O social e o literário
a apropriação de valores morais
da sociedade ibérica do XVII feita
por uma sátira atribuída a Gregório de Matos
Eduardo da Silva de Freitas
Em um longo poema atribuído a Gregório de Matos cuja disdacália diz “Torna o poeta a dar outra volta ao mundo depois desta segunda crisi”, é montado um grande palco, no qual se encenam diversos comportamentos: vida luxuriosa, presunção de fidalguia, falsa religiosidade, corrupção, cumplicidade com não-católicos, etc, todos propostos como males que assolam o Império. A abrangência da sátira, que apresenta tanto faltas das altas esferas jurídico-administrativas como também os erros microscópicos da vida doméstica, evidencia o grau de corrupção do mundo. São 106 estrofes organizadas em pares (1 e 2, 3 e 4, 5 e 6... 105 e 106), que teatralizam, em cada par, um exemplo de vício e que se encerram em dois debochados refrões “Boa história” – nas ímpares – e “Boa asneira” – nas pares.
Atitudes ridicularizadas, vícios, deboche, tudo isso faz parte do discurso satírico. Eles servem para criar uma bipolarização sutil que opõe vício e virtude, através da caracterização explícita e negativa do primeiro e da posição agressiva de quem promove tal caracterização. A operação é delicada, porque há qualquer coisa de semelhante entre o excesso com que o “ator” interpreta e a própria situação interpretada. Basta lembrarmos a reformulação que a noção clássica de “temperança” sofreu, no século XVII, tornando-se mote de tratados morais ibéricos como El Criticón, de Baltasar Gracián. Contudo, por preceitos retóricos agudos que, distinguindo o ser “vulgar” do parecer[1], relacionam aquela idéia aos comportamentos cortesãos, referidos como “discretos”, ela acontece ainda que implicitamente: no fim o “ator” sempre parece se contrapor à situação que encena, estabelecendo-se a oposição em errado X certo.
Mas a convenção poética da sátira não explica tudo sobre o poema mencionado. Há algo externo a ela que é assimilado permitindo a bipolarização referida; algo que se insinua em termos como “jurisprudência”, “lei católica”, “doutrina cristã”, “fidalguia”, os quais não são propriamente formais, senão remetem a valores sociais, mas que são aplicados pela convenção poética na definição de vício e virtude. Em outras palavras o poema encena atos e comportamentos, interpretando-os segundo a moral vigente numa sociedade e numa determinada época – no caso a sociedade portuguesa do século XVII – da qual funcionaria como uma espécie de exemplorum. Para entender a sátira, é importante tentar reconstituir a malha de referências que coexistem com ela para relacioná-la ao poema em questão. Para tanto faz-se necessária uma breve abordagem das teorias que sustentavam o Estado português, das orientações aos membros da Igreja e dos hábitos (mores) sociais daquela sociedade.
A sátira seiscentista produzida na Bahia, segundo Hansen (2004), se identifica com os discursos produzidos para a definição do Estado de acordo com princípios católicos, que ditam regras de comportamento a todos os segmentos da sociedade. Tais discursos orientam os membros da sociedade a ocuparem o lugar político adequado a cada um, estabelecendo a ordem e o bom funcionamento do conjunto, ao mesmo tempo que propõem a unificação das diversas partes do Estado. Essa unificação modelada em termos de amizade entre os membros da sociedade era necessária para que todos alcançassem a salvação divina, fim último da organização secular, expresso simbolicamente como “bem comum”.
Por outro lado, a unificação de interesses não significava igualdade de direitos, já que o corpo social é estruturado hierarquicamente. Nesse sentido a sociedade é comparada ao corpo humano, no qual cada parte se aplica a uma função, mas estão subordinadas à cabeça. Ora, na sociedade cada parte tem uma função definida de acordo com as suas origens e posses: aos juízes cabe deliberar; aos governadores, o cuidado administrativo; aos senhores de engenho, a produção das riquezas, aos escravos, o trabalho; etc; todos estes subordinados ao rei. A ele cabe impor a vida virtuosa aos seus súditos, a qual os levará à salvação. Metaforicamente, assim como as orientações da cabeça visam a harmonia do corpo para a salvação da alma, as do rei visam a harmonia do povo para a salvação do reino.
