A METÁFORA INSTAURADA
NA LINGUAGEM DE CAIO FERNANDO ABREU
Maria da Penha Pereira Lins (UFES)
Redefinindo a metáfora
Numa visão tradicionalista, a metáfora é definida como figura de ornamento. Aristóteles, em sua obra Poética, concebe essa figura como “a transladação do nome de uma coisa para outra coisa”. Desse modo, compreende-se que o recurso do uso da metáfora permite transportar não apenas o nome de uma coisa para outra, mas também de uma espécie para o gênero, de uma espécie para outra espécie, ou, ainda, por analogia.
Moisés (1993) em um estudo exaustivo de conceituação da metáfora, admite que é com Michel Bréal (Essai de Semantique, 1908), no interior dos estudos lingüísticos e com Charles Sanders Pierce (Collected Papers, 1931, 1958), no arcabouço dos estudos sobre Semiótica, que a metáfora passa a ser estudada a partir de novos vieses semânticos e semióticos, passando a ser vista como transformação de sentido, deixando-se, assim, de lado o que se refere à forma, considerada no que diz respeito à comparação.
Entre outros estudiosos, Moisés lembra que dentro desse contexto faz-se necessário salientar a teoria de I. A.. Richards, que define a metáfora como a junção de duas idéias: tenor e vehicle; a primeira equivaleria à “idéia original” e a segunda à “idéia tomada emprestada”; “aquilo que está sendo dito ou pensado” e “aquilo com que está sendo comparado”; “idéia subjacente” e “qualidade imaginada”; “significado e metáfora”; idéia e sua imagem”.
Evidencia-se, então, que a união de tenor e vehicle gerando um terceiro sentido, diferente daquele que cada um apresenta isoladamente. Esse sentido gerado representaria o resultado de características comuns a ambos.
Além de Richardas, o autor cita também Philip Wheelwright (1968), que bifurca o termo “metáfora” em dois: 1) epífora, que assinalaria a “transferência de extensão de sentido através da comparação” e 2) diáfora, que indicaria a “criação de um significado por justaposição e síntese”. Assim, ocorreriam dois movimentos semânticos (phora); o primeiro constituiria uma “base literal de operações”, e o segundo pressuporia o “surgimento de novos significados e qualidades em conseqüência do agrupamento de vocábulos ou frases.
Para Moisés (1993), a metáfora, caracterizada como “máscara”, “embuste”, “abstração”, constitui uma equação semântica e não sintática, pois é o sentido que importa, não a ortografia, a fonética ou a morfossintaxe. A sintaxe exerceria o papel de assessoria complementar à semântica.
Vendo, assim, a metáfora como equação semântica, Moisés conclui que não seria um recurso exclusivo da linguagem literária, pois também ocorre na linguagem falada com igual freqüência e densidade, distinguindo-se pela função e pelo objetivo. A metáfora seria, por isso, instrumento universal, implicado no próprio ato verbal de qualquer espécie. Seria “um princípio onipresente da linguagem”; metáfora e signo verbal constituiriam quase-sinônimos.
Nesse ponto, o autor remete novamente a I. Richards para, em outros termos, explicar que metáfora e pensamento, ainda que o mais rudimentar, se entrelaçam a ponto de admitir-se que “o pensamento é metáfora”.
Refletindo sobre a polêmica que há no que diz respeito à distinção entre metáfora lingüística e metáfora literária, Moisés (1993) sumariza:
1. toda metáfora é lingüística;
2. a distinção entre níveis de articulação da metáfora depende de sua natureza, função e objetivo.
Assim, a classificação da metáfora pode ser representada na forma de um “continuum” ordenado de 0 a 10, em que a metáfora lingüística não literária (científica, religiosa, filosófica) se aproximaria do número 1 e a metáfora lingüística literária se encaminharia para o número 10, incluindo-se nesse “continuum” desde a metáfora cotidiana até a filosófica, passando pela metáfora científica. Desse modo, a metáfora não-literária estaria mais ligada ao espaço da denotação, enquanto a literária se ligaria ao espaço da conotação.
