A NOITE COMO LINGUAGEM
NA FICÇÃO DE GUIMARÃES ROSA

Augusto Cesar Vassilopoulos Natal (USJT-SP)

INTRODUÇÃO

Este trabalho apresentará algumas simbologias da noite verificadas nas obras roseanas, atentando para suas significações mais importantes. Abordará as formas em que aparece e tratará dos sentidos de suas representações. Também mostrará o elo inviolável entre o panorama físico da noite em si e de seus elementos inerentes como o luar, a luz das estrelas, o escuro parcial e a escuridão plena, com a proposta metafísica, religiosa e folclórico-sertaneja do autor ficcional, destacando esta relação como parte integrante dos movimentos das narrativas, os quais variam por conta da intensa ligação entre o íntimo de personagens, como Riobaldo por exemplo, e as revelações por eles obtidas ao defrontarem com a noite.

Esta pesquisa proporcionará aos sensíveis leitores da prosa de Guimarães Rosa mais um meio de compreensão de seus textos, ou, ao menos, de certos aspectos, que trarão enriquecidos olhares de interpretação a quem se entrega à dura, porém, inestimável missão, de desvendar os mitos, idéias e cenários deste que é um dos mais dinâmicos, metafóricos e representativos autores de toda Literatura Universal.

A NOITE-IMAGÉTICA NO UNIVERSO DE GUIMARÃES ROSA

A noite. A noite que nem sempre é noite. A noite que atravessa a noite. A noite que é dia e que também é noite. A noite de trevas e luz. A noite física. A noite metafísica. A noite humana. A noite mística. A noite das lendas. A noite como uma grande cortina de negro cetim onde cândidas e radiantes estrelas se apresentam. A noite dos visionários. A noite dos cegos. A noite da Menina de Lá. A noite dos que estão aquém da noite. A noite dos desesperados. A noite dos que podem dormir. A noite dos aflitos. E dos condenados. A noite dos que se acham entre perdidos. A noite epifânica. A noite esfíngica. A noite pluma. E açoite. Paradoxo extremo. A noite rosiana. Travessia.

Guimarães Rosa é noite. Sua obra é pura e transgredida noite. Um autor com rara capacidade de emprestar inúmeros sentidos a cada um de seus dizeres e de seus não-dizeres também.

Ao explorar diversificadas apresentações e representações para a noite, Rosa leva os leitores atentos a expandirem suas reflexões sobre os textos de sua autoria, e tais reflexões abastecem com fartas munições a Crítica Literária Moderna, garantindo a sua sobrevida, evitando o esgotamento interpretativo outrora proposto pelos estruturalistas.

São inúmeras as caras e almas da noite. Há um turvo oceano de ondas cristalinas nas configurações noturnas de Rosa. Algumas dessas ondas podem ser transpostas por retinas dispostas a especular as profundezas rosianas. Se o surfista que vence a onda é o mais corajoso, com este atributo deve agir o crítico ao tentar surfar no Mar de Rosa.

Verificar atentamente cada face reveladora da noite rosiana é realizar a turbulenta e gratificante travessia rumo aos espelhos do célebre autor mineiro, o qual nos convida a penetrá-lo com os olhos, o coração, o cérebro, a intuição, a perplexidade, a indagação e um certo equilíbrio entre senso e non sense.

A NOITE-PERSONAGEM NO UNIVERSO
DE GUIMARÃES ROSA

A noite apresenta-se como um forte componente de suas narrativas, delimitador, que possui quase sempre uma função específica.

Tão vigorosa é a noite rosiana que ela chega a constituir-se personagem, e exerce influência fundamental na trama, transpassando o pano de fundo, rompendo o mero cenário. Como se fosse co-responsável por conflitos, pela modificação de cursos narrativos e de personagens, muitas vezes opera como ponto de partida para tensões, epifanias e revelações, gera instantes de clímax e indica desfechos.

Com forte carga mística, é um complemento da vida do sertanejo, como se estivessem irremediavelmente ligados. Ela pode refletir o lado obscuro ou revelador do homem do Sertão. Se o Sertão é o Mundo, poderíamos apontar o sertanejo como um tipo, além do regional, extensível ao homem universal.

