PROSA E POESIA
UMA ANÁLISE INTERTEXTUAL NA OBRA SALLESIANA
Ludmila Antunes de Jesus (UFBA)
Célia Marques Telles (UFB)
INTRODUÇÃO
No universo da crítica lingüística e literária as análises intertextuais e paratextuais são indispensáveis para a compreensão dos textos do poeta baiano Arthur de Salles[1]. Na construção do seu discurso de temática regional, Salles produz criações simultâneas de imagens que estão presentes tanto nos textos em prosa quanto na poesia. Nesse trabalho, abordar-se-á a interatividade do discursos de temática regional em prosa e em poesia que mantém relação direta na descrição do cenário, na caracterização das personagens e nas relações temáticas.
Na descrição do cenário, a experiência de vida do poeta na região do Recôncavo; Passé cidade de seus avós maternos, a Vila de São Francisco e as ilhas adjacentes, inspirou o poeta nas descrições geográficas de diversos contos e poesias. E nesse cenário, a relação sociocultural na maioria das histórias centra-se entre pescadores, praianas e roceiros. Segundo Telles em seu artigo: O interdiscurso na obra de Arthur de Salles em alguns textos essas relações são similares tanto na caracterização das personagens quanto na atuação deles. Assim, em O dote de Mathilde, as personagens Mathide, Militão, Geraldo e Silvino têm, respectivamente, as mesmas características que Tereza, João Saúna, Pereira e Mareta do poema Sangue-mau. Em João Capataz, o taverneiro Libânio é o mesmo Libório de Sangue-mau.
A temática regional que aflora na obra sallesiana desperta a reflexão sobre o mar, a dor, as tradições históricas, lendárias e regionais, os sentimentos e as emoções pessoais retrata, enfim a sua experiência e a sua reflexão sobre o homem do Recôncavo e sobre a vida de forma em geral. Entretanto, algumas dessas reflexões se intercruzam em forma de prosa e de poesia. Sendo assim, o dialogo temático entre a prosa e a poesia ocorre nos seguintes aspectos: a fascinação que o mar exerce nas pessoas e nos animais, a lenda do tesouro, o desespero do homem frente ao mar e a morte do filho de Arthur de Salles.
O manuscrito O Cão de Bordo e os versos O Cão de Bordo, têm em comum a fascinação que o mar exerce sobre as pessoais e os animais:
O Cão de Bordo Eu vos falei da fascinação do mar, desse amor estranho que o homem tem pelo mar. Há certos animais que sentem por ele a mesma fascinação. O cão se afaz a vida dos oceanos. Conheci um que levara a vida inteira e correndo mares e, quando, já velho, ingratamente o atiraram em terra, ele ainda sentia alvoroços de alegria ao v el – o nos [...] (PR IS13- OM-004-0091-NX: 01/) |
O Cão de Bordo (...) E vel-o, quando o vento ao mar num doudo açoute, Vergasta e elle se escarva e se empola raivando, Correndo a se esfazer num fragor formidando
No penedio bruto:
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O desespero do homem frente ao mar aparece nos textos:
Mar confidente.Certo dia, à tardinha, em certa praia de lugarejo de pescadores, guiei meus passo para a riba fragosa. O sol poente desfazia-se numa grande mancha sangrenta que se alastrava pelos montes e pelas aguas. Eis que no extremo, junto ás ondas que saltavam mansas, um vulto de mulher agitava os braços para o mar largo desenrolado em frente. Abria os braços, avançava, recuava e olhava para os lados a ver se alguem a surpreendia seu coloquio manso com o Mar. Eu refugindo, recuando, esgueirando-me por detras das pedras, numa atitude má, num gesto irreverente de espião. Naquele instante, vi-a curvar-se, juntar as mãos ao rosto e vi o seu tronco sacudir numa convulsão desabrida de soluços. Fugi repêso de ter violado o coloquio entre aquela retransida e o grande mar marulhento, crepuscular, que lhe bebera as lagrimas e o segredo delas. (PR IS13- OM-004-0091-NX: 01/) (l. 26-40) |
