Monteiro Lobato
sua relação com a escola e com os livros

Shirley Cabarite da Silva  (FATEA/Lorena)

 

O objetivo deste trabalho é resgatar a história de Monteiro Lobato, mostrando sua relação com a escola e com os livros. O que pode ajudar a entender não só sua metalinguagem, mas também a criação do personagem Jeca Tatu e da obra Emília no País da Gramática. A filosofia positivista que permeia a ciência da primeira metade do século XX, no Brasil, representa o fio condutor que vem marcar o discurso sobre a língua nacional de intelectuais dessa geração. A escola brasileira reproduz, nesse momento, um saber resultante da ciência desenvolvida na Europa e nos Estados Unidos. Saber este marcado pela necessidade que os intelectuais brasileiros sentem de rompimento com qualquer tipo de interferência vinda de Portugal.

Nessa época, o ensino no Brasil apresentava pouca novidade; Freire da Silva (1883) mostrava uma doutrina gramatical apoiada nos métodos de Sotero dos Reis, ensinando o português por meio da gramática histórica. Imperavam na gramática os métodos da escola clássica e logicista. Liam-se os compêndios de Soares Barbosa, de Lage e de Bento Teixeira, autores portugueses mais conceituados entre nós. Para aprender a língua, as crianças precisavam decorar quadros e fazer classificações gramaticais; sistema que perdura com Eduardo Carlos Pereira. (Figueiredo, 1957; Fávero, 1999)

De acordo com Olandi (2002) o discurso político desse momento é marcado por um positivismo moralista e autoritário que se instala no Brasil. O exercício do poder apresentava-se através de uma conduta moralista com forte tendência a uma certa tirania doméstica: se a criança não se comporta, a gente a pune. Os militares interpretam o positivismo fazendo uso da violência como ação “regeneradora”, ao contrário do que prega a doutrina comtiana, isto é, a prática do positivismo deve ter por fundamento a regeneração dos homens no exercício do poder. No positivismo instaurado no Brasil, “não conta a lei, mas o sentimento religioso de unidade fraterna. A partir daí, o que vem determinar o perfil do cidadão e a atitude do político brasileiro é a confusão de valores como moralismo e hipocrisia social, nacionalismo religioso e atos de conspiração.

A escola reproduz esse tipo de mentalidade, buscando enfatizar a facilitação da aprendizagem da língua, por meio da dosagem conveniente dos exercícios práticos. É possível entrever, no comportamento da instituição escolar, a preocupação com a formação moral do aluno, no que se refere à religião, à pátria e à família. Nesse contexto social, no ano de 1882, em Taubaté, cidade do Vale do Paraíba, interior de São Paulo, Monteiro Lobato freqüenta o Colégio Paulista do positivista Josino Mostardeiro e o Colégio São João Evangelista de Antonio Quirino de Souza e Castro. Com treze anos presta exame para ingressar no Instituto de Ciências e Letras na cidade de São Paulo, mas é reprovado em português oral. Decepcionado, escreve à mãe relatando o fato. Afirma que fora injustiçado e a culpa é do Freire:

Ontem entrei na prova oral de português e fiz boa prova. Todos que viram disseram que eu tinha tirado plenamente, mas quando fui ver eu estava inabilitado. Creio que é engano, mas se não for eu vou sexta-feira, dia 10. A minha prova escrita foi boa e a oral também. Eu vi prova escrita de uns seis rapazes que não sabiam nada, que me perguntavam tudo, que colavam e que faziam uma descrição de dez linhas, serem aprovados. Na oral vi rapazes que diziam que “pouquíssimo” era advérbio, “forte” não sabiam o que era, saírem aprovados. E eu que respondi tudo saí inabilitado. Me parece que o Freire viu tanta proteção que disse: este menino não sabe nada porque se soubesse não precisava empenho e por isso me bombeou injustamente. (Lobato, 1955: 35-37)

Num desabafo, já escritor, afirma, recordando-se dessa época:

O que me fez escrever ‘Emília no País da Gramática’, talvez fosse a lembrança do muito que naquele tempo me martirizou a tal arte de falar e escrever corretamente. (op. cit., 25-27)

Retorna ao Colégio Paulista em Taubaté e funda o jornalzinho “O Guarani” e, com quatorze anos, estréia nas Letras com o artigo “Rabiscando”, usando o pseudônimo de Josbem. Em 1896 volta a São Paulo e é aprovado nos exames. Permanece internado três anos no Instituto de Ciências e Letras para concluir os estudos preparatórios; torna-se um dos melhores alunos. Faz parte do grêmio literário Álvares de Azevedo com o pseudônimo de Gustavo Lannes.