Para o sertanejo de Guimarães, a noite e suas nuances características(o escuro, o negro, o silêncio, o mistério, o medo, as crendices, as crenças, o luar, as estrelas, etc.) se revestem de forte consistência mística, ou religiosa, ou ainda, permeada de uma paradoxal mistura entre ambas. Em muitos trechos de sua obra, a noite vem como propiciadora para que algo ocorra, ela delimita os acontecimentos. Para o sertanejo de Rosa, à noite tudo é possível de acontecer. A noite exerce fascínio por seu mistério. A claridade se esvai, então o misterioso ganha espaço e corpo, o Universo fica bastante aparente, descoberto; abre-se uma brecha para o desconhecido. O homem deixa de fazer para apenas ser. Ele se dá conta de sua pequenez ou de sua grandiosidade diante das figurações semeadas pelo decurso da noite.

REVELANDO FACES DA NOITE
EM ALGUMAS OBRAS ROSIANAS

Em Ripuária, conto de Tutaméia, Lioliandro (aquele que lê os liandros do rio) entrega-se à uma busca metafísica, incompreendida por ele, pela surpresa guardada na noite. Ele atreve-se a nadar até desaparecer ao alcance da madrugada. Certa vez, uma canoa sem dono chega ao seu encontro, e ele a batiza como Álvara (aquela que permite o claro). Não tarda e durante uma festa em sua vila ele conhece uma convidada oriunda de outro vilarejo, Álvara, também. Apaixona-se e descobre com a ajuda da amada a vista para o outro lado do continente, onde ela mora. Ali estão luzes acesas pela eletricidade. Temos um registro epifânico de que as luzes representam a sua capacidade de emancipação como homem, a sua possibilidade de ampliação de horizontes. A travessia proporciona a Lioliandro o advento da liberdade e ele parte ao encontro do desconhecido para enfim conhecer-se. Ou seja, a noite neste conto está intimamente ligada ao escuro interno de Lioliandro, que ao aproximar-se da luz, consegue reestruturar-se como homem.

Em Quadrinho de História, também pertencente a Tutaméia, a noite suscita a consciência de um presidiário que, após ver uma mulher caminhando na calçada pelas grades, passa a se recordar incessantemente do semblante de sua falecida esposa, provavelmente por ele assassinada. As trevas da auto-consciência em questionamento se espelham no desenho da noite nesse sensacional conto de pinceladas ágeis e impressionistas.

Em O Dar das Pedras Brilhantes, conto de Estas Histórias, César Pimentel, tomado pela aversão à noite, põe-se a imaginar o destempero de Leopolda, sua amada.

Não no não-adiar do Fecha-Nunca – no todo orbe da noite – foro de trementes danças e arrumadas luzes. Imaginava nele imperadora a Mulher; a estragar-se esbrasadamente com rigor de audácia. (ROSA, 1994: 908)

Quando o narrador nos indica a noite como um foro de trementes danças e de arrumadas luzes, sugere a nós que, em contato com a mesma, desencadeiam-se tanto percepções nítidas quanto nebulosas nos diferentes seres que a sentem e que a ela atribuem seus próprios valores. Ou seja, a reflexão individual do homem é que costuma conferir valores positivos ou não às coisas. O livre-arbítrio funciona como um divisor de águas. E a noite serve de cenário à alma para manifestar seu livre arbítrio. Ora a vista estará turva, ora translúcida, dependendo do estado de espírito de quem observa na noite tons mais contrastantes e iluminados, ou tons mais sombrios.

Em Bicho Mau, também de Estas Estórias, Guimarães Rosa magistralmente confere a uma boicininga (espécie de cobra) características sombrias do ser humano. Antropomorfiza a cobra, animal de hábitos noturnos, como sorrateira e ligeira. Esta representa o perigo oculto, a tocaia armada em silêncio, mitificando o oportunismo da sobreposição de um homem sobre o outro, quando da natureza torpe do caráter. A noite é novamente indicada como um sinal de perigo, o silêncio reserva ameaças.