O suicidaÉ cratera a amplidão, é lava o sol fervendo. O mar deserto, liso, espasmo, corusca... E é tudo sob a chamma asphyxiando e tremando, Dos comoros da praia á rocha aspera e fusca. (...) Nada mais!... Nada mais!... Ei-la rasgada a trama Da vida. Um grito, um ai, na penedia brusca, E eis tudo... É lava o sol e, no esplendor da chamma, O mar, deserto, liso, espasmado, corusca (Poesias, p. 43-46) |
A saga do trabalho nos canaviais é descrita em um manuscrito em prosa, inacabado A Planta amarga e na poesia Vesperal:
Veio a enchada a tinir na argilla acinzentada, abrindo as covas e os regos. (A Planta Amarga doc. 0051)
Simão Mutuca coveteia E canta: [ao batido compassado da enxada no agro bruto: chanchan, chanchan...] O canto, pedaços de loas, de samba, quadra, vae rypthmado pelo batido compassado da enxada no agro bruto.. Chanchan! [Abriam-se as covas. Vão] transpondo, as covas serpeando a beira fileira bem acesa farfalhante e cova na metade de seu esforço que [ella] nella fica com a quitanda do seu suar o cantochão da enxada, chanchan! e os usos falsos de seus [10] cantos. (A Planta Amarga doc. 0094) |
Vesperal
(...) Passa a gente do campo, que os intensos Queimadores do verão lidou, destruindo Os farfalhantes cannaviaes extensos. (...) Segue, velhas canções cantarolando: Velhas tiranas, velhas chulas, trovas, Rebentadas ao sol dos eitos, quando
A enxada negra abria as negras covas, Ou quando, ao som da viola ralhadeira, Ellas saltavam, límpidas e novas. (....) (Poesias, p. 171-173) |
A temática da morte do filho do poeta aparece em três documentos. Em carta a seu amigo Durval de Moraes: “Em roda de um berço vazio, a olhal-o viuvo da pequenina forma humana que há quatro mezes [sic] emballara, cheio ainda dos pequeninos pannos revoltos que a envolveram na vida!” (Cf. Doc: PR-EP-CO-OM-067-0341-XE: 01/JM), em um manuscrito referente à tradução de Macbeth: “Um dia em 1919 [sobrescrito] a morte bateu-me á porta esvasiou-me um berço e deixou me [sobrescrito) a dor e a saudade” (Cf. PR -PM-IS-OM-OO6: 0122-NX-OlI02) e no poema Berço Vazio publicado no jornal da Banhia, A tarde, do dia de 30 de março de 1980:
Berço Vazio
Ó visão dolorosa a de um berço vazio...
Maior do que a florida e pequena lousa
Em que longe de nós tão sozinho repousa,
Desde esse março ardente e, para nós, tão frio...
(...)
Célia Goulart de Feitas Tavares, em sua tese: Alguns aspectos da Prosa dispersa e inédita de Arthur de Salles,1986 sistematizou algumas relações entre a prosa e a poesia a partir de três aspectos. O primeiro diz respeito a relação de uma implicação lógica entre a prosa e a poesia em que o próprio autor informa que isto inspirou-me isto, no segundo a prosa pode vir a ser considerada um esboço da poesia e no terceiro aspecto abordado, a prosa tem como função apresentar a poesia.
Novos estudos na construção do discurso Sallesiano mostraram-nos outros caminhos na pesquisa da obra do autor. Em uma observação nos manuscritos relativos à tradução de Macbeth feita pelo poeta:
Motivo para uma tertulia que não para um quarto
de hora esta noticia da minha tradução (grifo meu) do Macbeth
de Skakspeare [sic]. Devia dal-a á Academia como
expressão mais alta da minha gratidão e do meu culto.
(Cf. PR -PM-IS-OM-OO6: 0122-NX-OlI02)
observa-se que Salles em prosa ou poesia dialoga com outros textos com a finalidade de apresentar, noticiar, explicar ou introduzir outros textos de sua própria autoria. Dessa forma, não se pode, pois, afirmar que há uma relação de implicação lógica ou de esboço entre a prosa e a poesia. Assim, esse trabalho tem como proposta expor um outro tipo de análise: a prosa com a finalidade de explicar a poesia, e a prosa como veículo de apresentação da obra.
