ORIGEM E FORMAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA

Camillo Cavalcanti

 

Homem e a Índole Comunicativa e Social
A
Linguagem Verbal

A linguagem é uma das características maiores do homem. Desde a pré-história, a necessidade de comunicação se fazia presente. Antes da língua oral, o homem desenvolveu outras linguagens como gestos, sinais e símbolos pictóricos, amuletos, tudo isto profundamente relacionado com o mítico (deus).

Essa necessidade de se comunicar encontra fundamento na própria essência humana, que se nota a propensão à partilha e à organização social.

Acredita-se que as primeiras articulações de sons produzidos pelo nosso aparelho fonador com significados distintos para cada ruído, convencionados em código, foram celebradas na Língua Indo-européia, numa região incerta da Europa oriental, a 3000 a.C. A partir de então, o Indo-europeu foi levado a diversas regiões, desde o Oriente Próximo até a Grã-Bretanha. Justamente pela grande propagação dessa língua em territórios tão distantes, O Indo-europeu evolui na forma de diversas novas línguas, como o grego, o eslavo e o itálico.

LÍNGUAS PROVENIENTES DO INDO-EUROPEU

Hitita — na Ásia Menor (Síria Antiga, 1900 a.C.);

Germânico Noroeste da Europa (Germânia e Alemanha);

Celta Continental (Gaulês) e Insular (Gaélico e Britânico);

Itálico — Osco, Sabélico, Úmbrio, Latim;

Albanês;

Grego Junção dos Dialetos do Mar Egeu;

Báltico — Prussiano, Letão e Lituano;

Eslavo Ocidental (Polonês e Tcheco) , Meridionais (Búlgaro, Servo, Esloveno) e Orientais (Russo e Ucraniano);

Armênio — no Cáucaso e na Mesopotâmia (com escrita desde IX a.C.);

Indo-iraniano — Iraniano (Persa, Avéstico, Medo, Cita) e Indo (Sânscrito, Prácritos);

Tocário — Turquestão chinês (manuscritos desde 10 d.C.)

www.humanas.ufpr.br/departamentos/delin/classic/curso/indo.htm.

Do Indo-europeu, passando pelo Itálico,
até o Latim

O latim é uma terceira fisionomia, determinada por fatores locais (cultura, principalmente) , daquela primeira língua, o Indo-europeu, falada pelo homem ainda na pré-história.

A Língua Latina surgiu na região do Lácio (da Itália ao sul do Rio Tibre) , por volta do século VII a.C., dois milênios depois do Indo-europeu. A capital do Lácio era Roma, a mesma do futuro Império Romano. Olavo Bilac, nosso Príncipe dos Poetas, tem um excelente poema em homenagem à nossa Língua Portuguesa, evocando suas origens nessa região:

SONETO DE OLAVO BILAC

Lingua Portugueza

 

Ultima flor do Lacio, inculta e bella,

És, a um tempo, esplendor e sepultura:

Ouro nativo, que na ganga impura

A bruta mina entre os cascalhos vela...

 

Amo-te assim, desconhecida e obscura,

Tuba de alto clangor, lyra singela,

Que tens o trom e o silvo da procella,

E o arrolo da saudade e da ternura!

 

Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

 

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”,

E em que Camões chorou, no exilio amargo,

O genio sem ventura e o amor sem brilho!

 

Fonte: BILAC, Olavo. Poesias

 

O Latim e o Império Romano

Apropriando-se da língua utilizada pelos povos itálicos (fundadores de Roma) que ainda sofriam invasões bárbaras, os romanos tornaram o Latim a língua oficial do Império. atente para um pequeno detalhe: olhe o tamanho do Império!

DOMÍNIO DO LATIM

Fonte: http://acd.ufrj.br/~pead/tema05/por-tm05.html

Esta era a área dominada pelo Império Romano em 116 d.C., bem no seu auge. É claro que, como aconteceu ao Indo-europeu, o Latim, não podendo permanecer o mesmo em tão diferentes lugares e tão longínquas regiões, foi sofrendo alterações, devido, sobretudo, a fatores locais (cultura, folclore, invasões) , até se fragmentar.

 

Latim Vulgar, um usoclandestino
(VII a.C. – IX d.C)

Ainda no Império Romano, as pessoas eram obrigadas a falar Latim, mesmo não sendo sua língua local. Os romanos conquistaram a Península Ibérica em 218 a.C. A partir de então, o Latim falado na Galícia e na Lusitânia (províncias ibéricas) adquiriu traços peculiares próprios da Península. Essa época é chamada pré-histórica porque nãodocumentos escritos: lembrem-se, o Latim Vulgar era apenas falado, mas oficialmente (nos documentos e registros escritos) se podia usar o Latim Canônico.