Essa é uma visão que se aproxima do enfoque funcionalista dado à linguagem. Entendendo a língua como instrumento de interação verbal, com a função de estabelecer relações comunicativas entre usuários, evidencia-se a necessidade de expandir significados na expressividade do dia-a-dia. Isso leva ao uso de expressões em sentidos outros que não o literal, como modo de explicitar em termos simbólicos o pensamento abstrato.
A metáfora exerce esse papel de propiciar a extensão da capacidade de conceituar e, por conseguinte, de facilitar a comunicação. Servindo a essa função deixa de ser vista como uma simples figura ornamental do discurso, para se apresentar como um elemento fundamental no processo de compreensão entre interlocutores. Institui, assim, o jogo entre o concreto e o abstrato que permeia o exercício mental de comunicação lingüística.
Nessa linha de definição que considera a metáfora mais como questão de linguagem e menos como ornamento retórico, Lakoff e Jonhson (2002) afirmam que a metáfora está infiltrada na vida cotidiana, no que diz respeito ao pensamento e a ação. Esses dois autores se referem às metáforas a partir da importância que elas ganham no dia-a-dia, por estruturarem o pensamento. Exemplificam com o fato de que quando pensamos em certos conceitos abstratos, como o tempo, nós o fazemos sobretudo através de metáforas. O domínio significativo “Tempo é dinheiro”, por exemplo, permite o uso de um conjunto de expressões metafóricas do tipo: “estamos perdendo tempo”, “ganhando tempo”, “gastando tempo”, “investindo tempo”, “economizando tempo”, entre outras. Isso explica que nosso sistema conceitual ordinário é fundamentalmente metafórico por natureza. Os autores elaboraram a seguinte conceituação: “a essência da metáfora é compreender uma coisa em termos de outra”.
Outro exemplo citado por Lakoff e Jonhson (2002) é “Discussão é guerra”, a partir do qual estruturam-se expressões cotidianas tais quais: “seus argumentos são indefensáveis”, “ele atacou todos os pontos fracos”, “suas críticas foram direto ao alvo”, “destruí sua argumentação”, “jamais ganhei uma discussão com ele”, “se você usar essa estratégia, ele vai esmagá-lo”, “ele derrubou todos os seus argumentos”, que explicitam que quando falamos sobre discussão estamos falando em termos de guerra. Os autores explicam que discussão e guerra são atividades completamente diferentes – discurso verbal e conflito armado – e as ações correspondentes são igualmente diferentes, mas discussão é parcialmente estruturada, compreendida, realizada e tratada em termos de guerra. O conceito é metaforicamente estruturado, a atividade é metaforicamente estruturada e, em conseqüência, a linguagem é metaforicamente estruturada. Essa maneira ordinária de se falar sobre discussão em termos de guerra pressupõe uma metáfora da qual raramente tomamos consciência. Desse modo, a linguagem da discussão não é poética, ornamental ou retórica; é literal.
Além dessas metáforas chamadas estruturais, em que um conceito é estruturado metaforicamente em termos de outro, Lakoff e Johnson focalizam também as metáforas orientacionais e as ontológicas. As primeiras, ao contrário das estruturais, organizam todo um sistema de conceitos em relação a outro. A maioria delas têm a ver com a orientação espacial do tipo para cima/ para baixo, dentro/ fora, trás/ frente, em cima de/ fora de, fundo/ raso, central/ periférico. Essa orientação espacial faz gerar conceitos como “feliz é para cima” e “triste é para baixo”, que permitem dizer “estou para cima hoje” ou “estou me sentindo para baixo”. Esse tipo de metáfora é de ordem arbitrária, tem base em nossa experiência física e cultural; não é construído ao acaso, e pode variar de uma cultura para outra.
As metáforas ontológicas referem-se ao fato de podermos compreender nossas experiências em termos de objetos e substâncias, o que nos permite selecionar partes de nossa experiência e tratá-las como entidades discretas ou substâncias de uma espécie uniforme.