Dessa maneira, fica claro que as teorias que formulavam a forma de governo português se pautavam numa visão teológica muito forte, não significando, porém, que a organização secular da sociedade provenha de Deus. Ao contrario, no século XVII ibérico, contra-reformado um tal pensamento, luterano, seria grande heresia, porque implicaria dizer que o rei é o representante de Deus na terra e que seu poder era superior ao do Papa, já que fora dado diretamente por Deus. Como demonstra Hansen (2004, cap. 3), o pensamento contra-reformista, formulado por Botero e Suárez, em vigor na península ibérica no século XVII, propõe que o poder fora dado primeiramente ao povo por direito natural (per ius naturale) e que o povo prefere se transferir do poder em favor da pessoa do príncipe para que ele conduza o corpo social ao “bem comum”. Logo, “a autoridade política é instituída de iure humano (por direito humano)” (HANSEN, 1996: 143), num pacto de sujeição que entende que o rei é a pessoa mais indicada para impor a vida virtuosa à comunidade.
Esse pacto de sujeição, embora coloque o rei acima das leis positivas, não o desobriga das leis divinas. Todas suas ações enquanto governante têm que se pautar nestas, se quiser ser justo, correndo o risco de perder o reino caso não as guarde. Quando incorre nesta última situação o seu governo se torna ilegítimo, possibilitando a crítica. Vieira indica os limites da ação do rei: “O Rei pode tudo o que é justo; para o que for injusto nenhum poder tem”; um pouco antes define, aristotelicamente, o que entende por justiça, insinuando a relação entre leis positivas e divinas: “A Justiça, como a definem Teólogos e Juristas, não é outra coisa que uma perpétua vontade de dar a cada um o que merece” (VIEIRA, 2002: 260 e 257, grifos meus).
Note-se que a idéia de justiça apresentada por Vieira, além de insinuar a relação Estado-Igreja, explicita a “naturalidade” da hierarquização social. Ora, se ministros, por exemplo, são mais importantes que um trabalhador “mecânico”, logo é justo que os favores do Rei sejam maiores para o primeiro do que para o último, diferenciando-se, como se vê, privilégios de injustiça. Numa sociedade profundamente hierarquizada as distinções são justas na medida em que se proporcionem ao status do individuo. Inversamente, injustiça é posicionar as partes do corpo em lugares impróprios e atribuir-lhes tarefas incompatíveis com suas características: colocar os pés no lugar do tronco; atribuir às mãos o ofício de conduzir o corpo; etc. Exemplifica-nos, uma vez mais, Vieira:
Dom Fulano (diz a piedade bem intencionada) é um Fidalgo pobre, dê-se-lhe um Governo. E quantas impiedades, ou advertidas ou não, se contêm nesta piedade? Se é pobre, dêem-lhe uma esmola honestada, com o nome de tença, e tenha com que viver. (VIEIRA, 2002: 400)
O problema existira apenas no caso de excesso com que se favoreciam ou prejudicavam os súditos, ou seja, quando houvesse disposições que pudessem comprometer o “bem comum”. Diante deste, os interesses particulares deveriam se refrear para que o todo não se perdesse; e os representantes do rei, principalmente, não estão autorizados a se beneficiar dos cargos que ocupam, porque, como pessoas públicas, devem zelar por ele:
... porque destos [os representantes do rei] es cosa llana, y çierta, que em reçibir dádivas, o pedir cosa de valor, directe ou inderecte por este fin, y con color de offiçio, pecan mortalmente contra la Republica gravissimamente”. (Franscico Suárez, apud HANSEN, 2004: 121)
Zelar aqui é fazer com que as leis positivas, que estabelecem a hierarquia, sejam cumpridas. Além disso, enquanto reflexo das leis divinas, elas são o sustentáculo do Estado, sendo importante que os reis e seus representantes entendam “que as disposições e privilégios”, quando injustos, “não são só feridas da Lei, mas feridas mortais, e que Lei morta não pode dar vida à República (VIEIRA, 2002: 263). Nas situações em que o “bem comum” fosse ameaçado qualquer súdito poderia “murmurar” do rei ou dos representantes instituídos por ele. Tal atitude não significa, porém, uma tentativa de subverter a ordem, senão alertar o rei quanto aos desvios da hierarquia para que a reestabeleça. Segundo Hansen, exatamente o procedimento da sátira seiscentista:
A sátira desenvolve como um de seus temas principais essa desigualdade de direito para ratificá-la como harmonia preestabelecida e criticar atos que publicamente a desestabilizam quando infringem os deveres de cada ordem: não se criticam, portanto, o privilégio, mas os efeitos de seu excesso ou carência. (HANSEN, 2004: 121)
No poema em questão neste trabalho são doze (seis pares) as estrofes, da 17ª à 28ª, que encenam o desrespeito à ordem através da concessão excessiva de privilégios, da utilização de postos públicos em favor próprio, aberturas de processo motivadas por vingança pessoal, descumprimento das leis. As críticas são bem gerais, mimetizando a doutrina, e se evidenciam em termos como “fazendo o direito torto”, “muita insolência”, “fazendo negaças”, “por muito bom dinheiro”, “raivas internas”, “as alvíssaras lhe peçam”, entre outros. Sirvam de exemplo as estrofes 19 e 20:
19. Que juizes mentecaptos
sabendo jurisprudência
castiguem uma inocência
como fez Pôncio Pilatos:
que para certos contratos
o réu, que a si se condena
absolvam da culpa, e pena
com uma interlocutória!
Boa história.
20. Mas que outros com vozes mudas
levados da vil cobiça
vendam a mesma justiça,
como a vendeu o mau Judas:
que com razoes tartamudas
indo de mal em pior
não dêem conta ao confesso
da sentença trapaceira!
Boa asneira. (MATOS, 1999: 375)
Como se vê na estrofe 19, a adjetivação é contundente, referindo-se não propriamente ao conhecimento da lei – “sabendo jurisprudência” –, mas a falta de caráter deste tipo de magistrado. No mesmo sentido, age a comparação com Pôncio Pilatos que, embora sabendo a maldade de Barrabás e a piedade de Cristo, tramara, por falta de caráter, a morte de uma inocência, Cristo. A estrofe 20 reitera as queixas à corrupção de juizes. Neste caso o “maucaratismo” do magistrado é explicitado no termo “vil cobiça”. A força desta pode-se inferir pela estrutura passiva da oração adjetiva do 2º verso, no qual o sujeito “outros”, remetendo a juízes, se deixa levar pelo vício execrável. Levado pela cobiça o juiz se esquece do “bem comum”, ignora a responsabilidade política que deve assumir e tira proveito próprio da situação ao vender a justiça. Mau caráter, age como o Judas, que não pensa duas vezes em entregar o “filho de Deus” aos inimigos dele por trinta moedas.
Tal encenação do vício, com reiteradas ofensas por parte do enunciador, estabelece a bipolarização certo x errado e mimetiza a fala do vulgo, que, apesar da sua pouca erudição, vê os ataques à sociedade. A ofensa atua duplamente no discurso, na medida em que marca a hierarquicamente as posições morais adequadas, não obstante a inversão delas no campo social: o ofendido está em baixo, o ofensor por cima. Outrossim, a apropriação do léxico bíblico acentua as posições ocupadas e revela que a Justiça deve se conjugar pela moral cristã, para ser a “boa justiça”.
Esta associação entre direito e teologia era mesmo comum durante o século XVII ibérico; e deixa ver o grau de responsabilidade que era atribuído (ou assumido) aos representantes do poder espiritual na organização e ordenação do corpo secular. À parte as questões filosóficas que rearticulavam os dogmas da Igreja Romana diante do crescimento do protestantismo, a própria expansão da instituição necessitava da aproximação de seus membros à população. E esta, não sendo mais um grupo homogeneizado por uma tradição cultural comum – como são os índios e os negros da América e África – demandava maior conhecimento da doutrina católica pelos padres e maior habilidades retóricas para, através de uma exegese segura da Bíblia, manter os fiéis e conquistar novos.