A PROSA ANTECEDE OU APRESENTA O TEXTO EM POESIA
A descrição da região de da população de Passé está explicita na crônica Passé, texto publicado em 1903 na Nova Revista, e no poema Sangue-mau, publicação em 1928 na Imprensa Official:
Saudavel, poetica, com as suas casas brancas disseminüdas aqui e alli pelas encostas dos outeiros verdes, perto da praia, dando uma graça festiva, um certo encanto biblico, eil-a a beira do mar, reflectindo-se na esmeralda das aguas, a pittoresca e risonha povoação de Passé. (Passé 3-7) |
o casario dos pescadores – Búzios do pobre molusco humano E uma centena de tejupares Acocorados pelos pendores Dsseminados pelos outeiros Pela beirada das praias curvas. Uns branquejantes e alvissareiros, Abrem sorrindo para o oceano, Como essas velas triangulares Dentro do vago das manhãs turvas. (Sangue-mau v. 16-25, 107/108) |
A narrativa lendária, evocada pelo poeta é um assunto relatado em O Ramo da fogueira, em prosa, publicado em Os Annaes, 1913, e o Ramo da fogueira, em verso, publicado em A Luva, 1929 editados por[2]:
Pois é: nunca mais eu deitarei ramo na fogueira, noute de são João. Nunca mais!... E a voz extinguia-se na garganta, trêmula e dolorida e os olhos pequenos foram-se anuviando de lágrimas. - Mas que tem um ramo de fogueira com a vida? (...) (Os Annaes, l.3-7) |
(...) Camilo Diga então. Gamboa Por que se faz fogueira em noute de São João? Gamboa Mas é tão triste a história! (A Luva, l.17-24) |
Nesses exemplos citados acima o diálogo entre os textos ocorre de forma que o texto em prosa serve como complementação para a divulgação da temática apresentada em cada obra. Não há uma relação de implicação lógica, mas uma tentativa de apresentação da poesia contrariando em parte o que afirmou Tavares.
A PROSA APONTA O CAMINHO DA POESIA
Em um manuscrito sem título e sem data Salles escreve que todos os ritmos poéticos: poesia simples, popular, a ode, o idílio, podem ter como inspiração o mar. Dentre essas poesias, destaca-se a grandiosidade da poesia da vela, pois a vela é considerada pelo poeta como símbolo do passado, da glória inacessível dos oceanos, do esplendor eterno, da descoberta da América e do Brasil, da ousadia humana. Assim, nesse texto, em prosa, um parágrafo leva-nos à associação entre a poesia A Jangada:
Uma jangada, numa tarde, com a sua vela branqueando nas ondas, uma pobre jangada, evoca cada aporia da vela e os primeiros passos do homem no caminho do mar. Ela inspirou-me estes versos. [...] (Tudo no mar é poesia l. 39-42) (grifo nosso)
(Manuscrito 004: 0068 de |
A JangadaVou comtigo ao sem fim nebuloso das eras. Tacteio vastldoes. Horizontes tacteio... Busco traçar um rumo e o mysterio renteio... É um periplo de sonho a um paíz de chimeras. (...)
(Obra poética de
Arthur de Salles, |
Um segundo exemplo, desse tipo de intertextualidade, pode ser analisado em outro manuscrito também sem título e sem data. Nesse, o mar é descrito com o reflexo do céu. O poeta provoca no leitor a sensações do por do sol sob as águas, sendo ele, descrito como o símbolo da força, da mocidade, da vida. Dentre essa nova visão do mar tem-se a descrição dos seguintes trechos:
Ver o sol, no fim da tarde, no occaso afogueado a esc.onder-se no mar, medroso da noute! Este espectaculo in[s]pirou este soneto: (grifo nosso) “O céo a valva azul de uma concha semelha” (Dos: PR-IS-OM-004-0089-NX: 01/) |
Occaso no Mar
O céo a valva azul de uma concha semelha. De que o outra valva é o mar ouriçado de escamas. No ponto de junção, o sol – molusco em chamas, – Do lysso espalha no ar a incendida centelha.