No início do século XX, com a morte dos pais, submete-se à exigência do avô (seu tutor) e ingressa na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Na verdade ele queria era fazer Belas Artes e ser pintor. O avô possuía uma vasta biblioteca, onde Lobato se refugiava para ler livros de filosofia. Recebe influências ideológicas de Zola e de Gustavo Le Bon que lê; leituras indicadas por um toscano anarquista. Lê ainda, Spencer, Darwin, Taine, Nietszche, Voltaire entre outros. Gostava de discutir com o professor Germano idéias de Augusto Comte e de Littré, o que o fazia defender idéias positivistas, evolucionistas, materialistas. Dedica-se ainda à leitura de Balzac, Shakespeare, Tostoi, Maquiavel, Eça de Queiroz etc. Diz Edgar Cavalheiro, seu melhor biógrafo:

(...) Lobato debruçara no positivismo comtiano e na literatura de Hebert Spencer (...) embebendo-se de positivismo, evolucionismo, materialismo, de darwinismo, de Monismo, heterogeneamente, precipitada e loucamente. Quando vai dormir diz que seu cérebro continua a ler Lamartine, Zola, Balzac, Shakespeare, Tostoi, Maquiavel, Oliveira Lima, Eça e outros (...)

Quando um grupo de colegas da Faculdade resolve fundar uma Associação Acadêmica, aceita colaborar. A Faculdade passa por momentos de profunda apatia: os alunos desinteressam-se de artes, de literatura, de política e de assuntos sociais. Lobato e os colegas sentem que é o momento para criar alguma coisa e fundam a Arcádia Acadêmica. No dia 11 de agosto sobe à Tribuna e discursa sobre o tema “Outrora e Hoje”, defendendo a idéia de que as academias estavam se atrofiando. Em 1908, casado e já advogado, herda fazendas e casas, tornando-se proprietário. Residindo na fazenda Buquira, divide as tarefas do campo com as leituras de Machado de Assis, centenas de volumes de Camilo, Camões, Euclides da Cunha e outros; quando sente dúvidas recorre ao dicionário Aulete. Diz Cavallheiro: “Os filólogos preferiu ignorar, aprendendo diretamente nos mestres, num processo bem pessoal. Confessou sempre ser ignorante em gramática”.

A respeito de suas leituras de textos literários, há uma vasta lista e muitos comentários que o escritor nos deixou documentados em prefácios das obras e em cartas aos amigos. Afirma em uma de suas cartas ao Godofredo Rangel, referindo-se a Camilo Castelo Branco, que a leitura da obra tem o propósito de melhorar o seu próprio estilo. Admite sentir medo de copiar o romancista e critica a linguagem dos jornais.

Minhas incursões pelos romances do Camilo têm duas intenções: uma, passarinhar naquela desordenada mata virgem, apanhando as boas locuções que não tenho em meus viveiros: outra mariscar os idiotismos, que são as pérolas da língua. E também me é um descanso andar pela floresta do grande malabarista – descanso desta nossa crise monetária de vocábulos e graça, que nos envolve neste país em que a leitura do jornal mata a do livro. Não há livros, Rangel, afora os franceses. Nós precisamos entupir esse país com uma chuva de livros. Chuva que faça o mar, germe que faça a palma, já o queria Castro Alves. (...) Condenas aquele meu terreirinho limpo onde caíam as sementes que o vento traz. Com o teu sistema de glossário, sabe o que acontece? Tornamo-nos uns Camilos enfezados, uns puros camelinhos, quando o que eu quero é que de Camilo tu saias mais Rangel do que nunca e eu saia bestialmente Lobato – embora sem as brocas e lagartos para os quais o melhor veneno é justamente Camilo. (A Barca de Gleyre [?], 1961:  8)

Ao prefaciar Éramos Seis da Sra Leandro Dupré, Lobato defende a aproximação da língua literária com a língua falada, defendendo o abandono do modelo clássico português.