Daí a importância da pregação no século XVII ibérico como forma de propaganda da Igreja, como cerimônia de exibição dos símbolos católicos e, principalmente, como oportunidade de conversão do “gentio”. Enquanto figura central deste ritual o pregador acumula funções políticas, ao pregar a ordem proposta pela moral cristã; e teológicas, ao pregar a própria doutrina cristã. No púlpito, os padres têm por missão despertar seus ouvintes para as veleidades da vida terrena e para as maravilhas ou desgraças da eterna, conforme tenham seguido a doutrina católica. O Padre Antônio Viera, em um de seus sermões mais comentados, o da Sexagésima, afirma que o culpado por haver tão poucas almas convertidas é o pregador e define as circunstâncias que concorrem para o sucesso da pregação. São cinco: a matéria do seu discurso, a voz, a pessoa do pregador, o estilo que o pregador adota na construção do seu discurso e o grau de conhecimento que ele tem da doutrina. Delas as três últimas nos interessam mais de perto.
Seguindo o preceito aristotélico de que a pessoa do orador deve demonstrar certo tipo de caráter conforme o público e a finalidade de seu discurso, o padre recomenda que o pregador, mais do que qualquer outro fiel, siga as regras que prescreve. Como a finalidade do sermão é converter infiéis e precaver os fiéis através da exposição de atitudes certas e erradas de acordo com a moral cristã, o pregador, representante desta, deve captar a benevolência do público pela honra de sua pessoa, encarnando as virtudes e escarnecer dos vícios. Segundo Viera, “A definição do Pregador é a vida e o exemplo”[2] (2002: 36), ou seja, as palavras por si não fazem o pregador, é necessária a ação: o exire e o seminare, que se evoca no início de Sermão da Sexagésima.
Aliada à pessoa do pregador, a ciência da doutrina é outro fundamento. Como a pregação é um ato pedagógico, por assim dizer, já que ensina a ser um “bom cristão”, é importante que o pregador saiba recorrer a passos bíblicos, à patrologia, às vidas dos santos, de onde tiraria os exemplos confirmadores das suas palavras a fim de convencer o público. Não basta só o domínio da oratória, é importante expor os modelos de conduta que devem ser seguidos.
A questão da ciência implica, ainda, a formulação do sermão como reprodução própria dos conhecimentos do pregador, ou seja, como fruto do seu juízo e entendimento. O pregador que diz com palavras alheias as coisas divinas é negligente. Negligente, porque, não se preparando para a sua prática, deixa de conhecer seus adversários e de produzir argumentos que poderiam derrotá-los, e porque não será capaz de converter o gentio:
O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento. (VIEIRA, 2002: 44)
Se por um lado a ciência é de grande importância, também assim é a forma empregada para transmiti-la. Sendo um produto do juízo que visa o entendimento de outras pessoas, o sermão tem que apresentar ordenação simples: por se enquadrar no gênero deliberativo, o pregador tem que organizar os entimemas de modo claro para conduzir seu público inequivocamente a uma decisão prática. Por isso, não é recomendada a conceituação ambígua, metáforas muito agudas, excessos de jogos de palavras, pois isto obsta o entendimento. É o que justifica a pergunta do padre: “É possível que somos portugueses, e havemos de ouvir um pregador em Português e não havemos de entender o que diz?” (idem, p. 40)
A crítica que Vieira levanta contra os estilos modernos se justifica, segundo Hansen (2002: 315 e 316), no século XVII, ibérico, a partir dos critérios de adequação do discurso à matéria e à recepção. Como ficou dito anteriormente, é característica do “discreto” saber se adequar às mais diversas situações; o que se estende também ao discurso. Isto não impede o pregador de mostrar erudição, mas deve evitar o hermetismo do seu discurso, para que alcance seus objetivos. É o que faz o padre ao citar passagens da Bíblia, da patrologia e de filósofos, em latim, e em seguida apresentar as traduçoões; ou, ao propor um conceito, explicitá-lo com diversos exemplos retirados da Bíblia ou da História.
É a ausência destas características, nas palavras “andem com perturbações”, “amor das prelazias”, “estígia caldeira”, “não queria ser frade pobre”, “vagabundo”, “só para ajuntar dobrões”, “sem teologia estudar/ ou sem saber oratória”, “lhes diga... patranhas”, “conceitos galantes”, “comédia prazenteira”, que a sátira condena. Em resumo:
13. Que haja pregador noviço,
que estude alheios sermões,
só para ajuntar dobrões
porque os ajunta por isso:
que cuide muito remisso,
que poderá bem pregar
sem estudar teologia
ou sem saber oratória!
