TIETA DO AGRESTE, DE JORGE AMADO
UM ESTUDO LÉXICO-SEMÂNTICO DAS FRASES FEITAS
 

Tadeu Luciano Siqueira Andrade (UNEB)

O léxico de uma comunidade funciona como uma intersecção lingüística em que se cruzam informações oriundas dos diversos sistemas da língua: da fonética, da fonologia, da semântica, da sintaxe, da morfologia e da pragmática. Sendo assim, não há unidade lexical sem que algum desses sistemas não esteja presente, uma vez que a variação de uma palavra tem sua origem no som, na forma, nas relações sintáticas, no sentido e no uso.

Não podemos falar no léxico de uma língua, reportando-nos apenas ao vocabulário na sua estrutura, devemos partir desde a sua estrutura fonomorfológica até o seu significado em diversos contextos e usos lingüísticos. O léxico de uma língua é amplo, e nesta amplitude, as palavras surgem a cada momento. Umas caem em desuso, outras tomam novos significados. Assim se justifica o poder criativo da língua, pois ela é dinâmica, estando sempre em processo de mudança.

Para estudarmos o léxico de uma língua, devemos levar em conta em todos os sistemas e, especialmente, no que tange ao uso, pois é, no uso, que as palavras apresentam sentido e significado, e a forma toma vida no processo sócio-comunicativo da língua,

Neste trabalho, pretendemos refletir sobre o papel das frases feitas no estudo do léxico da língua portuguesa. Não apenas na sua estrutura, mas na semântica, por considerarmos a semântica e o léxico dois componentes indissociáveis.

Que são frases feitas? Quem as criou? São expressões vivas no uso da língua. São vozes do povo, fazem parte indispensável de sua linguagem diária. Representam uma sabedoria acumulada através de idades e gerações. Atuam na formação dos modos de agir, pensar e refletir de um povo. (ANDRADE, 2002: 51)

As frases feitas estão longe dos dicionários, dos compêndios gramaticais, estão adiante da língua padrão. Embora haja influência da modernização dos meios de comunicação, as frases feitas estão presentes na realidade lingüística do povo que as usa.

Este estudo objetiva a inserção das frases feitas em dois campos: no lingüístico e no social. No lingüístico, por constituírem um grupo fraseológico em que cujos elementos estão interligados, adquirindo o verdadeiro significado quando analisados no todo. Segundo Andrade (op. cit., p. 52), “é nas frases feitas que se imprime o gênio da língua, revela-se o poder criativo da linguagem do homem, havendo a presença viva da semântica da língua.”

Impostas pelo uso, as frases feitas atravessam espaços sócio-geográfico-temporais, resistem às mudanças, entram no uso da língua. No social, as frases feitas refletem a realidade histórico-cultural de um povo, suas crenças, havendo um processo de analogia, como por exemplo a expressão de cabo a rabo. Xavier (2001: 174) nos diz:

Significando de uma extremidade a outra, de ponta a ponta, do princípio ao fim, a expressão derivou-se de da Cidade do Cabo a Rabá, ou seja, ir da Cidade do Cabo, ponto extremo do sul da África, à cidade de Rabá, capital do Marrocos, ao norte desse continente. A Cidade do Cabo, aliás, foi ponto de passagem de grandes navegadores, como Bartolomeu Dias em 1488, e Vasco da Gama, em 1497 (XAVIER, 2001: 174).

Para compreendermos as frases feitas no léxico do português, analisamos o romance Tieta do Agreste, de Jorge Amado, considerando a obra amadiana como um manancial lingüístico que imprime o impulso certo ao que já estava em movimento, a linguagem, dando expressão literária ao linguajar do povo, onde o povo é a fonte de tudo (cf. TAVARES, 1982: 190).

O romance Tieta do Agreste, publicado em 1977, mostra os costumes da pequena cidade de Santana do Agreste, região literária de Mangue Seco. Conta a história de Tieta, jovem, que expulsa de casa, sai pelo mundo até chegar a São Paulo. Nesta narrativa, encontramos várias frases feitas que até hoje estão presentes nos usos lingüísticos das diversas classes sociais. Estudar as frases feitas em Tieta do Agreste é adentrar-se no universo lingüístico diversificado, conhecendo a inter-relação léxico e semântica.

Analisamos as frases feitas usadas na narrativa que mostram a densidade lexical do autor, ao descrever o falar do povo, comparando-as com os estudos de Andrade (2002, 2003), Lyra (2003), Mota (1987, 1991), Magalhães Jr. [s/d.] e Pereira (1998):

1. Enfiar fogo no rabo e capar o gato. (AMADO, 2001: 433) – significa sair rapidamente desconfiado.

Pereira (1999: 85), analisando a obra de Carlos Drumonnd de Andrade, registra a forma sair com o rabo entre as pernas, com o sentido de humilhado, acovardado, retraído, amedrontado. Amado (op. cit., p. 260) registra, com o mesmo sentido, a expressão capar o gato.

