A belle époque que não houve

Geysa Silva (UNINCOR)

 

É sabido que todo texto tem sua gênese relacionada com os fatores que o tornaram possível, isto é, a gênese de uma narrativa liga-se a uma série de acontecimentos denominados mediações materiais das obras, consideradas não como circunstâncias contingentes, mas como algo que intervém em sua própria constituição. Assim como na lingüística consideram-se os atos de fala, também em literatura é relevante a situação em que o texto se constitui. Nessas condições, decidiu-se que, para estudar a produção literária de Godofredo Rangel, seria conveniente iniciar por uma panorâmica das condições sócio-culturais da cidade em que ele nasceu e passou a infância, tentando visualizar o cenário que lhe confere realidade. Essa abordagem estará apoiada no conceito de “cenografia” de Dominique Maingueneau:

Chamaremos de cenografia essa situação de enunciação da obra, tomando o cuidado de relacionar o elemento –grafia não a uma oposição empírica entre suporte oral e suporte gráfico, mas a um processo fundador, à inscrição legitimante de um texto estabilizado. Ela define as condições do enunciador e de co-enunciador, mas também o espaço (topografia) e o tempo (cronografia) a partir dos quais se desenvolve a enunciação (MAINGUENEAU, 1995: 123).

Que são esse tempo e esse espaço?

No começo do século XX, o Rio de Janeiro, então capital da república, mimetizava a belle époque parisiense e, por sua vez, era imitado pelas cidades do interior que se iniciavam na industrialização. É o caso típico de Juiz de Fora, que chegou a ser conhecida como “Manchester mineira” e que ostenta até hoje vestígios daquela situação, representada em construções arquitetônicas estilo art nouveau, como o Teatro Central (que sempre pretendeu ser uma réplica em ponto menor do Teatro Municipal carioca) e o cinema Palácio, orgulhos dos habitantes da cidade.

Tal processo, entretanto, não ocorria em lugares onde predominava a atividade agrária, assentada no patriarcado, como em Três Corações, no sul de Minas. Aí, a vida social restringia-se às festas religiosas e a comemorações familiares, exibindo traços ainda de épocas bem anteriores, mais semelhantes à época do Império que à da República.

Não se celebravam atrizes francesas nem a vida mundana das confeitarias e cafés, à moda parisiense. A grande preocupação cultural dos tricordianos, naquele momento, era com a Igreja Matriz, que estava em péssimo estado de conservação, acabando por ser demolida e, em seu lugar, construída uma nova igreja, inaugurada em 1928.

Para se ter idéia da importância do fato, vale lembrar que os festejos comemorativos dessa inauguração duraram seis dias. Entretanto, não se tinha noção do valor histórico e artístico do patrimônio religioso, por isso os santos barrocos foram substituídos por imagens de fabricação industrial. É o que aconteceu, por exemplo, com a imagem de São Sebastião, cujo original encontra-se até hoje guardado no coro da matriz, uma vez que cedeu lugar ao santo quase de tamanho natural, doado pelo prefeito da época, Odilon Rezende, enquanto as imagens restantes foram levadas para cidades próximas, como Campanha, Mariana e Diamantina.

Constata-se que a reconstrução da Igreja Matriz da Sagrada Família implicou a introdução de elementos pictóricos e arquitetônicos novos, que modificaram o caráter da construção primeira, numa tentativa de inserir o moderno numa cidade que ensaiava sua urbanização. Ainda que o mundo agrário fosse propício à mentalidade religiosa significativamente apoiada na tradição, o povo não conseguia separar o conservadorismo católico de uma vontade inclinada para as novas tendências culturais que surgiam nos grandes centros urbanos do país. A população de Três Corações experimentava a ambigüidade de não querer vivenciar o modernismo, mas desejar ser moderna.

É nesse ambiente de ânsia modernizante mesclada com o desconhecimento do valor do patrimônio artístico e histórico que Godofredo Rangel escreve Vida ociosa e outras obras, ainda não analisadas com o rigor acadêmico que merecem, a ilustrar as relações entre o imaginário local e os produtos culturais que resultaram desse tempo e desse espaço.