Lakoff e Johnson afirmam que uma vez que podemos identificar nossas experiências como entidades ou substâncias, podemos referir-nos a elas, categorizá-las, agrupá-las e quantificá-las e, dessa forma, raciocinar sobre elas. É a experiência com objetos físicos, principalmente com nosso corpo, que fornece a base para uma variedade de metáforas ontológicas, isto é, formas de conceber eventos, atividades, emoções, idéias, etc. como entidades e substâncias. Para esses autores, talvez as metáforas ontológicas mais óbvias sejam aquelas em que ocorre a personificação; os objetos físicos são concebidos como pessoas, como nos exemplos: “A sua teoria me fez compreender o comportamento de frangos criados em máquina industrial”, “Este fato ataca teorias clássicas”, “A vida me trapaceou”, “A sua religião lhe diz que ele não pode beber bons vinhos franceses”.
Como se vê, a personificação representa uma categoria que recobre uma enorme gama de metáforas ontológicas, permitindo dar sentido a fenômenos do mundo em termos humanos, o que facilita conceber algo abstrato em termos explicativos, com vistas a fazer sentido para a maior parte das pessoas.
Vilela (2002) utiliza as propostas de Lakoff e Johnson para analisar a linguagem no domínio da economia e avisa que ao se tratar a metáfora sob o ponto de vista da teoria cognitivista, é bom lembrar que os cognitivistas vêem não só a metáfora em si, mas a metáfora em relação à metonímia e a sinédoque, como instrumento de linguagem, quer como criações novas, quer como enriquecimento dos processos de configuração da realidade circundante: a existente e a emergente. Assim, o significado é interpretado como “conceituação”, como um processo ou o seu resultado.
As metáforas em Caio Fernando Abreu
Sabe-se que a metáfora envolve a categorização que as línguas fazem da nossa experiência. No entanto, Vilela (2002) faz a seguinte indagação: Em que medida estamos perante a metáfora (em sentido amplo) ou perante a conceituação literal, perante o protótipo/ estereótipo ou “semelhança de família”? Assim, ao se ordenar objetos, acontecimentos, experiências numa gama de categorizações, pode-se ir do mais prototípico ao mais periférico, mas considerados dentro de dada categoria com vistas a algum objetivo.
É com essa visão que será analisada a linguagem metafórica no conto Bem longe de Marienbad, do livro Estranhos Estrangeiros. A epígrafe do livro, de Miguel Torga, já dá o tom do livro, segundo seu editor: “Pareço uma dessas árvores que se transplantam, que têm má saúde no país novo, mas que morrem se voltam à terra natal”. O título Estranhos Estrangeiros remete à idéia de “diferentes” “outros”, “estranhos”. Assim, título e epígrafe já apontam para uma metaforização de forma generalizada, ou periférica, de experiência de viver em terras outras.
O conto analisado, Bem longe de Marienbad, é mais que um conto, é uma novela que se refere à trajetória de um indivíduo pelas ruas de um lugar chamado Marienbad. É uma andança em busca de algo, ou de alguém. Desse modo, pode-se definir a organização lingüística a partir do conjunto semântico VIAJAR É BUSCAR. Buscar no sentido de encontrar alguém à sua espera, como “desembarcar numa estação deserta e desconhecida para encontrar alguém igualmente desconhecido segurando meu nome num cartaz erguido bem alto”, de modo que o referencial lingüístico do texto se constrói a partir de vocábulos pertencentes ao domínio VIAJAR = BUSCAR.
No que diz respeito às metáforas ontológicas, percebe-se que o autor estrutura seu discurso numa linguagem que identifica as experiências em forma de objetos e substâncias, referenciadas como entidades, na percepção dos sentimentos experenciados. Os fragmentos transcritos abaixo exemplificam a afirmação:
1. ...naquele passo meio desconfiado dos recém-chegados a algum lugar
2. ...suponhamos ainda que tivesse me distraído nas esquinas desse pensamento (vadio, reconheço, auto referente, narcisista),...
3. ...um gesto, um resto de gesto, quem sabe a nobreza que sobra a um velho manco
4. ...no meio do olhar, uma palavra me vem à mente (...) fico a mastiga-la em voz alta muitas vezes
5. ...amoldando o quieto horror de seus corpos pelas esquinas de vidro
6. E por monstruosa delicadeza, bebo sem espanto algum
7. Esse pensamento quase me salva
8. ...porque são atos e não as palavras que podem salvar
9. ...o mapa que o vento tenta arrancar-me das mãos
10. ...a ponte iluminada... a levantar-se... como se me desse boas vindas
11. ...e a luz que chega por trás não ilumina seu rosto
12. Meu coração bate louco...
13. ...meus olhos se acostumam ao escuro
14. ...que deve ser água, talvez o mar, abraça as casas desse pequeno Marrocos
15. ...o sono também salva
16. ...a ausência de K também continua dentro do apartamento
17. ...o vento gelado na minha cara e os galhos nus das árvores à beira d’água afirmam: é quase dezembro nesta cidade...