O povo queria usar a língua de uma maneira mais próxima de suas tradições culturais, na pronúncia e na escolha das palavras, na organização e na sintaxe da frase. Por isso, em todas as situações domésticas, não se usava outra variante senão a do Latim Vulgar, e Vulgar porque era do povo.

 

“Primeiras Letras” do Latim Vulgar
(IX d.C. – XII d.C.)

No século IX, começa a escritura dos primeiros documentos em Latimbárbaro”, ou seja, com traços de uma nova língua que se anunciava entre o povo. Dessa forma, trata-se de registros de pequena importância na hierarquia de poder (testamentos, contratos, documentos jurídicos de pequena monta).

Note-se que esses documentos de cartórios, se não atendiam aos interesses dos governantes, faziam parte da vida privada do povão, que dava a mão-de-obra para as instituições de baixo escalão.

ESCRITURA DE DOAÇÃO EM LATIM BÁRBARO
(874 D.C.)

Fofino, Gaton, Astrilli, Arguiru, Vestremiru, Guinilli et Aragunti placitum facimus inter nos, unus ad alios, per scripturam firmitatis, notum die quod erit IIIº nonas Apritis era DCCCCª XIIª, super ipsa eclesia et super nostras hereditates, quantas habuerimus et ganare potuerimus usque ad obitum nostrum, que non habeamus licentiam super illas nec uindere, nec donare, nec testare in parte extranea, nisi unus ad allios aut ad ipsa eclesia uocabulo Sancti Andree Apostoli. Et qui minima fecerit, et istum placitum excesserit, pariet parte de que isto placito obseruauerit X boues de XIIIm XIIIm modios, et iudicato. Nos pernominatos in hoc placito manus nostras ro +++++++ uoramus.

Pro test.: Oliti test., Tramondu test., Arguiru test. Menendo notuit.”
(VASCONCELLOS, 1959: 9)

 


 

O Latim está tão Vulgar
que não é mais latim:
é o
Galego-português
(últimas
décadas do século XII ao XIV)

A partir do final do século XII (1150-1200) , na Península Ibérica não se fala mais o Latim, nem mesmo em sua forma Vulgar. As características do Latim que não se identificavam com a vida e o pensamento da grande populaça se perderam. Portanto, completamente descaracterizado, o latim torna-se, aos poucos, língua morta, e cada vez mais vigora o Galego-português, uma evolução do Latim totalmente de acordo com o que o povo queria, pois, lembrem-se, o Latim foi uma língua imposta pelos romanos as povos ibéricos.

No mundo nom me sei parelha,

Mentre me vai

Ca moiro por vós, e ai

Mia senhor branca e vermelha.

Queredes que vos retraia

Quando vos vi em saia?

Mau dia me levantei

Que vos enton non vi feia.

E, ma senhor, dês aquel’ dia, ai,

Me foi a mi mui mal.

E vós, filha de Dom Pai

Muniz, bem vos semelha

D’aver eu por vós g (u) arvaia

Pois eu, mia senhor, dalfaia

Nunca de vós houve nem hei

valia d’huma correia.

No mundo não sei de coisa igual

Se continuar do jeito que vai

Porque morro por vós, e ai

Minha senhora, de branco e vermelho

Quereis que vos envergonhe

Quando vos vir de pijama?

Maldito dia me levantei

Para então não mais te ver feia.

E, minha senhora, desde aquele dia, ai,

Me tem sido a mim muito ruim.

E vós, filha de Dom Paio

Muniz, vos parece correto

De eu ter por vós sentimento

Pois eu, minha senhora, em troca

Nunca de vós tive, nem tenho,

Valor sequer de uma correia.

Fonte: Oficina Literária Ivan Cavalcanti Proença (atualização minha, à direita)

A primeira poesia escrita em Galego-português, “Ca moiro por vós”, de Paio Soares de Taveirós, conhecida comoCanção da Ribeirinha”, concorre como primeiro texto escrito nessa moderna língua galego-portuguesa, por ser do final do século XII (1189?)