(Obra Poética de Arthur
de Salles, |
A fascinação do poeta perante o mar também é vista em um outro texto em prosa, sem título e sem data. Aqui, destaca-se a comparação entre a juventude do mar e a história da civilização; seu nascimento, glórias, decadência: “O homem pequeno e transitório é o mar immenso e eterno.” (l. 15). E assim, essa temática das aventuras das civilizações no mar, segue nesse texto em prosa e prossegue no texto em poesia:
Como contar essas primeiras tentativas, essas primeiras aventuras, esses primeiros com tactos do homem com o oceano? Em que mar alvoreceu a primeira vela? Em que costa do mundo vieram ba ter o corpo do primeiro nauta e os pedaços do primeiro navio naufragado? Estes pensamentos geraram estes sonetos: (grifo nosso) “Em que trecho de/ mar.” (...) (Doc: PR-CO3-OM-004-0078-NX: 01/) |
“Em que trecho de mar, sob o céu maldito,’’
Em que trecho de mar, sob que céu maltdito, A procela enterrou, tenebroso coveiro, O primeiro baixel e o naufrago primeiro. Em que escolho traidor de aspérrimo granito, (...) (Obra poética de Arthur de Salles, p. 274) |
Ocorre, também nesse tipo de relação a temática do ramo da fogueira:
O assumpto desse quarto de hora é um poemeto dramatizado todo ele bebido no folclore, cartilha luminosa e pura onde a minha poesia se tem descantado da sêde das cousas regionaes. (...) Trago – vos hoje um poemeto, uma outra glosa: O ramo da fogueira. (manus, O Ramo da Fogueira l.1-6) |
Gamboa Sim, como eu ia dizendo Um ramo de fogueira é um aviso temendo. Quando ele cai assim, na direção da porta, Antes do outro São João haverá gente morta. Alto, fincado ao centro, a mover a ramagem, É o marco muita vez do fim da nossa viagem. (A Luva, O Ramo da Fogueira verso 56) |
É evidente que o texto em prosa introduz o texto em poesia. Nos quatros exemplos descritos acima, Salles afirma que a imagem da jangada numa tarde, o espetáculo do sol sobre o mar, e o pensamento sobre as civilizações, e a cultura folclórica, inspirou-o a escrever os sonetos. Não há uma implicação lógica entre a prosa e a poesia, os textos são independentes sendo que alguns fragmentos remetem-nos a outros textos. Pode-se afirmar que esses textos em prosa fazem parte de um discurso introdutório dos textos em poesia. A prosa, nesses casos, serve como uma apresentação, e não com esboço da poesia.
PALAVRAS FINAIS
A produção poética de Arthur de Salles é resultado da realidade vivida pelo poeta na região do Recôncavo Baiano, sendo sua obra de temática regional fruto de uma reflexão do homem do mar e seus sentimentos, sua história, as paisagens e as aventuras.
Tanto nos textos em prosa quanto aqueles em poesia, as propostas de significações são específicas, mas em determinadas situações vai retomar um fragmento, uma imagem, uma temática, uma pista que nos leva a uma introdução ou à reflexão sobre outro discurso escrito pelo próprio autor. Não se pode, pois, afirmar que em alguns textos em prosa haja uma implicação lógica ou que seja um esboço da poesia. Essas similaridades entre as estruturas discursivas fazem parte da criação e da recriação do poeta, que na construção de sua obra relaciona temas, personagens e espaço geográfico, formando, assim, uma rede de textos que dialogam entre si, difundindo e representando a língua e a cultura do Recôncavo Baiano.
REFERÊNCIAS
ASSUNÇÃO, Lucidalva Correia. A prosa inacabada de Arthur de Salles: “Os Rincões Patrícios” e outros escritos. Dissertação de mestrado orientada por Albertina Ribeiro da Gama. Salvador: UFBA, 1999.
CARVALHO, Rosa Borges Santos de. O processo de construção do texto literário (Arthur de Salles nos entrelaces da tradição). In: SILVA, Márcia Rios e BLANCO, Rosa Helena. Estampa de Letra. Salvador: UFBA, 2001.
––––––. Poemas do mar de Arthur de Salles: Edição crítico-genética e estudo. Tese de doutorado orientada por Nilton Vasco da Gama. Salvador: UFBA, 2001.
REIS, Maria da Conceição Souza. O Ramo da fogueira, Obra regional de Arthur de Salles: Posposta de edição crítica. Dissertação de mestrado orientada por Albertina Ribeiro da Gama. Salvador: UFBA, 1996.
SALLES, Arthur de. Obra poética. Salvador: Secretaria de Educação e Cultura, 1973.
––––––. Poesias. Salvador, 1920.
––––––. Sangue-mau. Edição crítica dirigida por Nilton Vasco da Gama. Salvador: UFBA, 1981.
TAVARES, Célia Goulart de Freitas. Alguns aspectos da prosa dispersa e inédita de Arthur de Salles. Dissertação de mestrado orientada por Nilton Vasco da Gama. Salvador: UFBA/IL, 1986.
TELLES, Célia Marques. O interdiscurso na obra de Arthur de Salles. In: SANTANA NETO, João Antônio et alii. Discurso em Análise. Salvador: Universidade Católica do Salvador, 2003.
[1] Os textos em prosa – cartas, contos e manuscritos inacabados, fragmentos, notas, crônicas, fragmentos, ensaios, e as poesias do poeta integram o Acervo do Setor de Filologia Românica da Universidade Federal da Bahia.
[2] textos editado por Maria da Conceição Souza Reis em sua dissertação: O Ramo da fogueira, obra regional de Arthur de Salles: proposta de edição crítica.
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