Boa história.
14. Mas que haja mais pregadores
que estudando resolutos
não tratem de colher frutos
porém só de colher flores:
que sendo estes tais doutores
reguem conceitos galantes
bem como os representantes
na comédia prazenteira?
Boa asneira. (MATOS, 1999: 374)
Note-se a equivalência entre as posições encenadas na sátira e as propostas pelo Pe. Vieira. A questão do desconhecimento das habilidades que constituem a prática sermonística reproduz-se nos versos 7 e 8 da estrofe 13; e a questão da incongruência entre discurso e seus objetivos se encontra nos versos 3 e 4 da estrofe 14: as “flores” simbolizam os “conceitos galantes” que, mais do que método de conversão do “gentio”, é ornamento fútil. Por último, ressalte-se a homologia do termo “fruto” na sátira e no sermão, que se refere tanto à conversão do fieis quanto ao produto de um trabalho árduo.
Parece ter ficado claro até aqui que a sátira não poupa críticas às altas esferas sociais. Como vimos, ela se volta contra os representantes do poder real e membros da Igreja, encenando tantos desvios políticos quanto religiosos. Mas a abrangência da sátira vai além das instituições oficiais, ela invade a vida quotidiana até as mínimas situações e desvenda um código moral muito amplo. Não se pretende nesse trabalho esmiuçar os pensamentos articulados no poema senão apontar os signos mais notoriamente utilizados pelo texto para as estilizações de vícios e virtudes.
Em seu livro O Teatro dos Vícios, Emanuel Araújo mostra que a vontade de ser “distinto” era intensa no Brasil. A hierarquização social parecia despertar este desejo de ser notado, de ser importante. Segundo o autor, esse desejo se revelava nos gastos excessivos com roupas, jóias, escravaria, os quais possibilitavam certo desfrute de superioridade perante outros membros da sociedade, muitas vezes, em detrimento dos bens de necessidade mais imediata como alimentação, mobiliário, etc. Afinal de contas, como observa Hansen (2004: 192) a distinção se estabelece num jogo de ver e ser visto, que reproduz a hierarquia. Dessa maneira,
Por que, então, ostentar dentro de casa um luxo que não serviria para ‘provar’ aos outros o quanto se deveria ser pecuniariamente folgado e despreocupado em seu viver? (ARAÚJO, 1997: 12)
É esse desejo de notoriedade, relatado em documentos da Bahia do século XVII analisados por Hansen (2004, cap.2), que fomenta as brigas entre Câmara e Relação por questões como estabelecimento dos preços das mercadorias, as demarcações de terras, os desrespeitos aos privilégios; as discussões sobre os lugares de destaque nas festas; os pedidos feitos ao rei para que elevasse a importância das vagas menos prestigiadas do Convento de Santa Clara. Também a aversão ao trabalho se justifica por esse desejo. Exercer uma profissão “mecânica”, isto é, um trabalho físico, era um sinal de inferioridade social, já que era uma função tipicamente escrava. Assim muitas pessoas que possuíam algum dinheiro procuravam obter o seu cativo para que ele realizasse as funções desprestigiadas. Mesmo ex-escravos agiam dessa forma, havendo casos em que até escravos juntavam dinheiro para comprar seus cativos a fim de dividir as tarefas ou servir de escambo em troca da alforria (idem, p. 92).
Essa ostentação de riqueza, luxo e ociosidade nada mais é do que reflexo do ideal da vida fidalga. Como o fidalgo era a classe mais prestigiada na sociedade, seu padrão de comportamento era imitado por muitos: a acuidade no traje, a abastança, as influências, a vida sem trabalho, a alimentação farta, etc. Porém, havia uma diferença crucial entre ser e parecer fidalgo, a qual consistia na origem. O fidalgo verdadeiro era aquele de nascimento nobre, numa família já titulada há muito tempo, ao passo que o “afidalgado”, por mais próximo que chegasse do modelo, era-lhe inferior.