E essa qualificação pejorativa da noite é uma marca muito forte e presente na essência sertaneja.

Massaud Moisés (MOISÉS, 1967: 373) ressalta na personagem Chefe Zequiel de Buriti, segunda parte do livro Noites do Sertão – “grande sutiliza sonora e capacidade até de ‘dentreouvir’ a ‘submúsica’ dos sons noturnos do sertão.” Chefe Zequiel dialoga com a noite, servindo como receptor de suas vozes, as quais não são desvendadas pelas outras personagens da trama. Daí o profundo caráter de percepção, reflexão e translucidez dessa especial personagem que traz à tona a existência de uma noite silenciosa apenas na aparência. Cores, luzes, tons e sons se ocultam na pele da noite. E esta pele é tocada e penetrada por Chefe Zequiel, pivô dessa relação corpórea entre o material(concreto e humano) e o vazio suposto(abstrato e noturno).

Em Campo Geral, Miguilim se apropriará da noite como um instrumento que possibilitará a sua busca da luz dos próprios olhos. Miguilim atravessa o tecido da noite em busca de sua própria alma, que, para ser alcançada, necessita dessa percepção de luz em meios escuros. Dessa busca decorre um mecanismo de espelhos. A personagem depara com a misteriosa noite e consegue encontrar a luz, que configura sua própria existência. Não existe um sem o outro – para se notar a essência interna é necessário um inexorável encadeamento entre ser e noite. Não há travessia que se dê ao encontro de si mesmo sem esse enveredar em direção da noite, única experiência possível de defrontar-se consigo ao confrontar-se com o palpável desconhecido.

Em A Menina de Lá, conto de Primeiras Histórias, a noite serve como um oráculo à Nhinhinha, uma personagem-menina com a mesma aura simples e, ao mesmo tempo, sofisticada pelos atributos, como a personagem-menino Miguilim de Campo Geral. Nhinhinha é considerada estranha pelos que a cercam. Isso se dá, entre outros fatores, principalmente por seu caráter de retirar dos elementos claros da noite, sobretudo das estrelas, conclusões bastante inusitadas e profundas para uma criança acerca da vida e das cegueiras humanas. Cada estrela a brilhar no céu a remete a uma observação, ponderação ou especulação sobre questões normalmente não identificadas pelo foco da maioria dos homens. Quando Nhinhinha menciona que “Tatu não vê a lua.” (ROSA, 1994: 401), ela está alardeando sobre a cegueira daqueles que não conseguem retirar das trevas extratos de luz. O excerto selecionado enfatiza bem essa relação de sensibilidade peculiar de Nhinhinha ao apreciar a noite.

Ela apreciava o casacão da noite. – “Cheiinhas!” – olhava as estrelas, deléveis, sobre-humanas. Chamava-as de “estrelinhas pia-pia”. Repetia: - “Tudo nascendo!” – essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões com o deferir de um sorriso(...) “altura de urubu não ir”. O dedinho chegava quase no céu.

A noite apresenta ainda uma outra simbologia nesse caso, já que Nhinhinha vê um sentido religioso no céu e acredita que sua saudade dos parentes mortos será solucionada após a sua própria morte, o que a levaria ao encontro das pessoas queridas que se foram.

E o ar. Dizia que o ar estava cheio de lembrança. (...) “E eu? Tou fazendo saudade.” Outra hora falava-se de parentes já mortos, ela riu: - Vou visitar eles... (Idem, idem, p. 401)

O CHIAROSCURO EM O BURRINHO PEDRÊS
E SÃO MARCOS, CONTOS DE SAGARANA

Guimarães Rosa manifesta o chiaroscuro ao explorar a dicotomia altibaixo, como nesta sentença de O Burrinho Pedrês, no qual, pelo movimento luminoso do luar, cria uma exímia noção de perspectiva entre o micro e o macro, o microscópico e o telescópico: “De noite, saiu uma lua rodoleira, que alumiava até passeio de pulga no chão.” (Id, id: 56)