Para esta mesma expressão, ainda encontramos em Lyra (2003), a variação meter o rabo entre as pernas, no sentido de alguém que “recua nos momentos em que perde as condições de argumentação ou se sente derrotado.” (LIRA, 2003: 73)

2. Roer beira de pinico. (AMADO, Ibidem, p. 223) – significa sofrer com dificuldades, aperto financeiro. No mesmo aspecto semântico, Amado (ibidem, p. 223) registra as variações: Comer o pão que o diabo amassou e roer beira de pinico (ibidem,p. 58). Nos estudos de Leonardo Mota, em Adagiário Brasileiro, retomando as obras do mesmo autor Sertão Alegre, Cantadores e Violeiros do Norte, registra: Comer arame farpado (ibidem, p. 309), comer candeias de sebo (ibidem p. 309), comer da banda podre (ibidem, p. 264), comer issosso e beber salgado (ibidem, p. 264, comer o que diabo enjeitou (ibidem, p. 283), comer safado (ibidem, p. 283).

3. Está no mato sem cachorro (ibidem, p. 524) – significa ficar desorientado, sem ajuda, desprevenido, por isso, sujeita a perigos. Segundo Pereira (op. cit., p. 179), esta frase tem origem nas histórias de caçadas, significando está metido em uma grande enrascada.

4. Onde Judas descalçou as botas (ibidem, p. 106) – reporta-se a um lugar desagradável, longínquo e inóspito. Esta expressão apresenta várias estruturas com a mesma carga semântica. Em Tieta do Agreste, Jorge Amado registra: o cu do mundo (p. 116), cafundó de Judas (p.71), cafundó do Judas (p. 497). Pereira (op. cit., p. 63), para a mesma expressão, encontra na obra de Drummond: cafundó de Judas, onde Judas perdeu as botas, calcanhar do Judas, onde o vento fez a curva, para lá de caixa-prego, no fim do mundo, onde o diabo perdeu as esporas, no cu de Judas.

Mota (op. cit., p. 335) registra nos confins do Judas, no oco do mundo. Perestelo (apud Mota) registra no cu de Judas. Magalhães Jr. ([s/d.]: 236) elenca onde Judas perdeu as botas, Prá lá de caixa-prego, nos calcanhares de Judas. Pereira (apud Andrade op. cit) justificando o valor semântico da expressão com o nome Judas diz: “sendo Judas um personagem malquisto não se pode imaginar que tenha escolhido em seu mais profundo desespero um lugar bonito e agradável pa se enforcar”. (PEREIRA, op. cit., p. 173)

Jorge Amado, no romance analisado, cita ainda a expressão cu do mundo no sentido de uma cidade sem desenvolvimento, atrasada culturalmente, como nos mostra a passagem: Agreste não é São Paulo, é o cu do mundo parou no século passado. Aqui ou bem se é moça cabaçuda ou rapariga de porta aberta. (AMADO, op. cit., p. 206).

5. Sem eira nem beira (ibidem, p. 565) – refere-se a alguém, cuja situação de vida é das piores, está em estado de completa penúria. Pereira (op. cit., p. 165) registra a forma sem leira nem beira, embora pouco reconhecida, como também outra forma mais extensa sem eira nem beira nem ramo de figueira. Tanto eira quanto leira constituem propriedades sem valor, segundo Pereira (op. cit.). A forma “eira” pode ter surgido graças a um processo fonético, ou por economia lingüística. (grifo meu)

Lyra (op. cit., p. 80) registra eira no sentido de pedaço de terreno perto de casa, onde se pode trabalhar e beira é a aba do telhado da casa.

6. Bater a caçoleta (AMADO: op. cit., p. 51) – diz – se com referência a morrer, falecer. Na mesma obra, Jorge Amado cita como sinônimos para esta expressão bater as botas (ibidem, p. 74) e esticar a canela (ibidem, p. 89). Mota (op. cit.) registra as expressões: bater a bota (ibidem, p. 261), dar o couro às varas (ibidem, p. 311), bater a caçoleta (idem ibidem), quebrar a tira (idem, ibidem), bater o trinta e um (idem ibidem), esticar a canela (idem, ibidem), ir pra terra de pés juntos (ibidem idem). Perestelo (apud Mota) registra ainda: espichar o rabo.

7. Nesta história tem gato escondido (AMADO: op. cit., 287) – significa quando se desconfia de alguma coisa, há intenção oculta ou algo escondido. Com o mesmo sentido, Jorge Amado (ibidem, p. 286) cita a expressão: escondendo leite. Existem ainda outras variações para esta frase feita: Debaixo desse angu tem carne (PEREIRA; op. cit., 30), debaixo desse angu tem torresmo (MOTA; op. cit., 99), debaixo desse pirão tem carne (LYRA; op. cit., 42).

