Música Popular Brasileira:
MPBrega não é MPB?

Tereza Cristina Kalile (UNINCOR)

 

A todo o momento, nos deparamos com o termo “popular”: casas populares, lojas populares, bibliotecas populares e, criado mais recentemente, os shoppings populares. O popular nos remete a uma série de juízos de valores já organizados e pré-concedidos em nossas memórias.

Esse termo está, sobretudo para pessoas oriundas da classe média brasileira, relacionado a coisas do povo, sem valor financeiro/cultural, brega, cafona, o popularesco e por extensão à cultura de massa.

Contudo, para essas mesmas pessoas, tal aplicação recebe outra conotação, quando se trata da música popular – MPB. Tal sigla, embora contenha a palavra popular, está carregada de valores, porém, determinados por motivos relacionados a condições sócio-culturais.

Ao ouvirmos a sigla MPB, nos vêm à lembrança nomes como Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim, Milton Nascimento, Elis Regina – mesmo estando estes artistas distribuídos gêneros e movimentos musicais diversos.

Em se tratando de MPB, ninguém se reporta a Evaldo Braga, Paulo Sérgio, Odair José, Sidney Magal e tantos outros cantores/compositores da música popular brasileira como representantes legítimos dessa mesma MPB. Neste caso, o termo popular, se assemelha ao descrito no início da discussão – popular, popularesco, significante de cafona, brega, (que lembra os camelôs, as casas populares, feitas para populações menos abastadas, etc.) expressão carregada de valores pejorativos.

Observando a sigla nas perspectivas dos dois públicos: a elite cultural/econômica e pessoas de baixa renda, temos desta maneira, também duas designações diferentes para o que vem a ser popular e música popular.


 

O Popular e o Brega

Consultando o dicionário Aurélio, encontramos as seguintes acepções para a palavra popular: 1. Do, ou próprio do povo: hábitos populares. 2.Feito para o povo . 3. Agradável ao povo; que tem as simpatias dele. 4. Democrático. 5. Vulgar, trivial, ordinário; plebeu.

Se considerarmos as quatro primeiras acepções, nos indagaremos então, sobre os motivos pelos quais a música popular brega seja vista à margem do que é tratado como MPB. Afinal, os hábitos populares, ou que é feito para o povo, agradável ao povo; que tem as simpatias dele e democrático, serviria e estaria destinado apenas a uma parcela da população ou de artistas?

Segundo Paulo César de Araújo (2003), a sigla não representa toda e qualquer música popular produzida no em nosso país. Ela foi e é, ainda hoje, “a expressão de uma vertente da nossa música popular urbana produzida e consumida majoritariamente por uma faixa social de elite”. Tal denominação para a sigla, conforme esse autor, passou a ser difundida a partir de 1965 e foi utilizada inicialmente apenas como referência à “moderna música popular brasileira”, de origem universitária, que surgia da influência direta da bossa nova.

 

A Exclusão Musical

Do ponto de vista do dialogismo proposto por Bakhtin (1997), tenho observado que quando alguém escreve algo, (seja um livro, uma crônica, uma poesia, a letra de uma canção...) por mais novo que possa parecer, este escrito está remetendo, está respondendo a alguma coisa que já fora escrito, ou seja, está dialogando, interagindo com outras vozes além das presentes no próprio texto.

De acordo com Bakhtin (1997), o homem se constitui enquanto homem na e pela linguagem que é viva, é ativa, dinâmica e evolutiva porque vivo, ativo, dinâmico e evolutivo é o homem. Ela se realiza na interação verbal estabelecida entre mim e o outro, numa situação concreta.

Em se tratando da língua portuguesa, penso que ela é feita pela classe dominante e para atendê-la, pois seria uma maneira de garantir sua posição privilegiada. De maneira semelhante, acontece com os gêneros musicais. Tanto na MPB, quanto na música caipira/sertaneja, encontramos traços de rejeição no que diz respeito às camadas menos abastadas da população.

A MPB está relacionada a uma classe social privilegiada que considera como representantes legítimos da MPB, músicos, cancioneiros, interpretes e/ou compositores aquelas pessoas com as quais se identifica. À outra camada da população, resta o anonimato, a exclusão, o esquecimento, pois grande parte do que está associado à cultura de massa é relegada ao esquecimento.

O historiador, professor e jornalista Paulo César de Araújo, em sua obra intitulada Eu não sou cachorro, não – música popular cafona e ditadura militar[1], faz a trajetória de uma geração de cantores/compositores/interpretes, chamados de “bregas” ou “cafonas”. Ele ressalta que o livro não é uma obra que avalia os fatos relativos às classes dominantes da sociedade, mas à história musical de pessoas oriundas de camadas sociais populares (pessoas comuns) e cujo estudo está direcionado à “analise de fatos e documentos que ajudem a elucidar os rumos da música popular e da própria sociedade brasileira em um período marcando de sua história”.