Observa-se o deslocamento descendente do foco narrativo da “lua rodoleira” ao singelo e minúsculo “passeio de pulga no chão”. Primeiramente, Rosa constrói a lua sob o claro, mostrando-a ao leitor, enquanto o resto da descrição, ainda desconhecido, permanece no escuro. A expressão “que alumiava” marca a transição entre o quadro que se pintara da lua no céu e algo que irá despontar do escuro, pois “alumiar”, transitivo, faz o leitor esperar pela existência do “alumiado”. “Passeio de pulga no chão”, enfim, põe em claro a imagem que ficara obscura quando da descrição do céu e, neste momento, Rosa deixa a primeira cena em escuro e o leitor, após configurar mentalmente a descrição da cena em claro, pode, num movimento contrário, retornar ao início da linha com a primeira cena em “claro” destaque.

Em São Marcos, Rosa cria uma imagem de contrastes por meio de seu pictórico léxico. A noite mescla-se com o dia em alternância ao estado de espírito de quem narra, cujo discurso o situa ensimesmado às trevas.

Poento obumbramento róseo, de dia; tênue tecido alaranjado, passando em fundo preto, de noite, à luz. Mesmo no escuro de um foco que se apaga, remanescem seus vestígios, uma via-láctea a escorrer; mas, no meu caso, nada havia. Era a treva, pesando e comprimindo, absoluta. (Id, idem, p. 247)

Repara-se a figuração de um plano básico fomentado pela oposição entre branco(“dia”, “à luz”, “via-láctea”) e negro(“fundo preto”, “noite”, “escuro”, “treva”), sobre os quais Rosa escreve e pinta, em concomitância, matizes diversos, serenos (“obumbramento róseo”, “tênue tecido alaranjado”).

UM ESTUDO DA NOITE EM DÃO-DALALÃO,
DE NOITES DO SERTÃO

“Tudo o que muda a vida vem quieto no escuro, sem preparos de avisar.” (ROSA, 1984: 833) Esta colocação, mencionada pela personagem protagonista Soropita, ressoa quase como aforismo e reúne a partir de seus enxutos dizeres uma precisa síntese das influências exercidas pela noite sobre ele e sobre a construção da narrativa.

Guimarães Rosa coloca em Soropita inúmeras marcas de repúdio à noite, emprestando à personagem uma série de medos humanos, os quais estão associados direta ou indiretamente ao tempo noturno. Em Soropita vemos marcas de medo do homem urbano, quando ele insiste em ficar sempre de alerta ao longo das noites em que está viajando, por temer a incursão de bandidos assaltantes contra ele. Estampa-se nele uma caricatura óbvia de um temor urbano, intensificado à noite, ainda mais porque Soropita não possui bens, que pudessem servir de tentação a infratores, o que teoricamente o inviabilizaria como pretenso alvo. Sobre ele também recaem os temores sertanejos, ligados ao imaginário popular, o de maus presságios, o de “coisas ruins”, o de demônios, e todos esses medos se manifestam à noite. As noites de Soropita são quase todas exasperantes.

Como se não lhe bastassem esses medos, ainda o acometem temores de juízo moral, principalmente o da traição, que seria praticada por sua mulher Doralda, uma ex-prostituta.

Soropita durante uma noite em que estava insone, como de costume, começou a lembrar de uma prostituta com a qual teve relações numa viagem passada; de súbito, a imagem daquela mulher passou a confundir-se com a de sua esposa, que também fora prostituta. A partir daí, ele começa a devanear, e imagens de supostas traições de sua cônjuge vêm à sua mente. Essas fantasias passam a atormentá-lo por repetidas noites a fio. Nem por isso, salientando-se bem uma ótica machista inerente na personagem, Soropita deixava de ter relações sexuais com outras prostitutas quando viajava; contudo, curiosamente, ele não ia aos meretrícios à noite, pois também temia o povo obscurecido, configurado por bêbados, vagabundos e encrenqueiros. Para Soropita, toda forma de sujeira se ligava à noite.