(...) Quem fala no livro inteiro é a protagonista, a viúva, essa boa mulher pensa e fala exatamente como todas as mulheres do seu tipo e da sua classe social entre nós. Fala e pensa e age como milhões de heroínas do trabalho caseiro e da criação dos filhos. E como fala uma criatura assim? Exatamente como a autora a faz falar. A gramática por um lado e a viúva por outro. (...) E a conclusão a que cheguei aqui deixo para meditação do Edgar Cavalheiro e outros críticos. Parece que o segredo de escrever e ser lido está em duas coisas – ter talento de verdade e escrever com a maior aproximação possível da língua falada, sem perder, portanto, nenhum dos farelinhos ou sugeirinhas da vida, pois é aí que se escondem as vitaminas produtoras do mistério e perturbados ‘quê’das verdadeiras obras de arte. (op. cit., p. 47)

Já escritor maduro sempre que tem oportunidade expressa sua aversão ao sistema de ensino instaurado nas escolas. No prefácio do livro de Nhô Bento (poeta valeparaibano), propõe que a linguagem usada pelo poeta nos poemas deveria ser ensinada nas escolas, defendendo a importância de se dar ênfase também à norma popular. Na verdade está propondo o ensino de uma variante lingüística praticada em Minas Gerais e na região do Vale do Paraíba. Percebe que existe um denominador-comum entre a linguagem usada pela população que ele denomina ‘iletrada’ dessas regiões e a falada pela maioria dos brasileiros residentes no resto do país.

Devemos fazer a gramática da interessantíssima língua do jeca como os franceses fizeram a gramática da língua de “oc”e devemos ensinar essa gramática nas escolas, lado a lado com a gramática portuguesa, em vez de torturar as pobres crianças com o terrível e inútil latim do senhor Capanema. Ficaríamos assim educados em duas línguas, a geral, ou portuguesa, e uma língua auxiliar, a do jeca. Que vantagem haveria nisso? Oh, grande: - podermos falar gramaticalmente como os 15 milhões de jecas que há no território brasileiro. (Prefácios e Entrevistas [?], 1956: 54)

Observe-se a que tipo de linguagem Lobato se refere, nesse trecho extraído de um dos poemas de Nhô Bento:

Caváco de Páu

 

Quatro machadêro tão trabaiando...

Caváco de páu tá avuando! (...)

Acérte o corte ahaí, nhô Sarvadô,

Afúnde mais o táio do seu lado!

Ói que peróva é pau enganadô

Que não dá confiança pra machado! (...)

Monteiro Lobato sente não ter podido usar essa linguagem na boca de seu personagem Jeca Tatu. Personagem que ele inventou para denunciar o descaso do governo para com o povo. Embora tivesse também pretendido com isso criticar a Iracema de José de Alencar. A Iracema mascara a realidade nacional, disse ele certa vez, mas o meu jeca vai mostrá-la. Só não sabia que sua obra ultrapassaria a barreira nacional para ganhar o mundo.

Prova de que o escritor acredita no denominador-comum existente entre a linguagem praticada pelos “iletrados”do Vale do Paraíba e a praticada pelos moradores também sem instrução das demais regiões do país é o trecho em que diz que os poemas de Nhô Bento são bons exemplos de linguagem do jeca.

