A ITERATIVIDADE NO POEMA O NAVIO NEGREIRO

Amós Coelho da Silva (UERJ e UGF)

Antônio Frederico de Castro Alves (14/03/1847- 06/07/1871) nasceu na fazenda Cabeceiras, Curralinho, hoje cidade Castro Alves, Bahia. Muito cedo se entusiasmou pelas idéias abolicionistas e liberais do tempo da mocidade acadêmica, durante sua estada em Recife, preparando-se para o seu ingresso na Faculdade de Direito de São Paulo, onde teve como colegas Rui Barbosa e Joaquim Nabuco.

Influenciado pelo poeta francês Victor Hugo, como todos da fase de 1850 a 1870, assumiria uma retórica altaneira, cheia de antíteses e hipérboles, abordando temas sociais e políticos. Mas o hugoanismo, termo tirado do nome do poeta francês, passou a denominação de condoreirismo, conforme sugeriu Capistrano de Abreu, devido à sua inspiração tão profunda quanto à altura do vôo do condor, símbolo da América do Sul nos Andes. A retórica condoreira já estava presente nas páginas de Tobias Barreto et alii, mas Castro Alves foi bem mais representativo, porque se definiu de modo pragmático, embora não tivesse sido o introdutor do tema do escravo na poesia brasileira. Na poesia abolicionista, o poeta de A Cachoeira de Paulo Afonso (1876) se apresenta fecundado por sincera adesão a uma causa social e humanitária de caráter atual e dá expansão ao seu talento de orador.

Embora tenha tido ampla vertente lírica dentro do Romantismo, ressaltemos dele apenas as suas características do espírito reformista, sua fé e sua liberdade criadora, tão presentes na coletânea Os Escravos (1883), que reúne, além de O Navio Negreiro e Vozes d’África, outros poemas abolicionistas.

O Brasil, na segunda metade do século XIX, convive com o tráfico de escravos, embora tenha sido proibido pela Lei Eusébio de Queirós de 1850, mas ainda havia resistência política da elite agrária escravocrata para emperrar o processo da Abolição, que só chegaria em 1888. O pensamento abolicionista e as idéias republicanas crescem contra o governo monárquico. É nesse contexto que surge a poesia grandiloqüente de Castro Alves, como arma poderosa na defesa dos ideais libertários.

O Navio Negreiro foi declamado por Castro Alves em 1868, em São Paulo. São dezoito anos após a Lei Eusébio de Queirós. Mas pergunta-se: será que ainda ouvimos ou lemos notícia de trabalho escravo ainda hoje no Brasil do século XXI? Ou o homem ainda continua a ser aquilo que Plauto disse em sua peça Asinaria, v.495, quando o mercador afirmou que não podia dar dinheiro a um desconhecido porque, enquanto desconhecido, já que Lupus est homo homini non homo, o homem é lobo, e não homem, para outro homem? A expressão plautina parece se inspirar no provérbio: Homo homini lupus, o homem é um lobo para outro homem.

Nil sub sole novum, nada há de novo sob o sol.(Eclesiastes, Prólogo, na tradução da Vulgata) Podemos recuar de novo no tempo: Nil admirari, não se admirar de nada (Horácio, Epistolas 1,6,1). Ou seja, sabemos bem que o homem sempre quis eliminar a tirania ou o despotismo, desde que ele seja o senhor da situação.

Este poema está divido em seis partes. Na primeira envolve-se o leitor numa navegação que ignora o próprio subtítulo do poema: Tragédia no Mar. O poeta aí observa a beleza da natureza. Com recorrência a mecanismos semânticos em relação a hipérboles, metáforas, antíteses, ritmos, que incluem - além da rima, a aférese: ‘Stamos em pleno mar... cuja intenção, embora formal, note-se a manutenção do verso decassílabo, conquista o receptor e o persuade pela reincidência; assim, a iteração ou repetição é uma regra para gerar construções discursivas, como o é também a contração e as crases, embora aqui sejam apresentados exemplos abaixo colhidos em Vozes d’África, vale a pena a digressão ao tema, porque são bem típicos do estilo de Castro Alves. Estão respectivamente nos parênteses: Quan(doeu) passo no (Saa) (raa)mortalhada; ou mesmo a sua pontuação.