A sátira encena negativamente a pretensão de fidalguia, apresentando o excesso de gastos com vestuário ou alimentação supérflua, a afetação nos modos, as supostas influências e mesmo a avareza. Nesse sentido articula antíteses que relacionam a elevação social à queda moral do indivíduo e indica a virtude na adequação entre status e pretensões, exemplificando um preceito muito próximo ao apresentado por Vieira no Sermão de Santo Antônio: “Quem quer o mais do que convém, perde o que quer, e o que tem” (VIEIRA, 2002: 336). Transcevemos duas das doze estrofes (45-48 e 55-62) em que este tema é abordado:
61. Que os lisonjeiros sem leis
nos palácios muito prontos
aos Reis se vão com mil contos,
por ter mil contos de réis:
que sendo pouco fieis
tenham glória, e tenham graça
com tão verdadeira traça,
e mentira adulatória!
Boa história.
62. Mas que o pobre jovial
chocarreiro de vis traças
queira com fingidas graças
entrar na graça Real:
que quando ele nada val,
entre assim no valimento,
para o seu requerimento
com a gracinha grosseira!
Boa asneira. (MATOS, 1999: 385 e 386)
Não só a pretensão de fidalguia marcava aquela sociedade. Pelo que se pode notar em algumas denunciações do Santo Ofício (HANSEN, 2002: cap. 3), havia um “policiamento” religioso intenso no período colonial, facilmente compreendido através de medidas tomadas por Roma para a contenção de cultos não-católicos e a afirmação dos dogmas da Igreja. A população, é verdade, nem sempre seguia tais dogmas ou comportamentos ditos religiosos, mas, ao que parece, sabia identificá-los muito bem e reportá-los às autoridades eclesiásticas. Palavras de origem judaica, piadas sobre temas católicos, uma atitude mais descomposta na igreja, como não se ajoelhar ou fazer o sinal da cruz fora de ordem, entre outras atitudes eram motivos mais do que suficientes para causar uma investigação.
Hansen demonstra no 3° capítulo do seu livro a receptividade do Santo Oficio às denúncias que se lhe faziam. Bastava que o denunciante se apresentasse e fizesse os juramentos de praxe para que pudesse acusar, sem a menor evidência, qualquer pessoa. O jogo do “disse que disse” era freqüente, como se pode ler em uma denúncia em que o denunciante “disse que Diogo Fernandes... lhe disse... que ouvira dizer...”. Contudo a presença do Santo Ofício não intimidava a população que misturava ritos católicos com festas profanas, cometia sacrilégios e simonias, comia e bebia nas igrejas, conforme relata Emanuel Araújo. Havia ainda os adúlteros, os sodomitas, os “freiráticos”, os libidinosos, que pecavam através da carne, contrariando as prescrições da igreja que impunha o recato e a prática do ato sexual apenas para a procriação.
Aliás, a respeito do controle da igreja sobre as práticas sexuais, Emanuel Araújo ressalta que ele se fazia muito mais intenso para as mulheres. Como filhas de Eva, eram elas que despertavam nos homens o desejo carnal, assim todo cuidado deveria ser tomado em relação a elas. A Igreja entendia que ela deveria ser subserviente ao homem, obedecendo aos pais, irmãos e maridos; além disso seu espaço era o lar, sendo poucas as ocasiões em que poderia sair de casa. Esse é o pensamento patriarcal vigente na época no qual ao homem se atribui o papel de prover o sustento e à mulher, a administração do lar e educação dos filhos dentro da moral cristã
A maior parte da sátira, como dissemos, encena desvios de comportamento desse tipo. Ou seja, ela se apropria desta moral para criticar a vida luxuriosa, as festividades do entrudo, a criação de filhos fora da doutrina católica, a falta de religiosidade, a submissão do marido à mulher... Como no caso das estrofes abaixo em que critica a falta de companheirismo entre marido e mulher e a submissão daquele a esta.
35. Que um marido perdulário
perca o dote da mulher,
e depois de pouco ter,
gaste mais do necessário:
que se ponha temerário
depois a gritar com ela
fazendo-lhe a remoela
com a praga imprecatória!
Boa história.