Quando Soropita pousava em casa, à noite, sempre escutava o latido de um cão, cujo som a ele trazia arrepios e maus presságios. “Dormia com um revólver grande debaixo da cama, o oxidado, o “crioulo”, ou a automática, debaixo do travesseiro.” (Id, id: 855)

Soropita chega ao extremo de só sentir-se aliviado, durante a noite, quando comprova que, diante de seus olhos, Doralda dorme de fato. É só nesse momento que o fantasma da traição se dissipa parcialmente. A personagem protagonista chega a declarar que apenas, assim, sente um domínio pleno sobre as atitudes de sua mulher.

Uma cena da trama é extremamente chocante ao leitor. Trata-se do diálogo atormentador entre Soropita e Doralda, bem enquanto faziam relações sexuais. Ele tenta confundi-la num jogo que mistura sedução e inquérito. A noite reúne momentos de surpreendente e poética sensualidade entremeados a surtos de agressão verbal da protagonista à outra personagem, quando a primeira questiona a segunda sobre seu passado, insistindo num discurso opressor, exigindo que a mesma admita ter sentido fortes prazeres com um suposto preto no período em que ainda trabalhava no meretrício. Este preto passaria a desnorteá-lo em sucessivas fantasias, as quais evoluíram até a perseguição a um outro rapaz preto, já no fim da narrativa. É importante absorver a simbologia da cor dos homens, pois metaforicamente também alimentam a ultra visão de trevas, a qual acomete em duras penas Soropita.

A perpetuação do medo em Soropita dá-se no começo da noite em que este chega em casa com seu amigo Dalberto. Então Soropita passa a entrar em pânico, desconfiando que o amigo reconhecesse sua esposa, pois este também havia freqüentado meretrícios em Montes Claros, cidade natal de Doralda. À medida que a noite vai transcorrendo, as fantasias de Soropita passam por verdadeiras gradações, chegando à idéia de que talvez eles tenham sido amantes, e culminando na intenção de matá-lo. Em seguida, Soropita faz uma relação reflexiva entre os aspectos físicos da noite com todas as aflições que o acercam. Este parece ser o momento mais crucial da narrativa e é o que serve melhor como parâmetro para se estabelecer um inquestionável elo entre a noite e as atitudes da personagem. Tudo o que acontece de ruim na sua vida, ao refletir, ele associa à noite, ao breu, ao escuro, ao preto, inclusive ao preto que lhe ocasiona tanto ciúme.

Era como se entrasse num mato de mata-virgem. O cheiro preto. A mata virgem era uma noite... (Id, id: 837)

Tudo na vida era sem saber e perigoso, como se pudessem vir pessoas, de repente, pessoas armadas, insultando, acusando de crimes, transtornando. Dormir, mesmo, era perigoso, um poço – dentro dele um se sujeitava. (Id, id: 838)

Há falas do narrador-observador em 3ª pessoa que caracterizam os viajantes sertanejos como portadores de medos semelhantes, perante a aura misteriosa e obscura da noite.

... pouco dormiam. E ainda no escuro, no descambar da noite, estavam lá deitados, calados juntos, todos espiando para um lado só, esperando o romper da aurora. (Id, id: 834)

OS DESDOBRAMENTOS DA NOITE
NOGRANDE SERTÃO: VEREDAS

Há em Grande Sertão: Veredas diversas faces noturnas, as quais aparecem no romance a fim de nos revelar aspectos importantes da narratividade e da poeticidade rosianas. A questão do pacto, fator fundamental para se compreender a trama, está intimamente ligada às simbologias noturnas. Riobaldo, personagem protagonista, estabelece elos com as significações religiosas, místicas, metafísicas e do folclore sertanejo, propostas por Guimarães Rosa.

As noites despertam percepções e motivam atitudes tomadas por Riobaldo, e o luar acarreta sobre ele uma experiência poética místico-religiosa, marcada por tons simbolistas, de incrível beleza.

Toda a seqüência do provável pacto de Riobaldo com Lúcifer se constrói encadeado à conjectura da noite. A mística e folclórica meia-noite proporciona o clímax do diálogo entre o jagunço e o demo.