Conforme esse autor, nos anos compreendidos entre 1968 e 1978, tal geração de artistas “produziu uma obra musical que, embora considerada tosca, vulgar, ingênua e atrasada, constitui-se em um corpo documental de grande importância, já que se refere a segmentos da população brasileira historicamente relegados ao silêncio. É um trabalho que “visa recuperar a memória de uma facção da cultura popular deixada ao largo da historiografia, trazendo à tona sua luta, seus embates, suas formas de expressão e resistência”.

 

Memória X esquecimento

Paulo César de Araújo (2003) nos chama atenção para o fato de historiadores, críticos, publicações[2] e museus – neste caso o MIS[3] - não fazerem referência à produção de artistas musicais da mpb e/ou de gerações de artistas considerados como bregas, tais como Odair José ou Benito de Paula, por exemplo. E questiona, o por que da exclusão “de uma vertente musical que serve de referência para milhões de brasileiros?”

Segundo este autor, “através da análise da construção social da memória, é possível identificar de que maneira ficou cristalizada em nosso país uma memória da história musical que privilegia a obra de um grupo de cantores/compositores preferida das elites, em detrimento da obra de artistas mais populares.”

O fato de não conhecermos muitos destes cantores/compositores pode ser mais um “reflexo do processo de silenciamento que atinge esta geração de artistas “cafonas”.”

Além disso, “o ato de esquecer pode ser resultado de manipulação exercida por grupos dominantes sobre dominados, ou de vencedores frente a vencidos.”

Este pesquisador relata que: “o período de maior repressão política do regime militar coincide com o da fase de consolidação de uma cultura de massa e a conseqüente expansão da indústria fonográfica.”

Entre 70 e 76 a indústria de disco cresceu em faturamento, com um aumento que passou de 25 milhões de unidades para 66 milhões sobre a venda de LPs e compactos; além do aumento do consumo de toca-discos, que, entre 1967 e 1980, teve um aumento de 813%, ficando o Brasil em quinto lugar no mercado mundial de discos.

Tendo em vista tal fenômeno, já que as pessoas consumiam tanto a música e ainda consomem, perguntamos então, quais motivos estariam relacionados ao fato da MPB estar associada apenas a uma camada da população ou parcela de artistas musicais?

Tenho me perguntado se a negação de culturas e valores ocorre nas duas vertentes da população – a mais abastada e a menos privilegiada, ou seja, assim como é negado à classe social menos favorecida o acesso à linguagem, a manifestações culturais (computadores, norma padrão da língua, teatro, dança, música) da elite; de maneira semelhante ocorre com a camada mais abastada da população, pois também não lhe é permitido o ingresso às expressões culturais das pessoas menos favorecidas, uma vez que estas estariam, como já vimos, relegadas ao “esquecimento”.

Ao passo que uma se considera superior, de mais bom gosto estético e, portanto, dona de um saber também superior, julga e lhe confere ao mesmo tempo, poderes para ditar normas, costumes, valores e, sobretudo, realizar segregações: sociais, ideológicas, políticas, espaciais, religiosas; além da segregação que propusemos iniciar nesta comunicação: a segregação musical.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBIN, Ricardo Cravo. O livro de ouro da MPB – A história de nossa musica popular de sua origem até hoje. 2ª ed. Rio de Janeiro:Ediouro, 2003

ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro não. Rio de Janeiro: Record, 2003.

BAKHTIN, M.M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1997.

BENVENISTE. E. Benveniste. E. Problemas de Lingüística Geral I. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação Cultura e Ação Comunitária), Artes do Som – a arte é de todos . CECIP- Centro de Criação de Imagem Popular, Rio de Janeiro.

TAGG, P. 1982. “Analysing popular music: theory, method and practice”. In: Popular Music, 2: 37-65.

TINHORÃO, José Ramos. Música Popular - um tema em debate. São Paulo: ed.34, 3ª edição, 1997 (3ª reimpressão, 2002).


 


 


[1] Este livro é uma versão revista e ampliada da dissertação de mestrado do mesmo autor apresentada ao programa de pós-graduação em memória social e documento da universidade do Rio de Janeiro – UNIRIO, em 1999.

[2] O autor faz referência à coleção História da Música Popular Brasileira, conjunto de discos e fascículos publicado pela Abril Cultural, ao longo das décadas de 70 e 80.

[3] Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro inaugurado em 1965 que apresenta como um de seus objetivos preservar a memória da música popular brasileira.

 

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