretado como querendo dizer; ‘estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou’. E assim a reunião continua.

Experiência 2, ocorrida com o próprio Rubem Alves em um mosteiro na Suíça, Grand Champs. Das atividades do mosteiro estava o fato de participar da liturgia três vezes por dia. Os bancos do local sagrado eram arranjados em ‘U’, o que definiam um centro vazio para quem quisesse ocupar. Tendo em vista os suíços serem considerados pontuais, foi estranho para o autor o fato da cerimônia não haver começado a hora marcada, estranheza reforçada, com certeza, pelo fato de que ele (brasileiro) haver chegado antecipadamente. Só após vinte minutos é que Rubem Alves se deu conta, que na verdade, o serviço religioso já havia começado vinte minutos antes, estavam todos se alimentando do silêncio, pois ‘não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro’. Assim o autor conclui seu relato: ‘Para mim Deus é isso: a beleza que se ouve no silêncio.’

Leituras interpretativas do silêncio bíblico

Silêncio da natureza na poesia bíblica

Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos. Um dia discursa a outro dia, uma noite revela conhecimento a outra noite. Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som. No entanto , por toda Terra se faz ouvir a sua voz , e as suas palavras até os confins do mundo ... (Salmos 19)

Observando o aparente paradoxo do belíssimo trecho: “Não há linguagem, nem há palavras, e deles (céus, firmamento, dia, noite) não se ouve nenhum som; no entanto, por toda a Terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras até os confins do mundo” (Pedrosa, 2000), verificamos que há um tipo de ‘voz’ distinta da nossa pois consegue ser ‘ouvida’ através do e no silêncio. O escritor Rubem Alves comentando o referido texto assim se expressa: “o salmista olhava para os céus e percebia que pelos espaços vazios se ouvia a pregação sem linguagem e sem fala das estrelas.” (Alves, 2002). “Parte de nossa estupidez é a incontinência verbal, a constante ejaculação de palavras – quando a verdadeira sabedoria seria fazer silêncio, para os pensamentos, para ouvir a pregação das estrelas, dos peixes, das aves, das plantas.” (Alves, 2002: 35)

Silêncio de Cristo em seu julgamento. “... e Pilatos perguntou-Lhe: ‘por que Você não diz alguma coisa? Veja quantas acusações há contra a sua pessoa!’ Mas Jesus não disse nada...” (Marcos 15: 4,5. Bíblia Viva)

Muitas vezes, o silêncio é incômodo ao homem. Pilatos incomodou-se sobremaneira com o silêncio de Cristo. Porém se lembrarmos que quando não articulamos, não estamos simplesmente mudos, mas em silêncio, e se recordarmos que nele há o pensamento, a meditação, a introspecção, a contemplação, etc, então o silêncio incomodará menos, passará a ter uma dimensão profunda, espiritual. Contudo, Pilatos não teve condições de compreender isso. A Bíblia conta que sua esposa, com auxílio divino, conseguiu alcançar a dimensão do silêncio de Cristo e tentou ajudar ao marido. No entanto seus esforços não foram correspondidos, talvez porque o próprio Pilatos falasse demais como forma de ‘silenciar’/apagar os pensamentos que o atormentavam em saber que estava em suas mãos o julgamento de um inocente.

Silêncio de Deus nas orações. “Ó Deus, não fique aí parado e calado, enquanto nós fazemos nossas orações.” (Salmos 83:1)

Nem sempre o silêncio de Deus é bem-vindo pelos fiéis. O contexto do salmo mostra que o rei Davi, segundo rei de Israel, estava em aflição por causa das nações vizinhas que ameaçavam seu povo. Assim, ele pede de Deus uma atitude, que responda, não necessariamente por palavras, mas, sobretudo, por ações: “Deus meu, faze-os como folhas impelidas por um remoinho...” (Salmos 83: 13)

Silêncio e os segredos de Deus. “O Senhor nosso Deus tem segredos que não conta a ninguém, mas estas palavras que revelou são para serem conhecidas e obedecidas por nós e por nossos filhos para sempre.” (Deuteronômio 29:29, A Bíblia Viva).

É natural para todas as Igrejas cristãs considerarem que há áreas do silêncio de Deus, são áreas que não foram reveladas. Algumas dessas áreas se limitaram a uma época, como no caso do livro de Daniel (Antigo testamento) , em que este recebe orientação do anjo para encerrar ‘as palavras’ e selar ‘o livro’ até ao tempo do fim. (Daniel 12:04). Para a tradição cristã, as visões de Daniel são abertas no último livro do Novo Testamento, Revelações do Apocalipse: “Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus servos as cousas que em breve devem acontecer..” (Apocalipse 1:1). O silêncio de Deus, no caso, durou quase sete séculos, pois se presume que o livro de Daniel foi escrito entre os anos 606 a 536 A C. e Apocalipse por volta do ano 96 D.C.

Contudo há também o silêncio de Deus que se refere aos Seus segredos que não estão submetidos ao tempo: ‘As coisas encobertas pertencem ao Senhor, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem..’ (Deut. 29:29). São áreas que os cristãos que se prezem não ousam especular. Duas frases contundentes, de dois pastores evangélicos, revelam seus posicionamentos nesse aspecto: “Há pessoas tentando entrar no silêncio de Deus.” (Mário Veloso) , e “Cuidemos para não entrar na zona do silêncio de Deus.” (Ruy Nagal) (Revista Adventista, setembro, 2002).