18. ...escritura frágil, tombada para a direita como se pudesse cair da página
19. ...o céu começa a fechar-se lá fora
20. ...uma bruma lenta começa a atravessar as águas
21. ...o restaurante acendeu seu néon azul
22. Ao longe uma voz rouca de mulher cantarola sempre
23. ...escrever agora é recolher vestígios do impossível
24. Aos caminhos eu entrego o nosso encontro
25. Na face do pequeno envelope que aperto entre as mãos,...
26. ...meus dois olhos flutuando no espaço
Como se vê, os exemplos acima mostram que objetos físicos e sentimentos são personificados, revelando experiências referentes a entidades não-humanos que passam a ser vistas como humanas. Também, ao falar de eventos, ações, atividades, o autor os conceitua como objetos, estados, como recipientes.
Do ponto de vista das metáforas orientacionais pode-se dizer que a narrativa se constrói a partir da orientação PARA CIMA E PARA FRENTE. Há indicações de que, apesar de o indivíduo estar em busca de algo ou alguém, que parece não encontrar, o direcionamento para a busca é positivo, otimista, conforme se pode constatar nos exemplos abaixo:
1. ...de quem não se importa de andar de lá pra cá o tempo todo sem paradeiro, saltar do trem e subir as escadas da plataforma até o corredor de saída,..
2. ...segurando meu nome num cartaz erguido bem alto...
3. ...em grandes letras visíveis, talvez vermelhas, erguidas bem alto, as letras do meu nome.
4. Olho disfarçado mas muito atentamente para seus pés quando ele emerge do túnel e vem vindo pelo corredor...
5. ...poderá quem sabe abrir a porta rápido para que eu entre, sem descer, apenas recuando...
6. Há um hotel na minha frente..
7. Esse pensamento quase me salva. Digo quase porque embora me jogue para frente...
8. ...e decido, ainda esta noite e de qualquer maneira, sair à procura de K
9. ..,sozinho na penumbra. Depois, começo a avançar pela sala (...) Eu continuo a avançar.
10. Não quero pensar em nada. Nem mesmo voltar atrás,..
11. Eu paro de cantar. Eu abro a porta. Eu estou sorrindo...
12. Preciso pegar minhas coisas e partir. Viajar, esquecer, talvez amar
13. E continuo a procurar...
14. Aumento o som da canção, olho para fora enquanto o trem dispara sobre os trilhos fora
A intensa metaforização presente na novela Bem longe de Marienbad é indicativo de que o autor a utiliza como instrumento de expressão de sentimentos, eventos, ações, etc. na construção da história que quer narrar. Parece não haver a intenção com estética literária, ornamental. Surge da necessidade de dizer o cotidiano, de expressar-se lingüisticamente.
Referências Bibliográficas
ABREU, Caio Fernando. Estranhos estrangeiros. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
CARVALHO, Sérgio N. de. A metáfora conceitual: uma visão cognitivista. Cadernos do CNLF, Vol. VII, nº 12. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2003.
CARVALHO, Mauricio Brito de. Uma abordagem sócio-construtivista para as metáforas. Morpheus – Revista Eletrônica em Ciências Humanas. Ano 2, nº 2. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em www.unirio.br. Acessado em 13/01/2005.
LAKOFF, George & JONHSON, Mark. Metáforas do cotidiano. São Paulo: Mercado de Letras, 2002.
MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Cultrix. 1993.
PONTES, Eunice. A metáfora. Campinas: UNICAMP. 1990.
RIVANO, Emílio. Un modelo para a descripción y análisis de la metáfora. Cuadernos interdisciplinares de estudios latinoamericanos. Disponível em www.userena.cl. Acessado em 13/01/2005.
VILELA, Mário. Metáforas do nosso tempo. Coimbra: Almedina. 2002.
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