O Navio Negreiro é um discurso poético fundado na redundância de múltiplos traços, que não se esgota na simples interpretação ou indicação de metáforas, hipérboles, ritmos ou observação do seu estilo de pontuação.

Ainda na primeira parte, o ouvinte ou o leitor está diante de decassílabos, retomados a cada estrofe com o quase hemistíquio ‘Stamos em pleno mar... E desse modo, se vê num ambiente antitético, mas surpreendentemente compatível com os seus sentidos: Embaixo – o mar... em cima – o firmamento... Como se a imensidade do painel, enfatizado por expressões que denotam grandeza as vagas marítimas, o incomensurável firmamento, astros, dois infinitos, contaminasse nossos sentidos com a visão do condoreirismo do poeta. Elementos estes que ele diz ser plácidos, sublimes, música suave, livre poesia..., e não devem dar espaço a nenhuma navegação, muito menos se esta for escorregadiça, como é o doudo cometa.

Mas navegar é preciso, por isso, o poeta, que mantém o discurso em primeira pessoa como se estivesse presente, quer compartilhar da viagem do veleiro brigue e insiste curiosamente com pedidos exclamativos, indagações, sem sucesso e nem retorno. Pede, então auxílio, criando, neste momento, um símbolo condoreiro: Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas... Aqui, surge uma figuração poética, como na Autopsicografia, de Fernando Pessoa (ele-mesmo), no sentido de:

O poeta é um fingidor,

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

Tal lugar é dimensionado pela hipérbole, contida na iteratividade de expressões, que conotam grandeza, pois ele passa a mencionar a imensidade, o sem fim a ponto de poder existir até dois infinitos. Tudo imbricado em antíteses, como Qual dos dois é o céu? Qual é o oceano?...

Porém, vamos cotejar esta parte com a quinta. Descobriremos nesta comparação uma oposição entre a paisagem que nos foi descrita até agora e a da quinta parte, que é o mar poluído pelo crime. Este novo momento é aquele em que há Tanto horror perante os céus..., este borrão, loucura ou verdade. A primeira parte dá impressão contém a suave paisagem, como já se disse, e até concordamos com algumas edições do poema, que circulam por aí e registram a expressão majestade não escrita por Castro Alves. O que é uma pena, pois, se poderíamos interpretar esta primeira parte como um painel majestoso. Vejamos (CHEDIAK, 2000):

Bem feliz quem ali pode nest’hora

Sentir deste painel a majestade!...

Mas o manuscrito de Castro Alves registra:

Bem feliz quem ali pode nest’hora

Sentir deste painel a imensidade!...

Além disso, na quinta parte, Castro Alves invoca a maior entidade do universo e tal apóstrofe se insere no seu estilo de hipérbole: Senhor Deus dos desgraçados! e pede em outra apóstrofe que o mar, local primordial, um espaço de ação in illo tempore, naquele tempo, cheio de mistério e de convulsões, como tufão e onde tudo desaba Astros! noite! tempestades!, para que, pela instância do poeta, apague tudo, até o brigue imundo, como ele o chama lá pelo final do poema.

Também nesta parte cinco há o que se pode denominar de poli-isotopia, cuja tensão advém de metáforas, antíteses, ainda hipérboles, sempre que o poeta tenta descobrir Quem são estes desgraçados e, como não pode faltar a repetição, marcadora de um ritmo, ele enfatiza com a pergunta: Quem são?... A interrogação é uma das principais marcas de linguagem humana. Desde tenra idade o homem identifica o mundo através da indagação. Pode-se dizer que a pergunta é a base de uma investigação científica. Castro Alves reincide-a em suas múltiplas estâncias, como na primeira estrofe da parte final: mas que bandeira é esta, / Que impudente na gávea tripudia?!...; ou, como na quinta parte:

Ó mar, por que não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?...