8. Por fora Senhor São Bento, por dentro pão bolorento (AMADO; op. cit., 112) – diz–se das pessoas que procuram esconder a pobreza e as dificuldades da vida, reforçando a expressão as aparências enganam. Correlatas com esta frase feita, encontramos as seguintes variações com a mesma carga semântica:

Por fora bela viola, por dentro pão bolorento (LYRA, op. cit., 102);

Por fora muita farofa, por dentro molambo só (MOTA; op. cit., 192);

Por fora muito fofó, por fora molambo só. (idem, ibidem.).

Magalhães Jr. (op. cit., 274), para a referida frase feita, cita:

Por fora muita farofa, por dentro não tem miolo (idem, ibidem);

Por fora filó, filó, filó, por dentro mulambo só (idem, ibidem);

Por fora renda de bilro, por dentro mulambo só (idem, ibidem);

Por fora corda de viola, por dentro pão bolorento (idem, ibidem)

9. Não ter com que comprar um gato morto (AMADO; op. cit., 313) – significa não ter condições, sem recursos financeiros. Encontramos as seguintes variações:

1. Não ter no cu o que um priquito merende (MOTA; op. cit., 159);

2. Não tem onde cair morto (AMADO; ibidem, p. 518);

3. Na linguagem atual, ainda encontramos: não ter com que despachar um cego. Todas apresentam mesma carga semântica.

10. Misturar alhos com bugalhos (AMADO; ibidem, p. 302) – significa tomar uma coisa por outra, isto é, fazer confusões. Xavier (op. cit., 174) diz que esta expressão sofreu o processo de rima por influência da Analogia, ocorrendo graças à homofonia ou identidades de sons. Cita o autor, afirmando ter sofrido o mesmo processo: andar de ceca em Meca, mundos e fundos fazer de gato e sapato, misturar alhos com bugalhos, sem tugir ou mugir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do tempo, muitas frases feitas entram em uso, caindo depois em desuso, outras passam a integrar no repositório da linguagem popular. O linguajar vivo do povo é um excelente veículo de manifestação do espírito lúdico do povo. Na fraseologia está o poder criativo e dinâmico da língua. Nela, encontramos o embricamento da linguagem e pensamento humano. O povo busca em todo o contexto sócio-político, cultural e geográfico, onde está inserido, recursos para dar significação às palavras, expressando assim o seu poder criativo.

As frases feitas traduzem a criatividade e o espírito vivo de observação do povo. Usando as várias facetas semânticas, o povo reflete sua capacidade inventiva que faz da linguagem popular o gênio da língua, através da sabedoria. Essa não tem nenhuma explicação científica, mas pode apresentar uma realidade. Assim, fez Jorge Amado, transportou para a arte a fala do povo marginalizado e excluído de todo processo social.

É na cultura de um povo que encontramos a fonte inesgotável do léxico. As frases feitas propiciam ao estudioso da linguagem recursos nos aspectos sintático, semântico, pragmático, contextual e outros, constituem o que de mais característico existe no léxico de uma língua. Através da fraseologia, afloram os fatos sociais, o aspecto geopolítico, a cultura e a história dos falantes de cada região. O homem, com seu poder criativo, transfere esses fatos para o seu potencial lingüístico. A fraseologia foi e sempre será um campo vasto dentro do estudo da língua que ainda está para ser desbravado. É a seiva de que nutre a linguagem do povo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADO, Jorge. Tieta do Agreste pastora de cabras. 26ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

ANDRADE, Tadeu Luciano Siqueira Andrade. Os Provérbios falados no Nordeste: um olhar Lingüístico e Histórico. Estudos Filológicos de/em textos Literários. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cadernos do CNLF. Volume V, nº 3. p. 123-140, 2001.

––––––. Os provérbios: um resgate etnolingüístico. Entrelinhas. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo. Ano II, número 6. p. 70-74, novembro 2002.

––––––. As frases feitas no Nordeste: um estudo onomasiológico. Léxico Semântica e Lexicologia. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cadernos do CNLF. Volume VI nº 07. p. 58-65, 2002.

––––––. As Frases feitas em Gabriela Cravo e Canela: um estudo léxico-semântico. Léxico e Semântica. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Cadernos do CNLF, Ano VII nº 06. p. 50-62. 2003.

LYRA, Itaberaba. Já dizia minha Avó... Ditados Populares e Provérbios. Salvador: Helvécia. 2003.

MAGALHÃES Jr. Raimundo. Dicionário de Provérbios, Locuções, Curiosidades verbais, Frases feitas, Etimologias Pitorescas, Citações. Rio de Janeiro: Ediouro. 1994.

MOTA, Leonardo. Adagiário Brasileiro. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil. 1991.

SILVA, José Pereira da. Ensaios de Fraseologia. Rio de Janeiro: Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos / DIALOGARTS, 1999.

XAVIER. Ronaldo Caldeira. Português no Direito. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

...........................................................................................................................................................

Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos