TIETA DO
AGRESTE
LINGUAGEM E RELAÇÃO DE PODER
Benedito Veiga (UEFS e UCSal)
Jorge Amado, em sua Tieta do Agreste Pastora de Cabras, dada a público em 1977, apresenta uma linguagem insinuante e, por vezes, incisiva, como bem indicam as denominações atribuídas a cada um dos cinco episódios que englobam a história enredada: primeiro episódio “Morte e ressurreição de Tieta ou A filha pródiga”, segundo episódio “Das paulistas felizes em Sant´Ana do Agreste ou A viúva alegre”, terceiro episódio “O progresso chega aos cafundós de Judas ou A Joana D´Arc do Sertão, quarto episódio “Das festas de Natal e Ano-Novo ou A matriarca dos Esteves” e quinto episódio “Do sol azul e da lua negra ou A rival de Deus”.
Em todos os momentos desta construção amadiana, vejo um arcabouço de ironias, montado provisoriamente para não apenas opor e aproximar cidade grande (São Paulo) e cidade pequena (Sant´Ana do Agreste), mas, sobretudo, para mostrar o ser humano em sua luta para manter-se conforme os padrões herdados dos mais antigos e, em muitos instantes, não absorvidos completamente pelo imediatismo do uso corriqueiro, porém julgados necessários para impor respeito e acatamento sociais a seus usuários.
Preliminarmente, começa o autor da narrativa, na fase inicial do primeiro episódio, com a advertência:
Começo por avisar: não assumo qualquer responsabilidade pela exatidão dos fatos, não ponho a mão no fogo, só um louco o faria. Não apenas por serem decorridos mais de dez anos mas sobretudo verdade cada um possui a sua, razão também, e no caso em apreço não enxergo perspectiva de meio-termo, de acordo entre as partes. (AMADO, 2000: 2)
A questão da credibilidade do enredo a ser contado é colocada à prova no jogo ficcional entre o verdadeiro e o verossimilhante, tirando o narrador proveito da situação para testar seu leitor nas opções do convencional (o verdadeiro) e do não-convencional (o verossimilhante). O contador da história exime-se da “responsabilidade” de emitir qualquer testemunho frente a “exatidão dos fatos”, afirmando, peremptoriamente, numa amostra carnavalizada da relação de poder: “só um louco o faria”. Como recursos lingüísticos, o narrador usa o decurso temporal (“por serem decorridos mais de dez anos”) e as possibilidades de desvios nas construções individuais de linguagem (“verdade cada um possui a sua”), concluindo intempestivamente: “não enxergo perspectiva de meio-termo, de acordo entre as partes.”
Frente a estas alternativas teóricas, estaria o autor de Tieta do Agreste assumindo uma perspectiva de narrativa pós-moderna, dentro dos parâmetros sugeridos por Silviano Santiago, quando afiança: “Quem narra uma história é quem a experimenta, ou quem a vê?” (SANTIAGO, 2002: 44)
Prosseguindo, Jorge Amado instiga ainda mais seus leitores, colocando-se à margem de sua própria narrativa:
Enredo incoerente, confuso episódio, pleno de contradições e absurdos, conseguiu atravessar a distância a mediar a esquecida cidadezinha fronteiriça e a capital – os duzentos e setenta quilômetros de buracos no asfalto de segunda e os quarenta e oito de lama de primeira ou de poeira de primeiríssima, pó vermelho que se incrusta na pele e resiste aos sabonetes finos – indo ressoar na imprensa metropolitana. (AMADO, 2000: 2)
Neste texto, sinto também a proximidade do narrador de Tieta do Agreste das idéias da percepção carnavalesca do mundo, no ir e vir das contradições aparentes, nos permeios de ironias, com a linguagem rica e carregada de ambivalências, como bem expressa, argutamente, o escritor na escolha do epíteto de Tieta, “Pastora de Cabras”, pageando caprinos numa região – Mangue Seco – nem propícia a sua criação e pastoreio, mas ainda sugerindo, ambiguamente, a idéia de “cabra macho”, tão corriqueira no Nordeste.
Mikhail Bakhtin, na “Introdução” de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, assim escreve sobre a carnavalização:
Essa visão, oposta a toda idéia de acabamento e perfeição, a toda pretensão de imutabilidade e eternidade, necessitava manifestar-se através de formas de expressão dinâmicas e mutáveis (protéicas), flutuantes e ativas. Por isso todas as forma e símbolo da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permutações constantes do alto e do baixo (“a roda”), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, profanações, coroamento e destronamentos bufões. (BAKHTIN, 1999: 9-10).
Esse jogo “ao avesso, ao contrário” estará presente em todo o desenrolar da história, sendo tomado para fazer surgir o emprego da linguagem nas relações de poder. As personagens da narrativa são, por vezes, tomadas para carregar de ironia grotesca a veracidade de suas palavras, plenas de humor, mas repletas de impressionante logicidade. Como exemplo, cito Bafo de Bode, espécie de colunista social na insipiente comunidade de Sant´Ana do Agreste, guindado pelo escritor para tornar-se o autor de uma das epígrafes do livro “Que belo pé de buceteiro!” (AMADO, 2000: IX), aliás, a que serve para indiciar o papel provocador que estaria reservado a Tieta. A este participante e conhecedor dos acontecimentos (os praticados na clareza e aqueles outros executados – a duras penas ou prazerosamente – às escondidas, caberá ainda dizer do início dos desentendimentos na relação amorosa de Tieta (tia) e Cardo (o sobrinho, seminarista), ao flagrar-lhe aos beijos com “a indócil vitalina” dona Edna: “– Gentes, vamos pôr o cu no seguro que a Pomba do Divino está solta em Agreste! (Idem ibidem, p. 548) Tal construção de linguagem mantém o clima de ambivalência textual, fundindo, na metonímia/metáfora “Pomba do Divino”, o mais chulo e grotesco (o órgão sexual de Cardo, seminarista) com o religioso (a representação de uma das pessoas da Santíssima Trindade).
Bafo de Bode, rejeitado socialmente, carrega enorme responsabilidade e retribui ao social o saber das histórias de todos, presenciadas/sabidas e gravadas/comunicadas por ele:
Ao encontrá-lo andejo em ronda pelas ruas e becos da cidade, em horas tantas, tudo vendo e comentando, Amélia Dantas, (atualmente Régis), de apelido Mel, ex-Primeira Dama do Município, classifica o mendigo de alpargata do cão. Segundo Barbozinha, Bafo de Bode é o olho da cidade. O olho do cu, acrescenta Aminthas. Tanta coisa viu, nada mais o espanta. (Idem ibidem, p. 547-548)
Outra oportunidade de encarar o olho como símbolo do poder foucaulteano: o olhar de fora que a tudo e a todos observa. Bafo de Bode desempenharia este papel.
Analisando a linguagem e a relação de poder, as contribuições de Michel Foucault tornam-se imprescindíveis, sobretudo, se considero seu estudo sobre “O olho do poder”, quando o estudioso discute sobre o tema com Jean-Pierre Barou e Michele Perrot. As conversas giram em torno do Panopticon, de Jeremy Bentham, publicado no final do século XVIII, que desperta a curiosidade a respeito de “um olhar centralizado”. Em certo momento e concluindo seu raciocínio, afirma a filósofo:
[...] Só acho que a pura e simples afirmação de uma “luta” não pode servir de explicação primeira e última para a análise das relações de poder. Este tema da luta só se torna operatório se for estabelecido concretamente, e em relação a cada caso, quem está em luta, a respeito de que, como se desenrola a luta, em que lugar, com quais instrumentos e segundo que racionalidade. Em outras palavras, se o objetivo for levar a sério a afirmação de que a luta está no centro das relações de poder, é preciso perceber que a brava e velha “lógica” da contradição não é de forma alguma suficiente para elucidar os processos reais. (FOUCAULT, 1979: 226)
Na recepção crítica de Tieta do Agreste, os campos das relações de poder são claramente definidos: quem está em luta em Sant´Ana do Agreste? Quais são os interesses em oposição? Como está acontecendo essa luta? Quais os meios empregados nessa luta? Que racionalidade é seguida?
Existem na pequena comunidade duas facções: a dos que desejam o progresso na localidade, com a atração de turistas, pouco importando com as mudanças de crenças e comportamentos (sob o comando de Ascânio Trindade, responsável pela Prefeitura local), e a dos que preferem manter o lugar protegido, evitando a invasão de turistas com a seguida alteração de crenças e comportamentos (sob o comando do Comandante Dário). Inicialmente, dá-se a oposição de interesses, focada nas alterações na paisagem – a flora e a fauna – de Mangue Seco. A “luta” acontece sob a tutela da multinacional Brastânio – Indústria Brasileira de Titânio S.A. – do lado da instalação da fábrica e do progresso turístico, com o apoio direto da Prefeitura; em oposição, os contrários a destruição ambiental, tendo, além do Comandante, dona Carmosina e seu “Areópago”. Do lado da Brastânio, estão em cena viagens, mulheres, farras, dinheiro, interesses políticos e a boa fé de Ascânio Trindade; do outro lado aparecem artigos de jornais, as leituras de dona Carmosina, o conservadorismo do Comandante Dário etc. De um lado, a falta de escrúpulo, a ganância, a usura; de outro lado, a defesa do interesse coletivo, a preservação da ecologia, o princípio igualitário da justiça.
Mais uma vez, Jorge Amado retoma a trilha picaresca seguida na produção da heroicidade de Tieta do Agreste, hipoteticamente dialogando com seu suposto leitor:
Nesta embrulhada, cujos nós começo a desatar, quem merece nome em placa de rua, avenida ou praça, artigos laudatórios, homenagens, comendas, cidadania, ser proclamado herói? – digam-me os senhores. Aqueles que propugnam pelo progresso a todo custo – pague-se o preço sem reclamar, seja qual for – a exemplo de Ascânio Trindade? Se pagasse com a vida, teria pago menos caro. Se não forem eles, que outros? Não há de ser a Barbozinha ou a Dona Carmosina, a Dário, comandante sem tropa a comandar, que se confira tais honrarias, muito menos a Tieta, melhor dito, à madame. As palavras também valem dinheiro, herói é vocábulo nobre, de muita consideração. (AMADO, 2000: 5)
Como detectar o herói? Qual seu exato perfil? Como descobrir ações heróicas na banalidade do dia-a-dia da existência humana? Seria Tieta, reconhecida cafetina de sucesso, em São Paulo, a heroína de sua própria história?
*
Em Conversando com Jorge Amado, Alice Raillard anota nas origens de Tieta do Agreste mais uma posição amadiana frente ao jogo do poder, no caso, o regime ditatorial militarista, vigente no Brasil de 1964 a 1985. Consta das anotações:
Jorge Amado – [...] Uma vez, é verdade, perdemos uma batalha importante, há uns quinze anos, quando decidiram construir uma fábrica de bióxido de titânio, perto de Arembepe, em Interlagos, um lindo vilarejo ao norte da capital do Estado – o mar, a floresta da Bahia... Nós brigamos de uma forma terrível, Carybé e outros, para impedir a construção. Ninguém queria esta fábrica em lugar algum do mundo, ela foi recusada em toda parte, e terminou por estourar na Bahia! Lutamos e perdemos.
Aliás, foi daí que nasceu a idéia inicial de um dos meus romances, Tieta do Agreste, escrito justamente em cima deste problema: a degradação da natureza, o aniquilamento da natureza no Brasil. (RAILLARD, 1991: 24-25)
O escritor retoma a leitura crítica do regime de exceção governamental, em moda na América Latina, e, particularmente, no solo brasileiro. A história contada em Tieta do Agreste é vivida entre os anos de 1965 e 1966, como claramente expressam trechos textuais, reafirmando ser Amado um contador continuado de histórias datadas. Como exemplos: “Não obstante a presença de Frei Timóteo no corpo docente, penso que os alunos do seminário de Aracaju não conheciam Marx e Freud nos idos de 1965 – data tão próxima, ainda ontem, parecendo contudo distante passado ante as transformações do mundo [...]” (p. 321); “[...] ainda bem que as partidas decisivas do campeonato de bilhar que designará o Taco de Ouro de 1965 foram adiadas devido à morte do velho Zé Esteves, sogro de um dos quatro finalistas [...]” (p. 351); “Nós estamos em 1966, neném. Ou a notícia ainda não chegou em sua terra?” (p. 423); “– Exatamente. Os políticos andam muito por baixo, que manda atualmente no país são os militares, não é? Comandante, assuma seu posto!” (p. 508).
Para uma recepção crítica de Tieta do Agreste mais próxima de linguagem e relação de poder, parece-me suficiente uma análise do “Capítulo de Portas e janelas e do Coração de Jesus na sala de visitas ou Os primeiros momentos no seio da família” – destacando sobremaneira as relações Tieta e sua irmã Perpétua, quando lembranças do passado despertam reminiscências no presente –, correlacionando-o com o capítulo seguinte, “Dos presentes onde se abrandam corações e tomba inesperada lágrima”. No primeiro deles, está grafado assim:
Na esquina da Praça com o Beco das Três Matias, a comitiva se detém.
– Chegamos – anuncia Perpétua. – Vamos entrar.
– Tua casa? Esta? A que era do Doutor e de dona Eufrosina? – surpreende-se Antonieta. Nas cartas, Perpétua referia-se à nossa casinha, adquirida pelo Major antes do casamento, na praça Desembargador Oliva. – Mas, aqui é a Praça da Matriz.
– O nome correto é Praça Desembargador Oliva – esclarece dona Carmosina.
A casa do Doutor, a casa de Lucas. Antonieta veio preparada para enfrentar recordações mas os equívocos começaram logo ao desembarque, ao perceber o Velho empunhando o bastão. Nunca imaginara hospedar-se ali, na casa onde Lucas permanecera após a morte do Doutor, estudando as possibilidades de clínica. Valeria a pena estabelecer-se? (AMADO, 2000: 83)
O confronto das duas irmãs logo se inicia, a partir da compreensão de equívocos das cartas enviadas por Perpétua a Tieta, em São Paulo: a “nossa casinha” referida era uma das melhores casas de Sant´Ana do Agreste, local repleto de recordações para a visitante e um dos pontos nevrálgicos de sua expulsão da cidade – “a casa de Lucas”. Perpétua, reservando a surpresa da irmã apenas “à dimensão da casa” e temendo Tieta considerar abuso o pedido de ajuda mensal para a criação dos filhos, explica-se: “– Foi uma dádiva do Deus, caída do céu. O Major pagou uma bagatela pela casa e tudo que tinha dentro” (Idem Ibid, p. 84).
Em seguida, o jogo de ironias e ambigüidades amadiano aflora impiedosamente, no instante da entrega por Tieta do presente de Perpétua:
Será, por acaso, aquilo que há tanto tempo sonha [Perpétua], acalentado projeto de compra, encomenda a ser feita na Bahia. Teria havido inspiração divina a comandar a escolha, iluminando o pensamento de Tieta? Deus, por vezes, usa empedernidos pecadores como instrumento para recompensar os justos. (Idem ibidem, p. 86)
Tieta traz de lembrança exatamente uma das aspirações de sua irmã, um alto-relevo em gesso do Sagrado Coração de Jesus. Perpétua exclama de contentamento ante o tamanho e a boniteza do presente: “Quanto maior, mais bonita e cara a imagem, mais santa e milagrosa” (AMADO, 2000: 86).
A referência à “inspiração divina [...] iluminando o pensamento de Tieta” comporta uma forte carga de ironia, vez que, logo em seguida, sabe-se que todo o comando da escolha dos presentes esteve sob a tutela de dona Carmosina, esperta conselheira da amiga residente em outras terras.
No capítulo após, todo reservado a comentários sobre a argúcia e acerto de Tieta nas escolhas, no momento da entrega dos presentes a seus sobrinhos, a “inspiração divina” – o jogo de poderes terrenos e celestiais – é desvendada:
Foi assim, de música, risos e beijos, foi de festa aquele começo de noite. Como ela pôde adivinhar o gosto, o desejo de cada um? Como sabe das façanhas de Astério no bilhar? Dos sonhos de Cardo com a vara de pesca, o molinete, o fio de náilon, as iscas artificiais? Como adivinhou? Sorri dona Carmosina ao ouvir a pergunta repetida, sem resposta: inspiração divina. (AMADO, 2000: 90)
O narrador oportuniza, ironicamente, o desvendar das supostas relações céu e terra, entregando toda a responsabilidade a dona Carmosina, a sua esperteza e a suas correspondências com a amiga ausente. As citadas relações de poder descambam para a bisbilhotice e o faz-de-conta.
Mais adiante, a própria Tieta, com o desdobrar dos acontecimentos, tenta, inutilmente, rebelar-se por ter seguido à risca os mandos de dona Carmosina:
[...] Também, que idéia a sua, vir carregada de troféus religiosos, ela que nunca fora de missa e sacristia! Culpa de Carmosina: Perpétua tem uma Santa Ceia na sala de jantar, se você trouxer um Coração de Jesus para a sala de visitas, a beata vai ficar maluca de contente. [...] Foi atrás dos conselhos de Carmô, o resultado é esse: um porre de igreja. Chegou sonhando com a praia de Mangue Seco, merda! Engole também o palavrão. (Idem ibidem, p. 95)
Tieta, apesar de seu ar debochado e insolente, enfrenta, às vezes, de esguelha os preconceitos sociais de seu lugar de origem. Como se ela estivesse ainda tomando pé, na concretude da situação, antiga, porém revivificada e disfarçada pelo temor a seu retorno numa situação de pessoa vitoriosa.
*
Outra provocação do narrador sobre seu provável futuro leitor: a posse final do “bastão” (ou do poder?)... com quem vai continuar?
Sob o comando do pai – o velho e depravado Zé Esteves – era um símbolo da autoridade paterna e patriarcal:
– Em casa, um deus-nos-acuda, austero, moralista por demais, mandando todo mundo para a cama nem bem a gente se levantava da mesa do jantar. Em namoro, era proibido se falar.
– Namorado de filha minha se chama palmatória e taca de tanger burro; bordão de marmelo é o nome completo, roncava Zé Esteves. Punha-se nas cabras quando julgava o pasto vazio. Existiam cabras viciadas. (Idem ibidem, p. 70)
A criação de Tieta, até ser expulsa do Agreste pelo pai, fora toda feita na hipocrisia e no mando duro e injusto de seu genitor. Era a lei que imperava: a da ordem e mando do macho. Com a morte do pai, a autoridade – ao menos, entre os Esteves – fica sem herdeiro? Quem assumiria tal poder?
Jorge Amado, numa época de contestação de poderes – Tieta do Agreste foi escrita entre 1976/1977 –, no jogo de lideranças masculino/feminino, entrega o apanágio do mando à mulher, a Tieta, tomando como intermediário um representante de uma geração imediatamente posterior a sua: “[...] aparece Peto, traz o bordão do velho Zé Esteves, herança de Tieta: – Esqueceu o cajado, tia. – Baixa a voz e acrescenta: – Vou sentir saudades” (AMADO. 2000: 573).
Mesmo que carregado de simbologia contextual, a heroína da história é instituída.
Tieta interfere ainda para resolver carências de sua comunidade de berço, como a falta de eletricidade, tornando-se por fim e, malgrado seus modos de agir profissionalmente e afinal revelados (na disputa amorosa Leonora versus Arcânio), nome de rua, um lembrete anônimo não apenas de ambigüidade lingüística, mas, sobretudo, de toda uma proposta popular de vida: “Durou pouco a placa azul, sumiu durante a noite. Em lugar dela pregaram uma madeira, confeccionada por mão artesanal e anônima: RUA DA LUZ DE TIETA” (Idem, ibidem, p. 575).
O ciclo narrativo das peripécias aventureiras da personagem central encerra-se com a volta às propostas do exórdio, inscrito no final do primeiro capítulo, quando o narrador supostamente dialoga com seu provável leitor, dando mostra da longa e constante produção que lhe aguarda, ambiguamente carnavalizada: “Agradecerei a quem me elucidar quando juntos chegarmos ao fim, à moral da história. Se moral houver, do que duvido” (Idem, ibidem, p. 5).
Compete, pois, ao receptor crítico a tarefa que lhe é devida: decifrar construindo ou desconstruindo deixar as coisas como estão...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMADO, Jorge. Tieta do Agreste, Pastora de Cabras. 24ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: –––. Nas malhas da letra: ensaios. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 44-60.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: EdUNB, 1999.
FOUCAULT, Michel. O olho do poder. In: –––. Microfísica do poder. Tradução Roberto Machado. 13ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 209-227.
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Tradução Annie Dymetman. Rio de Janeiro: Record, 1991.
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