Silêncio, reverência na presença de Deus

“O Senhor está no seu santo templo; nos céus tem o Senhor seu trono; os seus olhos estão atentos, as suas pálpebras sondam os filhos dos homens.” (Salmos 11:04)

“O Senhor, porém, está no seu santo templo; cale-se diante dele toda a terra.” (Habacuque 2:20)

Os adoradores das religiões cristãs buscam determinados alinhamentos a fim de se enquadrarem aos serviços religiosos e essa atitude é legitimada no que todos consideram como sendo um livro de inspiração divina – a Bíblia Sagrada. Logo, segundo alguns textos, o primeiro aspecto a considerar no alinhamento seria o silêncio/ a reverência – “cale-se diante dele toda a terra.” Confirme-se através de outros textos: “Guardareis os meus sábados, e reverenciareis o meu santuário: Eu sou o Senhor.” (Levítico 19:30). Desse modo, o que determina o enquadre dos fiéis para o serviço religioso, sem dúvida, é o senso da presença de Deus. As citações bíblicas são referências determinantes que orientam o comportamento que demonstra reverência diante de Deus.

Cada religião organiza seus cultos em conformidade com o que recebem de iluminação ou inspiração.

Em seu livro Liturgia: comunicação e cultura, o padre Mário Bonatti (1983) faz algumas referências em relação ao papel do silêncio durante a missa. Segundo ele, se não houver presença dos fiéis, o sacerdote pode ministrar a missa em latim e até em silêncio.

Na liturgia católica há muitos sinais que permitem compor o ambiente que levará os participantes ao contato com Deus. Há o altar..as velas acesas.. o próprio ambiente silencioso carregado de mistério e um certo ritmo tranqüilo que favorece o recolhimento e o ambiente para a oração. (Bonatti, 1983: 25)

A missa, para a Igreja Católica, é uma forma de comunicação com o infinito. Nela, “há um tipo de oração e diálogo mais profundo que dispensa a palavra. Esta se desloca para o silêncio.” (Bonatti, 1983:27). Para o autor, esses momentos de silêncio nem sempre são respeitados como norma. O ritmo do serviço religioso que deve ser tranqüilo e atravessado de intervalos de silêncio tem sido um aspecto da celebração quase desconhecido. Fato pouco conhecido dos católicos é que após anunciar cada palavra ‘oremos’ , após a primeira leitura e após a comunhão deve haver um momento de silêncio para meditação e interiorização.

Das igrejas cristãs não católicas temos também exemplos clássicos de orientações para seus serviços religiosos, principalmente no que diz respeito ao significado e presença do silêncio. A Igreja Adventista do Sétimo Dia preza bastante as orientações bíblicas e de sua profetiza Ellen G. White, são de seus livros algumas das citações que selecionamos para confirmar o valor do silêncio para a comunhão com Deus nessa igreja.

A reverência que o povo antigamente revelava para com o santuário onde se encontrava com Deus, em serviço santo, quase deixou de existir completamente. Entretanto, Deus mesmo deu as instruções para Seu culto elevando-o acima de tudo quanto é terreno.” “ (... ) a igreja é o santuário da congregação. Devem existir aí regulamentos quanto ao tempo, lugar e maneira de culto. (White, 1993: 540, 541)

A última parte da citação descreve queDevem existir aí regulamentos quanto ao tempo, lugar e maneira de culto. Os regulamentos que os adoradores buscam praticar cobrem aspectos do antes, durante e depois da Palavra de Deus.

Antes do culto. “Se faltam alguns minutos para o começo do culto, os crentes devem entregar-se à devoção e meditação silenciosa, elevando a alma em oração a Deus para que o culto se torne para eles uma bênção especial...” (White, 1995: 194, grifo nosso)

Segundo a escritora, os crentes devem entrar reverentemente na Casa de Deus e silenciosamente sentar-se. Continuando com sua visão de reverência, temos: “Se os crentes, ao entrarem na casa de oração, o fizessem com a devida reverência, lembrando-se de que se acham ali na presença do Senhor, seu silêncio redundaria num testemunho eloqüente.” (White, 1995: 194)

Durante o serviço religioso. “Quando a Palavra é exposta, deveis lembrar-vos, irmãos, de que é a voz de Deus que vos está falando por meio de Seu servo.” (White, 1995: 195)

Em sua Obra Testemunhos Seletos, White afirma que a irreverência dos cristãos na igreja é um dos motivos mais sérios que justificam porque o ministério não apresenta grandes resultados. Ela diz: “Todo o serviço deve ser efetuado com solenidade e reverência, como se fora feito na presença pessoas de Deus mesmo.” (idem: 195). Aconselha também que à hora da apresentação do sermão não se deve dormitar, porque assim fazendo, os fiéis poderiam perder as palavras de que mais necessitavam ouvir.

Depois da cerimônia.

Ao ser pronunciada a bênção, todos devem conservar-se quietos, como temendo ficar privados da paz de Cristo. Saiam então sem se atropelar e evitando falar em voz alta, portando-se como na presença de Deus e lembrando-se de que Seus olhos repousam sobre todos. (White, 1995: 196)

Mesmo depois do serviço religioso, os membros nessa comunidade religiosa são orientados a conservarem a mesma atitude silenciosa, a fim de não perder a paz que obtiveram pela comunhão.

O silêncio, como sinal de reverência, “não é o nada, não é o vazio sem história” (Orlandi, 1995: 23). Assim, no contexto religioso, podemos concluir que o silêncio não seria falta, a linguagem é que seria excesso. Segundo a mesma autora, “o que funciona na religião é a a onipotência do silêncio divino. Mais particularmente, isto quer dizer que, na ordem do discurso religioso, Deus é o lugar da onipotência do silêncio. E o ser humano precisa desse lugar, desse silêncio, para colocar uma sua fala específica: a de sua espiritualidade.” (ibid, 30)

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