 

CANÇÃO DA RIBEIRINHA
O
Galego-português
(das últimas
décadas de XII até XIV)

Nesse período, a língua de Portugal e da Galícia era a mesma. Somente no século XIV a separação dos idiomas português e galego se consuma. Na passagem do século XIII ao XIV, o principal poeta foi D. Dinis, rei de Portugal. Ele escreveu muitos versos trovadorescos que marcaram a história do Trovadorismo Português, sob forma de cantiga d’amor (de voz masculina dirigida à amada) ou d’amigo (de voz feminina dirigida a uma confidente). Confira esta cantiga d’amor:

 

POEMA DE D. DINIS (1261-1325)

Preguntar-vos quero por Deus,

Senhor fremosa, que vos fez

mesurada e de bom grado e de bom prez,

que pecados foron os meus

                que nunca tevestes por ben

                De nunca mi fazerdes ben.

 

Pero sempre vos soub’amar,

des aquel dia que vos vi,

mays que os meus olhos em mi,

e assy o que quis Deus guisar,

                que nunca tevestes por ben

                De nunca mi fazerdes ben.

 

Des que vos vi, sempr’ o mayor

bem que vos podia querer

vos quigi, a todo meu poder,

e pero quis Nstro Senhor

                que nunca tevestes por ben

                De nunca mi fazerdes ben.

 

Mays, senhor, ainda com ben

Se cobraria bem por bem.

Quero vos perguntar, por Deus,

Senhora formosa, o que vos fez

talhada e de boa índole,

que pecados foram os meus

                para nunca terdes por bem

                De nunca me fazerdes bem.

 

Mas sempre vos soube amar,

desde aquele dia que vos vi,

mais que os meus olhos em mim,

e assim Deus quis fadar,

                para nunca terdes por bem

                De nunca me fazerdes bem.

 

Desde que vos vi, sempre o amior

bem que eu podia de vós querer

eu vos quis, com todas as minhas forças

mas porém quis Nosso Senhor

                para nunca terdes por bem

                De nunca me fazerdes bem.

 

Ainda mais, senhor, com bem

Se cobraria bem por bem.

Fonte: SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. (atualização minha à direita)

 

A Língua Portuguesa no século XV

A partir do século XIV, como visto, o Galego-português cada vez mais é substituído pelos dialetos regionais da Lusitânia e da Galícia, até que o Português se dissocia do Galego. Observe como este fragmento de uma crônica de Fernão Lopes (1380?-1460?) marca bem esse período em que os traços do galego-português se escasseiam para dar lugar à feição estilística do Português.

CRÔNICA DE FERNÃO LOPES

Razoões desvairadas, que alguuns fallavam sobre o casamento delRei Dom Fernamdo Quamdo foi sabudo pello reino, como elRei reçebera de praça Dona Lionor por sua molher, e lhe beijarom a maão todos por Rainha, foi o poboo de tal feito mui maravilhado, muito mais que da primeira; por que ante desto nom enbargando que o alguuns sospeitassem, por o gramde e honrroso geito que viiam a elRei teer com ella, nom eram porem çertos se era sua molher ou nom; e muitos duvidamdo, cuidavom que se emfa daria elRei della, e que depois casaria segundo perteemçia a seu real estado: e huuns e outros todos fallavam desvairadas razõoes sobresto, maravilhamdose muito delRei nom emtemder quamto desfazia em si, por se comtemtar de tal casamento.

Razões desvairadas, aquelas que alguns falavam sobre o casamento de El-rei Dom Fernando. Quando foi sabido por todo o reino como El-rei recebera depressa Dona Leonor por sua mulher, e todos lhe beijaram a mão como Rainha, foi o povo de tal feito muito maravilhado, muito mais do que da primeira; porque, antes disto, não embargando que alguns suspeitassem, pelo grande e honroso jeito que viam El-rei ter com ela, não eram, porém, certos se era sua mulher ou não; e muitos duvidando, cuidavam que se enfadaria El-rei dela, e que depois casaria segundo pertencesse a seu real estado; e uns e outros falavam desvairadas razões de sobre, maravilhando-se muito de El-rei não entender quanto se desfazia de si, por se contentar com tal casamento.

www.unicamp.br/iel/alunos/publicacoes/textos/p00001.htm

 

A Língua Portuguesa no século XVI

A Língua está muito perto do uso que dela fazemos hoje. O Português começa a dar seus primeiros passos. Aindaresquícios do galego-português, principalmente na ortografia, que é sempre cambiante. Entretanto, o predomínio das características do Português é evidente. Leia-se esse trecho de um roteiro de Gil Vicente, que representa bem esse período de consolidação entre o Galego-português e a Língua Portuguesa, a fim de se observar a proximidade do Português do século XVI com o Português de nossos dias:

TEATRO DE GIL VICENTE (1465-1537)

 

FIDALGO.