Sabe-se, ao ler a biografia de Godofredo Rangel, que estudou direito em São Paulo, onde participou do Cenáculo, grupo de rapazes com pretensões literárias e intelectuais, que, além de escrever para jornais e revistas do circuito comercial propriamente dito, editavam jornais de pequena circulação, com o propósito de discutir os assuntos que mais chamavam a atenção do público, quando se reuniam em uma pequena casa, por eles denominada Minarete. Mais tarde Godofredo Rangel dedica-se à magistratura e realiza uma passagem rápida por Três Corações.

Pode-se dizer que, em verdade, a vida no interior não foi decisiva para sua atuação nas letras, mas, sem dúvida, as lembranças da infância e da adolescência tiveram ressonâncias em sua escritura. Não se quer fazer uma relação redutora entre vida e obra, apenas salientar que entre elas não existe um abismo e, sim, um envolvimento recíproco.

Através de suas obras, o autor restabelece indefinidamente a distância que as torna possíveis e que elas tornam possível: os indivíduos recolhem-se para criar, mas criando, adquirem os meios de validar e preservar esse recolhimento. A escrita não é tanto a expressão do vivido de uma alma que foge dos homens quanto um dos pólos de um delicado jogo bio/gráfico. O recolhimento não é tanto um “tema” da obra quanto seu foco sempre ativo, alimentado por uma efetuação que ele estrutura e que o estrutura (MAIGUENEAU,1995: 56).

Vida ociosa relata um intervalo de tempo na vida de um juiz, que vai ao interior para descansar das questiúnculas que sua profissão lhe obriga a resolver, ou melhor, para recolher-se e fazer desse ato o tema de sua narrativa.

O contato com as pessoas simples que pertencem a sua história de vida é o pretexto para avaliar positivamente o caráter daqueles que, mesmo sem ter recebido uma instrução sistematizada, são capazes de admirar os mais afortunados e dedicar-lhes amizade incondicional.

A linguagem é parnasiana, muito longe das modificações introduzidas pelos modernistas. O termo parnasiano não é aqui usado de maneira valorativa e, sim, para demarcar uma posição estética. Lembre-se de que

Os parnasianos não visam a uma formulação “clara”, em que o pensamento atravessaria uma palavra submetida a um código de conveniência; pretendem elaborar enunciados perfeitos, subtraídos à corrupção do mundo, textos minerais (“esmaltes”, “camafeus”, “mármores”...) que exibem o trabalho que custaram, que incluem, por assim dizer, a gesta heróica que os tornou possível (MAINGUENEAU, 1995: 53).

O investimento na estética parnasiana não é a forma simples de um conteúdo, é uma dimensão que constitui sua obra. Percebe-se facilmente a cumplicidade entre o vivido pelo menino mineiro e a criação literária. As raízes agrárias afloram para exibir a distância que afasta Godofredo Rangel de um Mário de Andrade, de um Oswald de Andrade, ou de qualquer outro participante da Semana de 22; é uma distância similar a que se estabelecia entre Três Corações e a antiga Capital Federal. Ou mesmo entre Três Corações e Juiz de Fora. Verifiquem-se os seguintes trechos, em que é possível comparar Godogredo Rangel (tricordiano) e Murilo Mendes (juiz-forano):

A estrada. Um resto de melancolia da noite ainda se exprime no cricrilar transnoitado dos últimos grilos; em compensação, o hesitante rangido com que as primeiras cigarras ensaiam a música do dia, o crescendo de pios e gorjeios na grande mata do outro lado do rio, anunciam o dia que alvorece (RANGEL, 1934: 31).

Faço o footing na rua Halfeld da minha infância e adolescência; os fundadores da cidade são alemães, a música é muito obedecida aqui, ainda não é tempo de rádio, eu mesmo toco piano, pianino, de ouvido; passam donas de olhos, boca e outras delícias vedadas aos menores de 17 anos, inclusive uma certa dona ourodentada, quadris provocantes, pelo jeito de andar mostra que é uma mulher-dama ou mulher drama (MENDES, 1995: 957).