36. Mas que outro com tanto estudo
ame a mulher, que lhe agrada,
que o marido mande nada,
mas que a mulher mande tudo:
que se ponha mui sisudo
em casa a lisonjeá-la,
e que depois vá gabá-la
a seus amigos na feira!
Boa asneira. (MATOS, 1999: 379).
As situações são muitas, não cabendo a análise de todas elas, uma vez que este trabalho se pretende apenas mostrar que a sátira está calcada em valores morais da sua época, verossímeis à recepção e à produção literária. Como se procurou demonstrar, as situações encenadas nesse poema seguem critérios morais históricos apropriados pelo estilo. Aliás, a desconsideração do contexto histórico da sátira atribuída a Gregório de Matos é o principal erro de metodologia dos críticos desse autor. Segundo Hansen, desde o romantismo muitos consideram a obra o reflexo da personalidade do autor – esta têm sido uma via muito pisada pela crítica ao abordar a sátira atribuída a Gregório de Matos –, eternizada em relatos como o do Licenciado Manuel Rabelo. José Veríssimo (1998, 91 e 100) não hesitou em penetrar esta senda, tampouco Bosi (2004, 37), apesar da diversas edições (estamos na 42ª) de sua história se aventurou por outra senda. Outros poderiam ser citados – como Silvio Romero, Vanhargen –, mas preferimos indicar o capítulo 1 do livro de Hansen.
Outras abordagens têm sido feitas: umas apontam o suposto autor como um precursor do nacionalismo-nativista do século XIX, “bandeira-nacionalizando” o poeta a partir da interpretação das misturas de palavras indígenas, africanas e portuguesas, símbolo dessa mistura étnica – Sílvio Romero; outras o apresentam como o vanguardista do movimento concretista do século XX, por seus jogos de palavras, pela estruturação imagética de alguns de seus poemas – Augusto de Campos; ou o revolucionário, que pretendia depor os valores e instituições portuguesas, atacando os representantes da metrópole. Todas elas projetaram mais os valores do momento da crítica do que os do momento da criação satírica, e apenas recentemente tem se revisto tais posições.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO. Emanuel. O Teatro dos Vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olumpio, 1997.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 42ª ed. São Paulo: Cultrix, 2004.
––––––. “Vieira ou a Cruz da Desigualdade”.In: Dialética da Colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.
HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2ªed. São Paulo: Ateliê; Campinas: Unicamp, 2004.
––––––. “O Discreto”. In: NOVAES, Adauto (org). Libertinos libertários. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
––––––. “Pós-moderno e barroco”. In: Cadernos do mestrado / Literatura. nº 8. Rio de Janeiro: UERJ, 1994, p. 28-55.
––––––. “Razão de Estado”. In: Novaes, Adauto (org.). A Crise da Razão. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
MATOS, Gregório de. Obra Poética. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1999.
VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Letras & Letras, 1998.
VIEIRA. Antonio. Sermões. São Paulo: Hedra, 2002. 2 vol.
[1] Os preceitos retóricos do século XVII, retomando pensamentos clássicos encontráveis no Livro III da Arte Retórica, de Aristóteles, propõem que o discurso deve se adequar à matéria tratada. Isto implica que um tema considerado elevado receba “revestimento” verbal erudito e, inversamente, que se “... pinte los vicios tan feos, dicriba los delitos tan abominables y represente las culpas tan horribles...” (Hansen, 2004: 200). Cf. Ainda Hansen In: NOVAES, 1996.
[2] Lembre-se o valor que a ação assume em Vieira. Politicamente, reporta às atitudes contrárias a apatia das instâncias públicas: “Que importa a sentença do Conselho de Justiça, se não se executa a Fazenda? Que importa o arbítrio no Conselho da Fazenda, se não se cumpre o arbítrio?...” (2002: 304); “Dilata o julgador oito meses a demanda que se pudera concluir em oito dias; dilata o ministro oito anos o requerimento que se deveria acabar em oito horas.” (idem: 170). Teologicamente, reporta às obras de fé como via para a salvação da alma: “Tantas diligencias para esta vida; nenhuma para a outra vida” (idem: 193). Para aprofundamento desta questão em Vieira, cf. BOSI, 1992.
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