A estoutra barca me vou.

— Hou da barca! Para onde is?

Ah, barqueiros! Não me ouvis?

Respondê-me! Houlá! Hou!

Par Deus, aviado* estou!

Quant’a isto é pior.

Que girinconcis, salvanor!

Cuidam que são eu grou**?

ANJO.

Que queres?

FIDALGO.

Que me digais,

pois parti tão sem aviso,

se a barca do paraíso

é esta em que navegais.

ANJO.

Esta é; que me demandais?

FIDALGO.

Que me leixês*** embarcar;

fidalgo de solar

é bem que me recolhais.

ANJO.

Não se embarca tirania

neste batel divinal.

FIDALGO.

Não sei por que haveis por mal

que entr’a minha senhoria.

 

                *aviado: em vias de, preparado

                **cuidam que são eu grou: cuidam que sou eu gralha?

                *** leixês: deixeis

 

(VICENTE, Gil. O auto da barca do inferno)

 

A Língua Portuguesa
no
século XVII até a atualidade.

1600 é o século da glória de Camões, em que o Português finalmente atinge sua fase moderna. A diferença maior para a língua usada em nossos dias se restringe a pormenores como grafia, vingando as semelhanças. Camões, após sua morte, será o poeta do idioma nacional, autônomo e independente. Os Lusíadas (1572) tornam-se o grande épico de Portugal e referência cultural a partir do século XVII. na fase moderna da Língua Portuguesa, a escolha vocabular e a sintaxe seguem padrões idênticos aos atuais.

Leia-se o soneto camoniano musicado por Renato Russo:


 

 

Amor é um fogo que arde sem se ver,

É ferida que doe e não se sente,

É um contentamento descontente,

É dor que desatina sem doer.

 

É um não querer mais que bem querer,

É um andar solitário entre a gente,

É nunca contentar-se de contente,

É um cuidar que ganha em se perder.

 

É querer estar preso por vontade,

É servir a quem vence o vencedor,

É ter com quem nos mata lealdade.

 

Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo amor?

 

(BERARDINELLI, Cleonice.
Corpus dos sonetos camonianos)

 

As palavras em Português vieram todas do Latim?

A maior parte do vocabulário da Língua Portuguesa tem sua origem no Latim: pater (pai); mater (mãe); filius (filho); manus (mão); aqua (água); bonus (bom); fortis (forte); viridis (verde); dicere (dizer); cadere (cair); amare (amar); avis (ave).

Não obstante, a estas palavras se somam outras provenientes do Latim Vulgar (termos populares): bellus (belo); caballus (cavalo); cattus (gato); casa (casa); grandis (grande)

Também há de se considerar a sobrevivência de várias palavras oriundas da língua local, antes da invasão romana: barro, manteiga, veiga, sapo, esquerdo

Algumas palavras germânicas foram incorporadas a muitas línguas românicas, inclusive o Português. Na maioria dos casos, foram introduzidas por ocasião das invasões bárbaras, das quais estas são provenientes: guerra; guardar; trégua; ganso; lua; roubar; espiar; fato (roupa); ataviar; estaca; espeto; marta; agasalhar; gana; branco; brotar

A última observação recai na longa permanência dos mouros na Península, fato que refletiu na Língua. Até hoje, a presença dos árabes na Ibéria pode ser notada pela região de Andaluzia, onde existe uma grande quantidade de ciganos e outros povos bárbaros ou nômades. Dentre as palavras de uso corrente na Língua Portuguesa, citem-se: arroz; azeite; azeitona; bolota; açucena; javali; azulejo; açúcar; refém, arrabalde; mesquinho; baldio; até

Dentre elas, pode-se destacar o grupo de palavras que se iniciam por AL, que é o artigo da língua árabe: alface; alfarrábio; alfinete; albarda; alicerce; almofada; alfaiate; almocreve; almoxarife; alfândega; aldeia

 

Quais são as diferenças então entre o Português e o Latim?

Listemos algumas características que explicam a passagem do Latim à Língua Portuguesa:

a) Queda do acento de quantidade

Encerra-se a distinção entre sílabas longas e breves. As vogais longas conservaram sua identidade: ā, ē, ī, ō, ū em Português se tornaram a, ê, i, ô, u, de tonicidade fechada, a que se pode somar a vogal ă breve em par com sua longa. A contraposição das vogais breves ĕ e ŏ frente as respectivas longas foi marcada pelo acento aberto do Português. Entretanto, as vogais breves ĭ e ŭ somaram-se às vogais fechadas ê e ô do Português. Desse modo: a (ā, ă) , é (ĕ) , ê (ē, ĭ) , i (ī) , ó (ŏ) , ô (ō, ŭ) , u (ū).

 

b) Queda das 5 declinações do Latim

O Latim possuía um sistema de declinações que agrupava as palavras de acordo com suas terminações. Desse modo, as palavras da primeira declinação como femina, -ae, comportava grande número de palavras de gênero feminino. a segunda declinação continha muitas palavras de gênero masculino, como é o caso de uir, -i. Assim como a primeira declinação apresentava desinência “-ae” e a segunda, desinência “-i”, a terceira declinação era marcada pela desinência “-is”, como dolor, -is, enquanto a quarta conjugação possuía terminação “-us”, a exemplo de spiritus, -us. Finalmente, existia ainda uma quinta declinação de poucas palavras, como dies, -ei.

Com as transformações históricas em direção ao Português, as declinações foram extintas dando lugar à noção de gênero. Desse modo, a primeira e a quinta declinações se alinharam por serem constituídas quase totalmente de gênero feminino, em confronto com a segunda e a quarta declinações, predominantemente do gênero masculino. A terceira declinação, por abrigar os gêneros masculino, feminino e neutro sem predominância de nenhum deles, foi distribuída ora no grupo das palavras de gênero feminino, ora nas de gênero masculino. O gênero neutro caiu, quase sempre em favor do masculino.

O mais importante é entender que nesse processo a organização em declinações foi recusada em favor da organização pela distinção dos gêneros masculino e feminino.

 

c) Extinção dos casos de marcação sintática
(
nominativo, acusativo, ablativo, dativo, etc.)

A utilização dos casos na distinção das funções sintáticas se reduziu ao caso mais genérico e habitual, ou seja, de uso mais corrente. Na Ibéria, a preferência se deu pelo caso acusativo, desde que se entenda a apócope da terminação “m” característica. Outra forma de compreender o fenômeno da extinção dos casos é perceber a fusão entre o nominativo e um segundo caso, formado a partir da fusão entre acusativo e ablativo. Exemplo: (erectus, nom. > erecto, abl. > ereto, port.); (vita, nom > vitas, ac. > vidas, port.). São extintos, assim, os morfemas de marcação sintática.

 

d) A dissolução do gênero neutro em masculino ou feminino

Das palavras de gênero neutro, em geral, foram incorporadas ao gênero masculino as que eram usadas freqüentemente no singular, como no caso de (templum, neutro > templo, masc.); (patrimonium > patrimônio). as habitualmente empregadas no plural foram somadas ao gênero feminino, como é o caso de (olivum > oliva); (diarium > diária).

Quanto aos gêneros, portanto, a Língua Portuguesa opera sistematicamente, salvo raras exceções (ex. lápis, simples) , com uma forma única para o singular (masculino ou feminino) contraposta à outra forma para o plural, além de algumas flexões pela desinência “-a”.

 

d) Redução das 4 conjugações verbais do Latim
a
partir da convergência entre 2ª e 3ª

No Latim, havia quatro conjugações. Porém, a 2ª e a 3ª não conseguiram permanecer diferenciadas, pois a tonicidade entre longo e breve era a única distinção (debēre, 2ª ≠ vendĕre, 3ª). Com a fusão, fixaram-se três conjugações: (amāre > amar); (debēre/vendĕre) > (dever/vender); (punīre > punir).

 

e) Alteração dos quadros modo-temporais dos verbos

São tempos que permaneceram do Latim clássico ao Português:

·                     presente e imperfeito do indicativo: (amo > amo); (debeo > devo); (vendo > vendo); (punio > puno).

·                     pretérito perfeito do indicativo: (amavi > amai > amei); (debui > debei > devi); (vendedi > vendei > vendi); (punivi > punii > puni).

·                     pretérito mais-que-perfeito: (amavĕram > amaram > amara).