Antes de descrever a suma relevância da incidência do elemento noturno sobre Riobaldo, verificada em dois momentos da narrativa – a percepção de Nossa Senhora em vista do luar, logo após o massacre na Fazenda dos Tucanos; a imagética seqüência que acondiciona o pacto com o diabo – alguns apontamentos ligando os efeitos dos elementos noturnos sobre a personagem protagonista também servem como ferramentas de compreensão do Grande Sertão: Veredas.

Na primeira noite em que Riobaldo tem uma experiência inesquecível, chefes de bando, liderados por Joca Ramiro, procuravam refúgio para seu pessoal. Encarregado de guiá-los, Riobaldo os leva até o poço de Cambaubal, mato fechado, que lhes serve de esconderijo.

Jamais esqueceria aquela noite, quando pôde ver de perto Joca Ramiro, Alarico Totõe, Hermógenes e Ricardão, além de Alaripe com seus cem cavaleiros, terríveis sertanejos. Também não esqueceria as canções do vaqueiro poeta Siruiz, que cantava coisas cuja sombra já estava decerto em seu coração.

A noite também marcaria o encontro de Riobaldo com uma bela mulher casada, filha de Manoel Inácio, a qual lhe tratava com volúpia, carinho e atenção.

A noite também serve de tema para diálogos entre Diadorim e Riobaldo. O “menino” Diadorim demonstra sempre mais simpatia pelo cair da noite do que Riobaldo, que a entende como algo nefasto, pois por entre os meandros da noite, segundo este, transitam o medo e a dúvida humana.

A tragicidade passa a marcar o convívio de Riobaldo com a noite, confirmando suas apreensões, quando do massacre da Fazenda dos Tucanos, onde os homens de Zé Bebelo foram tocaiados e forçados a realizar uma perigosa fuga, após terem assistido à morte de quase todos os membros do grupo e de seus cavalos, todos assassinados com impiedosa violência.

O aspecto trágico ora levantado gera, paradoxalmente, uma aparição de Nossa Senhora, em meio ao luar, reacendendo em Riobaldo o desejo de abandonar aquela vida de jagunço e de retirar-se com Diadorim para um lugar sossegado, onde passariam o resto de suas vidas.

“... saiba o senhor, pois saiba: no meio daquele luar, me lembrei de Nossa Senhora...” (ROSA, 1994: 316)

Esse é um verdadeiro registro de epifania para Riobaldo, que consegue, mesmo entremeado às trevas, registrar um testemunho de sua fé recolhida. A religiosidade incide sobre ele com uma força poética sublime e, a partir dessa ocorrência, ele oscilará entre o comportamento piedoso, proposto pela doutrina cristã, e a brutalidade quase primitiva de muitos de seus atos. Notar-se-á na personagem uma ambigüidade sem precedentes, e a figuração da Nossa Senhora será por vezes retomada, quando em lampejos de consciência, alguns destes fomentados por Diadorim, ou quando em contato com símbolos, similares aos do medievalismo, como o contato regenerador proporcionado pelo seu escapulário da santa.

E é preciso, por aí, o senhor ver: quem é que era e que foi aquele jagunço Riobaldo! Pois em instantâneo eu achei a doçura de Deus: eu clamei pela Virgem... Agarrei tudo em escuros – mas sabendo de minha Nossa Senhora! O perfume do nome da Virgem perdura muito; às vezes dá saldos para uma vida inteira... (Idem, ibidem, p. 218)

Após o vislumbrar da Nossa Senhora em meio ao luar, aproxima-se a cena do pacto com o diabo, também ocorrido durante a penumbra. Mais propriamente à meia-noite, conferindo-se ainda mais um caráter místico e supersticioso ao pacto, os rituais do pactário passam a se desenrolar.

Passada a meia-noite, o silêncio cede a algumas palavras, e os olhos desnorteados pelo “ror de nada” reencontram as referências do céu estrelado.