Em Murilo Mendes é possível ouvir o murmúrio da frivolidade e, apesar da sutileza do discurso, a celebração da luxúria que, vindo do Rio de Janeiro, fazia eco na Zona da Mata. Em Godofredo Rangel percebe-se que a admiração pela natureza torna necessária sua enunciação e é invocada para sustentar pela escrita um sentimento que a vida “verdadeira” já não lhe dá oportunidade de experienciar com freqüência.

O escritor exprime suas emoções, sua posição diante do mundo, usa a palavra para colocar-se frente aos problemas de seu tempo, ou como afirma Maingueneau, “Portanto a obra só pode surgir se, de uma maneira ou de outra, encontrar sua efetuação numa existência” (MAINGUENEAU, 1995: 54). O texto acima citado compõe as primeiras palavras de Vida ociosa e corresponde a um espaço a que o escritor não mais pertence, todavia que ainda está presente em sua memória, espaço este que, simultaneamente, localiza-se em dois tempos, o passado interiorano e o presente citadino.

A enunciação se faz, pois, com um distanciamento que não consegue ocultar o autor por intermédio de quem a escritura se manifesta e que se situa na fronteira indefinível de tempos diferentes, porém interpenetrantes.

Se contrapusermos Godofredo Rangel aos escritores paulistas dessa época, como Mário e Oswald, por exemplo, ver-se-á que os últimos eram filhos de uma cidade que já se anunciava como “desvairada”, no dizer do primeiro. São Paulo emergia como a ponta visível de uma belle époque tropical que contracenava e rivalizava com o Rio de Janeiro. A existência no campo não ocupava o terreno de suas preferências, nem mesmo como matéria de suas discussões intelectuais.

A vinda dos emigrantes europeus, o poder econômico do café e as indústrias que começavam a decidir os destinos da nação formavam um ambiente e propiciavam um modo de viver que em muito se distanciava das pacatas cidades do interior, mineiras ou de outro estado qualquer, que permaneciam ligadas ao imaginário colonial.

Se compararmos A escrava que não é Isaura ou algum dos contos de Mário de Andrade, como O peru de natal, por exemplo, com as obras de Godofredo Rangel, ver-se-á que a ironia constatada em ambos os autores é de ordem diferente, embora nos dois casos sejam estratégias discursivas que levam em conta a dimensão interativa do funcionamento da língua. Em Mário de Andrade tem-se um destaque quase explícito para o aspecto sócio-político, enquanto em Godofredo Rangel a circunlocução da ironia é muito mais difícil, por ser menos claro o sentido oculto pela superfície textual, a relação entre o dito e o não-dito.

A ironia remove a certeza de que as palavras signifiquem apenas o que elas dizem. Mentir faz o mesmo, é claro, e é por isso que o ético assim como o político nunca estão muito abaixo da superfície em discussões sobre o uso da ironia e as respostas a ela. Ela já foi até chamada de um tipo de “gás lacrimogêneo intelectual”. A ironia obviamente deixa as pessoas desconfortáveis. Diz-se que ela desmente e desvaloriza, geralmente porque ela distancia (HUTCHEON, 2000: 32).

Em um escritor que, mesmo conhecendo a cidade grande, nela não se sente inteiramente à vontade, a ironia vai manifestar-se de forma velada, exigindo do leitor a possível inferência de suas intenções.

Mário de Andrade, por exemplo, acostumara-se a lidar com políticos e com as frivolidades da sociedade paulistana, conhecendo também seu negativo.Em sua obra aparece o baixo mundo de cafetões, homossexuais e prostitutas, principalmente estrangeiras, figuras rejeitadas pela belle époque européia que tentavam algum sucesso em terras do Novo Mundo; seus escritos são uma navalha que corta as feridas ocultas ou mal encobertas do tecido social.