Daí, seguem-se descrições por antítese, distribuídas regularmente na alternância de cada estrofe, quer dizer, uma indagará, por exemplo, Quem são este desgraçados, outra alternará: São os filhos do deserto... A tribo dos homens nus; de novo: São mulheres desgraçadas e a outra: Lá nas areias infindas... crianças lindas; mais uma vez: Depois o areal extenso... e Ontem a Serra-Leoa,... Sob as tendas d’amplidão...

Mas o nome da África não é mencionado, mas sempre identificando-a nos guerreiros ousados, tigres mosqueados, homens simples, fortes, bravos... e cá, no Brasil, Hoje míseros escravos, cúm’lo de maldade / Nem são livres p’ra... morrer...

Quanto às reticências, há não a simples lacuna ou supressão de palavras de fácil compreensão, mas o inefável, tão do gosto de uma poesia romântica, com toda a sua significação espiritualizada, a ponto de, na primeira estrofe da última parte, não admitir tanta infâmia e cobardia!...; ou aquela passagem da quinta parte, penúltima estrofe: Ao som do açoite... Irrisão!... Sendo as suas exclamações um suporte ao seu tom de indignação e repúdio ao ato escravocrata.

A leitura da segunda parte, ou seja, a história da marinha no mundo, é uma oposição ao fecho do poema; registra-se, portanto, outra antítese. Assim, Castro Alves distribuiu o compasso de sua antítese entre a primeira e a quinta e a segunda e a sexta, deixando as terceira e quarta partes para a Tragédia no Mar.

O poeta nos faz acreditar historicamente que existiria uma Espanha, uma França, uma Itália ou uma Inglaterra, as potências da época mencionadas por ele, como colonizadoras benevolentes e justiceiras, quando sabemos qual foi o comportamento histórico delas, por exemplo: Montezuma, o último imperador dos astecas, obedecendo a uma lei divina, a hospitalidade, recebeu Fernando Cortez (1485-1547), que, apesar do talento e trabalhos prestados à sua nação e ao mundo, destruiu cruelmente os súditos de Montezuma. Este desgostoso deixou-se morrer de fome em 1520. E por que surgiu o apartheid na África do Sul, senão por causa da ganância humana de descendentes de colonizadores ingleses e holandeses?

E assim, retomando a nossa interpretação, Castro Alves põe em relevo as cantilenas / Requebradas da sensual Espanha, ou a Itália, Terra de amor, ou a predestinação notável da França, bem como a gloriosa Inglaterra. Tudo isso deverá, na sexta parte e logo na primeira estrofe, contrastar com um povo que a bandeira empresta / P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!..., que é o povo brasileiro.

O leitor pode até se distrair e pensar que Castro Alves esteja elogiando a bandeira brasileira, devido ao efeito da cadência alcançada na repetição fônica desta aliteração, que retira do nome Brasil, o conjunto de fonema /b/, /z/, /b/, /z/, /b/, /j/, /b/, /s/, como se a sucção sonorizasse similarmente a um beijo: Auriverde pendão da minha terra, / Que a brisa do Brasil beija e balança. Após esse efeito, segue-se uma metáfora tocante: Estandarte que a luz do sol encerra, / As promessas divinas da esperança...

É bem expressivo o fato de Castro Alves quebrar essa seqüência com um anacoluto. Como sabemos é uma construção interrompida, típica de registro de oralidade. Mas Castro Alves sentiu que o seu amor pela pátria estava superando a ruína moral desse povo diante dos seus olhos e tal sedução ele a rejeitou. Daí, ele se voltar para o Brasil e dizer-lhe:

Tu, que da liberdade após a guerra,

Foste hasteado dos heróis na lança,

Antes te houvessem roto na batalha,

Que servires a um povo de mortalha!...