“Decidi o tempo – espiando para cima, para esse céu” (Id, ibidem, p. 318)

Tendo recuperado um sistema mínimo de referências, Riobaldo parece “semear” no meio do nada, repetindo – à maneira do sonho – as reminiscências mais recentes que precederam a noite. A fórmula “Acabar com o Hermógenes!” é, de fato, aquilo que Freud chama resto diurno – reminiscência em si anódina do dia anterior. O narrador Riobaldo faz questão de explicar que esta frase não corresponde a um enunciado intencional e consciente, mas que ela é apenas um lastro qualquer – significante puro cujo sentido se determinará a partir da nova constelação de signos de sonho, fantasia, delírio e devaneio.

“... e isso figurei mais por precisar de firmar o espírito em formalidade de alguma razão”. (Id, id: 318)

A fórmula “acabar como o Hermógenes” funciona como resto diurno na invenção onírica, a qual se dá à noite. Esta constrói um novo discurso e uma nova significação interativa com os elementos que sobraram da experiência diurna em meio às trevas (imagens, palavras, frases, etc.).

Contra a aspiração do ilimitado, Riobaldo invoca Lúcifer e recebe do brilho da noite e das absolutas estrelas o impulso para a sua estranha dança noturna. As constelações cósmicas transformam-se em constelações significantes do texto que inspiram à personagem do pactário os gestos de unificação simbólica com os elementos de baixo: a água e a terra. Dissolvendo-se na vida vegetal, Riobaldo afirma simbolicamente sua relação com as forças vitais: a noite metamorfoseada em corpo de mãe e iluminada pelo brilho de Vênus – e com os símbolos da fecundação – orvalho, árvore, estrume, mel.

O encontro de Riobaldo com o Demo, segundo Pedro Xisto e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos (XISTO & CAMPOS, 1972: 57) é como o duelo do Mestre com o Acaso.

“Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi?” (ROSA, 1994: 456-7)

De acordo com Carlos Rodrigues Brandão(BRANDÃO,1998: 129), a lua exerce o poder de modificar os atos das personagens ao longo da narrativa, da mesma forma que enquanto, na condição de satélite, possui a propriedade de modificar as marés. Ele estabelece uma comparação contrastante entre a lua e o sertão. Embora no sertão tudo também se repita, não há certeza, e toda previsão não passa de uma probabilidade. A lua, tendo quatro fases, é de uma maneira a cada noite, mas mesmo mudando e sendo incerta, pode-se medir o momento de passagem de uma fase à outra. É mutante, porém previsível, visto que se antecipa segundo a segundo.

... a lua lá vinha. Alimpo de lua. Vizinhança do sertão – esse alto – Norte brabo começava. – Esses rios têm de correr bem! eu de mim dei. Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. Dia da lua. (ROSA, 1994: 121)

Deduz-se do diálogo acima entre o narrador Riobaldo e o seu interlocutor que a lua no sertão se vincula à idéia de variações de pensamentos, fatos e ações. Mas devido ao seu caráter místico, portanto misterioso e enigmático, não se consegue prever com exatidão como se manifestará cada sentido de alteridade.

 

BIBLIOGRAFIA

BASTIDE, Roger. Sociologia do Folclore Brasileiro. São Paulo: Anhambi, 1959.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Memória Sertão (Cenários, Cenas, Pessoas e Gestos nos Sertões de João Guimarães Rosa e de Manuelzão). Minas Gerais: Cone Sul,. 1998.

CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global, 2001.

MARTINS, Nilce Sant’Anna. O Léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001.

MOISÉS, Massaud. Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira. 1ª ed. –São Paulo: Pensamento; Cultrix, 1967.

ROSA, João Guimarães. Ficção Completa (em dois volumes). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

––––––. Noites do Sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

ROSENFIELD, Kathrin. Os Descaminhos do Demo. São Paulo: Edusp, 1993.

XISTO, CAMPOS & CAMPOS. Pedro, Augusto e Haroldo. Guimarães Rosa em Três Dimensões. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura – Comissão de Literatura, 1972.

Seminário Veredas de Rosa. Org. de Lélia Parreira Duarte. MG: 2000 – PUC/MG.

 

...........................................................................................................................................................

Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos