O LÉXICO E O ESTILO
NA POESIA DE MANUEL BANDEIRA
Luci Mary Melo Leon (UERJ)
Ao ler o artigo do professor Antônio Geraldo da Cunha, no livro Língua e Linguagem em Questão, em que o autor ressalta a falta de trabalhos lexicográficos de grandes autores do século XX, citando o vocabulário de escritores tão ilustres como Manuel Bandeira e Drummond observamos a importância dessa pesquisa para o enriquecimento dos estudos lingüísticos. Diz Roland Barthes que “o mundo foi construído a partir das palavras”. Realçar o léxico da poesia de Manuel Bandeira é uma aventura que oferece encantamento por meio de um vocabulário expressivo repleto de imaginação, pesquisa e muita dedicação. A linguagem elaborada de Manuel Bandeira às vezes nos parece transparente e ao mesmo tempo misteriosa. O léxico desperta no leitor a arte da pesquisa, não o deixando passivo, pois os vocábulos, novos ou antigos, cultos ou populares, carregam múltiplas significações. Manuel Bandeira é artista da palavra. Estudar o léxico é uma mistura de saber e sabor, principalmente quando voltado para um poeta Maior. De tantos poemas de Bandeira Pasárgada foi um dos escolhidos por apresentar um valor estilístico mais acentuado. Pasárgada não pode ser lida como uma simples palavra que de forma aleatória o poeta resolveu dar vida. O seu significado vai além de qualquer dicionário. O seu valor é uma vida inteira que poderia ter sido e que não passou de sofrimento e desejos somente idealizados. Como educadores e pesquisadores é fundamental que consideremos o estudo do léxico de escritores importantes no âmbito acadêmico. Infelizmente, não dispomos de trabalhos sobre os vocabulários de muitos escritores. Por isso, o estudo do léxico é um incentivo para que, no futuro, outros escritores sejam estudados.
Pasárgada tem seus momentos de volta à infância, tem seus momentos no amor que nunca o poeta deixou de ter, na vida boêmia e na vida saudável. Pasárgada era o desabafo do poeta. Talvez seja lá que o poeta Maior esteja hoje, pois aos oitenta e dois anos Pasárgada veio buscá-lo para eternamente viver a vida que nunca conseguiu viver.
VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
VOU-ME EMBORA pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe- d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
O estilo que o poeta usa pode ser identificado no uso dos verbos no futuro na terceira estrofe. Também observamos que o poeta ao repetir o verso Vou-me embora pra Pasárgada teve a intenção de enfatizar o lugar que iria encontrar a felicidade. A infância faz parte desse sonho, já que a doença só surgiu mais tarde.
Um outro poema que chama atenção do leitor é o poema Neologismo que foi escrito em Petrópolis em 1947. Nessa poesia o poeta cria o verbo Teadorar. O estilo do poeta está no jogo das palavras. Para Bally “ as palavras se dividem em transmitidas e adquiridas. As transmitidas são aquelas que começamos a ouvir, de forma inconsciente, desde a mais tenra infância.Nelas, estão presentes a afetividade e o sentimento. Não representam conceitos abstratos, mas as primeiras vivências, quando os olhos da criança vislumbram os albores da vida.” “As palavras adquiridas já denotam posteriormente a integração do grupo social.” No momento que Bandeira escolhe suas palavras, ele utiliza as duas ordens.
NEOLOGISMO
BEIJO POUCO, falo menos ainda.
Mas invento palavras.
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
Ao escrever Porquinho-da Índia o poeta seleciona palavras simples do dia-a-dia. Nestes versos o poeta nos traz de volta a infância. Bandeira jogou a denotação e a conotação no último verso. O passado é visível pelo uso do verbo.
PORQUINHO-DA-ÍNDIA
QUANDO EU tinha seis anos.
Ganhei um porquinho-da Índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
– O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.
Manuel Bandeira viveu muitos alumbramentos. Um deles é o que se dá em Profundamente. A denotação na primeira estrofe faz referência a um tempo e não a um lugar. O tempo é um recurso estilístico presente em cada verso da primeira estrofe. O Recife eterno permanece na memória do poeta. As palavras são essenciais e marcantes. Os advérbios modificam o sentido. A antítese é marcada pelos antônimos adormeci/despertei. Um outro recurso estilístico é o dinamismo de alguns verbos: passavam, cantavam, riam que esbarram nos verbos sem movimento: deitar e dormir.
PROFUNDAMENTE
QUANDO ONTEM adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como o túnel
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
– Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
– Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
O poeta Bandeira deixou várias contribuições como: língua coloquial, liberdade criadora, irreverência, verso livre, etc. Ele concilia no poema abaixo a crítica social e a coloquialidade lingüística. O uso dos verbos no pretérito destaca um humilde cotidiano. É assim que Bandeira via a vida das pessoas humildes.
POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL
JOÃO GOSTOSO era carregador de feira-livre e morava no morro
[ da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
A seleção lexical de Bandeira sempre foi um estudo cuidadoso, consegue despertar no leitor um efeito novo, pois os recursos por meio das figuras ou das repetições fazem dos seus poemas uma rede significativa e surpreendente. No poema Trem de Ferro o poeta abusa das repetições.
TREM DE FERRO
CAFÉ com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isso maquinista?
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita fôrça
Muita fôrça
Muita fôrça
Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
Na obra de Manuel Bandeira a temática da morte é presente. Bandeira revela uma serenidade ao construir um eufemismo na poesia Consoada. O poeta revela a aceitação da “Indesejada”, porque a dor de viver às vezes é insuportável. Constrói uma poesia sem dizer o nome e nos deixa surpreso ao ver que sua convivência com a Indesejada talvez seja serena.
CONSOADA
QUANDO A INDESEJADA das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
– Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios).
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA, Manuel. Os Melhores Poemas. São Paulo: Global
BALLY, Charles. El Lenguaje y la vida. Tradução Amado Alonso. 3ª ed. Buenos Aires: Lousada, 1941.
BENTO, Antônio. Retratos de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Diário Carioca, 1946.
COSERIU, Eugenio. Sincronia, Diacronia e história. São Paulo: Presença, 1979.
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