Nhô Bento em seus poemas fixa bem a língua falada do jeca – antes que me esqueça: por que os nossos filólogos não extraem a gramática dessa língua do jeca? Que interessante seria!... Quanta variação de sintaxe, de prosódia, de tudo!... Troca do ‘ b’ pelo ‘ v ‘: cumbérsa, berso, cuberta... O ‘lhe’ substituído pelo ‘i’: abêia, paia, maia (malha) (op. cit.[?], p. 30)

Monteiro Lobato deixa evidente sua insatisfação e sua consciência da ineficiência do ensino de língua por meio do método de análise da frase. Critica a linha de pensamento de filósofos e educadores que defendem uma didática conteudista com que se ensinava (e ainda se ensina) o aluno por meio da ‘dissecação’ da frase, a falar da linguagem e não a usá-la. Esse procedimento resulta de uma visão da ciência que tem o saber como algo desvinculado de qualquer prática criadora.

Impossível. O engulho voltou-me – a imagem do Freire e da bomba. Dá-me a idéia duma ‘MORGUE’ onde carniceiros de óculos e avental esfaqueiam, picam e repicam as frases, esbrulham as palavras, submetem-nas ao fichário da cacofonia grega. A barrigada da língua é mostrada a nu, como a dos capados nos matadouros – baços, fígados, tripas, intestino, pústulas, pipocas, tênias. Larguei os livros para nunca mais, convencido de que das gramáticas saem Silvios de Almeida mas não Fialhos. Mil vezes (para mim) as ingramaticalidades destes do que as gramaticalidades daqueles. E entreguei-me a aprender, em vez de gramática, língua, lendo os que a têm e ouvindo os que falam expressivamente. (A Barca de Gleyre [?], 1961: 50)

O escritor propõe um método para facilitar a aprendizagem da língua, escrevendo Emília no País da Gramática. Obra que não parece ser apropriada para crianças, uma vez que representa, não só todo seu desabafo contra o ensino de língua nas escolas, como também sua metalinguagem reproduzida no discurso dos personagens. Numa dos trechos, Lobato afirma que a língua portuguesa falada no Brasil, está se transformando num dialeto do português falado em Portugal. O biologismo evolucionista está presente nessa afirmativa. Diz Dona Etimologia:

A língua desta cidade está ficando um dialeto velho. Com o correr dos séculos, é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha como esta ficou diferente do latim. (p. 101)

Num outro momento da obra, o escritor defende a proposta de simplificação ortográfica, assumindo posição progressista e não perdendo a oportunidade de atacar os filólogos, os gramáticos e o ensino de língua. Diz Emília à Dona Etimologia (a velha), que se encontra reunida com os gramáticos (carranças), tomando rapé:

A senhora canta muito bem mas não entoa. Talvez tenha até carros de razão. Entretanto ignora a maçada que é para as crianças estarem decorando um por um o modo de se escreverem as palavras pelo sistema antigo. Os velhos carranças é natural que estejam do seu lado, porque já aprenderam pelo sistema antigo e têm preguiça de mudar; mas as crianças estão aprendendo agora e não há razão para que aprendam pelo sistema velho, muito mais difícil. Eu falo aqui em nome da criançada. Queremos a ortografia nova porque ela nos facilita a vida. (...) (p. 144)

Na relação que Monteiro Lobato estabelece com os livros que lê, com a política de língua e sua repercussão no ensino de português, é possível entrever um retrato fiel dos movimentos culturais, políticos e sociais de sua época. Suas idéias são marcadas fortemente por uma metalinguagem que reproduz uma mentalidade representativa dos homens de sua geração. As obras que escreve, assim como os personagens que por elas transitam, igualmente se integram nesse quadro, cujo cenário apresenta um misto de um momento da história do Brasil, com os sentimentos do escritor.

 

Referência bibliográfica

FÁVERO, Leonor Lopes. O saber da língua: gramáticas do século XIX. In: Gärtner, E.C. Hundt e Schönberger, Axel. Estudos da História da Língua Portuguesa. Frankfurt am Main, 1999.

FIGUEIREDO. Antonio Joaquim de. Resenha breve das idéias gramaticais dos gregos aos nossos dias e outros ensaios. Tese de concurso para a cadeira de Português para Livre Docente. Rio de Janeiro, 1957.

ORLANDI, Eni. P. Língua e conhecimento lingüístico. Para uma História das Idéias no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.


 

 

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