Murilo Mendes, também irônico, dedica-se à recordação em A idade do serrote, espécie de autobiografia ficcional. Entretanto, o que se pode constatar nessa narrativa não é um desejo de voltar às origens e rever a Juiz de Fora que se perdeu, ao contrário, há uma grande vontade de abandonar o local de nascimento e entregar-se ao mundo, anunciando o homem cosmopolita que em que ele se tornou.

Ainda menino eu já colava pedaços da Europa e da Ásia em grandes cadernos. Eram fotografias de quadros e estátuas, cidades, lugares, monumentos, homens e mulheres ilustres, meu primeiro contato com um futuro universo de surpresas. Colava também fotografias de estrelas e planetas, de um ou outro animal, e muitas plantas (MENDES, 1995: 973).

Por sua vez, homem culto, habitando pequenas vilas onde a literatura e as artes eram pouco celebradas, Godofredo Rangel nunca foi um homem do mundo.Permaneceu em Minas, sentiu seus dramas, por isso ironiza a falta de oportunidade que os jovens pobres, mesmo possuindo talento e persistência intelectual, sofrem por causa das condições econômicas. Sua ironia é menos impactante que a de Mário ou Oswald de Andrade, talvez menos sarcástica que a de Murilo Mendes, contudo nem por isso menos provocativa. O cenário em que cada um desses autores escreve é particular, o propósito diferente de cada um fará com que os meios de expressão também sejam diferentes.

Isso fica bem notado na criação da personagem Américo

Américo fora toda a vida o orgulho da família, o seu grande homem; e todos lastimavam que não houvesse seguido uma carreira superior. Desde criança revelara inclinações destoantes do seu meio.Em pequenito, enquanto os outros fedelhos andavam a correr e pegar animais, ou brincavam de “tempo será”, ele deixava-se ficar espichado, de queixo no chão, a passar figuras do “Manual do Criador de Galinhas” (RANGEL, 1934: 65).

Nessas condições, é possível verificar que a ironia tem um componente afetivo.

Não se pode limitar a ironia a um puro não-dito, nem a uma substituição facilmente identificável. Quer-se afirmar que a cenografia do texto provoca no autor uma necessidade de expressar as idéias que ele defende e seu posicionamento crítico diante dessas mesmas idéias, reiterando o discurso como um ato, a inscrição da enunciação no gênero discursivo e sua incapacidade de separar-se do contexto em que foi produzido.

Em Vida ociosa a palavra se mantém próxima da natureza, praticamente durante toda a narrativa. Assim, a enunciação é atravessada por aspectos da vida rural, pela caracterização positiva de alguns personagens, negativa de outros, pelos costumes simplórios, pelas formas de lazer que ainda lembram os meios de sobrevivência.

─ Pois hoje é quinta, não se lembra? Os peixes já estão pulando na cachoeira. O doutor sabe o rumo, é tocar. Nada de preguiças. Estou hoje disposto até a montá-lo à força no animal.

Pedi, objetei, reagi─ tudo baldado. Vi-me sem apelo, escanchado no quadrúpede. Supliquei ainda, quase lacrimoso, mas uma palmada na anca da montaria cortou cerce as últimas esperanças, despedindo-a em trote acelerado (RANGEL, 1934, p.196).

Examinando a obra de Godofredo Rangel, verifica-se a proximidade entre o texto e o mundo vivido pelo autor, que se recusa a efetuar um corte nessa relação, recusa essa provocadora de estreito liame entre o etos discursivo e a posição diante do mundo. Daí a diferença de estilos, as variações temáticas em autores de classe social e de tempo semelhantes. Godofredo Rangel não cresceu experimentando a belle époque das capitais, nem a belle époque juizforana; permaneceu, ainda que distante no espaço, um tricordiano incapaz de separar-se da memória do local onde nasceu.


 

REFERÊNCIAS

HUTCHEON, Linda.Poética do pós-modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

MAINGUENEAU, Dominique.O contexto da obra literária. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

MENDES, Murilo. A idade do serrote. In: Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

RANGEL, Godofredo.Vida ociosa. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1934.

 

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