Observando bem, notamos que tu deveria ser sujeito oracional, mas ficou apenas como antecedente da oração adjetiva e o seu predicado foi eliminado. É interessante que aparecerá como objeto direto da locução houvessem roto, na qual roto está em lugar de rasgado, porque o poeta explorou a aproximação existente entre o particípio e o adjetivo. Ou seja, roto vem do latim, pela forma erudita ruptus, -a, -um, que significa rasgar, quebrar. Eis o compromisso do poeta: Andrada! arranca este pendão dos ares! / Colombo! fecha a porta dos teus mares!

A terceira parte é o espanto do poeta. É a descoberta da tragédia que ocorre no tombadilho de um navio negreiro. Na parte que se segue, a quarta, ele a chama de sonho dantesco. Neste passo, as suas palavras nos fazem ver, ouvir, sentir empaticamente, respirar o clima de terror e, na segunda estrofe, repudiar o paladar das crianças, em cujas bocas pretas / Rega o sangue das mães. A posição das palavras na oração confunde o leitor que não procurar distinguir o sujeito oracional. Mas o que quer Castro Alves com isso? Ele quer a expressividade sonoro dos fonemas do ato do chicote estalar, acentuando a crueldade dos marinheiros no sentido das palavras do comandante:

Vibrai rijo o chicote, marinheiros!

Fazei-os mais dançar!...

Quer também imitar, na disposição métrica: ora pela extensão do verso, ora pela alternância de dois decassílabos com seqüência em redondilhas menor, compondo seis estrofes, a própria forma do chicote cruel no ar. Como se este fosse a serpente:

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais...

O capitão é o próprio Satanás: E ri-se Satanás!... Nesta expressão, fica concentrado o repúdio à brutalidade. Só mesmo uma entidade tão maligna poderia praticar tamanha atrocidade. E faz a repetição da própria estrofe, cuja metade é a mesma do início desta parte:

E ri-se a orquestra irônica, estridente...

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais...

A harmonização das repetições, no sentido de bis repetita placent, as coisas duas vezes repetidas agradam, tornou o poema de Castro Alves singular. Soube ele escolher traços semânticos virtuais, amplificando e dramatizando a sua eloqüência condoreira, de modo a redimir o escravo do sentido insignificante e secundário em que estava imerso cotidianamente e elevá-lo à condição romanticamente trágica, impondo de tal modo à atenção daquela sociedade tão acostumada e anestesiada pelo hábito de três séculos de escravidão, que superou a banalização de ser normal nascer escravo e é desse modo pungente que lamenta e rechaça:

Fatalidade atroz que a mente esmaga!

Extingue nesta hora o brigue imundo

O trilho que Colombo abriu nas vagas,

Como um íris no pélago profundo!

Ritmo, como se viu, foi decorrente de movimentos diversos na cadeia do discurso. Em figuras de linguagem, com regularidade nos intervalos, bem como no material fônico, pausa respiratória, entoação etc. Ora, um tique-taque do relógio, um trote da marcha do cavalo ou uma regularidade de som da marcha dos soldados promovem um ritmo. Na linguagem, a rima veio de um compasso de freqüência pela igualdade dos sons em dada posição no verso, em geral no fim, ou seja, foram distribuídos sons idênticos com intervalos regulares, tornando a enunciação mais expressiva.

 

Bibliografia

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de Filologia e Gramática. Rio de Janeiro: J. Ozon, 1968. 409 p.

CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. Tradução de Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2004.

CHEDIAK, Antônio José. Castro Alves: Tragédia no Mar (O Navio Negreiro). Cotejo do manuscrito com 63 textos integrais e 5 parciais, no total de 15998 versos. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2000. 695 p.

http: //www.secrel.com.br/jpoesia/calves.html

JOTA, Zélio dos Santos. Dicionário de Lingüística. Rio de Janeiro: Presença, 1976.DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de Lingüística.São Paulo: Cultrix, 1978.

MOISÉS, Massaud e PAES, José Paulo. Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1980.

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SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1976.

 

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