·                     presente do subjuntivo: (amem > ame); (debeam > devam > deva)

·                     imperativo presente: (ama > ama); (debe > deve); (venda > vende); (puni > pune)

 

São tempos substituídos por nova construção perifrástica:

·                     futuro imperfeito (amabo, debebo, vendam, puniam) foi substituído por uma perífrase de infinitivo + habere no presente (amare habeo) , (debere habeo) , (vendere habeo) , (punire habeo). Através de elisões (metaplasmo por queda) , a perífrase transformou-se no futuro do presente (amarei, deverei, venderei, punirei).

·                     futuro perfeito (perfectum) foi substituído por uma perífrase de infinitivo + habere no imperfeito do indicativo, que expressava o futuro do pretérito: (amāre habēbam > amaria).

 

São tempos que se fundiram com outro semelhante:

·                     imperfeito do subjuntivo caiu em favor do mais-que-perfeito do subjuntivo (no Português, o “imperfeito do subjuntivo” derivou do mais-que-perfeito do subjuntivo).

·                     futuro perfeito do indicativo confundiu-se com o perfeito do subjuntivo, resultando no futuro do subjuntivo: (amavĕro > amaro > amar); (debuĕro > debero > dever); (vendidĕro > vendero > vender); (punivĕro > puniro > punir)

·                     particípio presente tornou-se adjetivo (amantis > amante) enquanto o gerúndio o substituiu: amando

·                     imperfeito do subjuntivo foi substituído pelo mais-que-perfeito do subjuntivo, dando origem ao imperfeito do subjuntivo e ao infinitivo flexionado simultaneamente.

 

São tempos que caíram:

·                     infinitivo perfeito (perfectum)

·                     imperativo futuro (infectum)

·                     particípio do futuro ativo (algumas formas permaneceram, mas em caráter nominal: “nascedouro”, “vindouro”, “bebedouro”).

·                     gerundivo (algumas formas permaneceram, mas em caráter nominal: merenda, oferenda, graduando)

·                     supino

A voz passiva sintética possuía formas verbais próprias terminadas em “-r”: amor, amabar, amabor (presente, imperfeito e futuro do indicativo); amer, amarer (presente e imperfeito do subjuntivo). No imperativo (amare, amamini) , no infinitivo (amari) , no gerúndio (amandus, -a, -um) e no particípio passado (amatus, -a, -um) , as formas não se restringem à terminação em “-r”. Todas estas formas caíram em desuso — exceto o particípio passado (amatus > amado) — e foram substituídas por perífrases (amor > amatus sum); (amabar > amatus eram); (amabor > amatus ero); (amer > amatus sim); (amatus essem > amarer). Mais tarde, ocorreram algumas modificações (amatus sum > amatus fui); (amatus eram > amatus fueram).

 

f) Palatalização dos encontros consonantais “pl”, “cl”, “fl”
para “ch” [š]

Exemplos: (pluva > chuva); (clave > chave); (flamma > chama).

Palavras mais eruditas cambiaram para “pr”, “cr”, “fr”: (placere > prazer) , (clavu > cravo) , flaccu > fraco); ao que se soma “bl” para “br”: (blandu > brando)

 

g) Síncopes intervocálicas

Exemplos: (salire > sair); (dolore > door > dor); (voluntade > vountade > vontade)

N Exemplos: (manu > mão); (luna > lũa); (lana > lãa > ); (bonu > bõo)

 

h) Dêiticos

Do quadro de pronomes que vigorava no Galego-português, deve-se ressaltar a oposição entre adjetivo (este/aqueste, esse/aquel) e advérbio (aqui/ali, acá/alá, acó, aló). Somente as formas “aqueste” e acó” caíram em desuso completamente, enquanto “aló” ainda sobrevive como saudação ou chamamento.


 

i) Artigo

O artigo da Língua Portuguesa é uma evolução do pronome demonstrativo “ille”, que, após aférese, sofreu alteração fonética de “le” (conservado no Francês) para “lo” (conservado no Castelhano ao lado de “el”). Por último, a partícula ainda perdeu a consoante líquida, logrando a forma atual “o”.

 

BIBLIOGRAFIA

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CARDOSO, Wilton & CUNHA, Celso. Estilística e gramática histórica: português através dos textos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1976.

HAUY, Amini Boainain. História da Língua Portuguesa: séculos XII, XIII, XIV. São Paulo: Ática, 1994.

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TARALLO, Fernando. Tempos lingüísticos. São Paulo: Ática, 1990.

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VICENTE, Gil. Três autos. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Folha, 1997.


 

Na Internet

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