Vinde , meu tão certo Camões
a
lira melancólica, desconcertada
e destemperada do
grande poeta português

André Luiz Alves Caldas Amóra (PUC- Rio)

 

Luís de Camões, sem dúvida o maior nome do Classicismo em Portugal, presentifica, de forma ímpar, os dilemas e impasses da cosmovisão renascentista. Os modelos de inspiração clássica marcam o retorno aos valores estéticos e ideológicos da Antigüidade, retorno esse verificado, do ponto de vista formal, pelo resgate das formas outrora privilegiadas.

Esse mundo renascentista, que se mostra repleto de impasses e desajustes, apresenta o homem diante de um mundo em transformação e em descompasso. Tal sentimento desencadeia um questionamento filosófico, e o pessimismo dele decorrente ficou cunhado na expressão desconcerto do mundo. Tem-se então um lirismo pessoal, marcado por um estado de melancólico desconcertamento da existência, em decorrência das desilusões da vida. Esse mundo em desconcerto perpassa a lírica camoniana, registrando o olhar renascentista sobre um mundo em constante mutação, presentificado nas imagens utilizadas para retratá-lo. Segundo Antônio José Saraiva, “o mundo é tido como um desconcerto, produto de um destino confuso e irracional” (SARAIVA, s/d: 337)

Nosso estudo pretende articular esse desconcerto em uma de suas canções: Vinde , meu tão certo secretário. Considerada por teóricos uma espécie de discurso interior de Camões, a referida canção será analisada a partir dos recursos estilísticos nela encontrados, privilegiando-se, inclusive, o dialogismo efetuado por ela em relação ao restante da obra camoniana.

O Renascimento marcou o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna, tendo como contexto histórico o questionamento dos dogmas religiosos e o retorno do antropocentrismo. Trazendo como marcas o reflorescimento dos valores greco-romanos e a oposição ao pensamento medieval, o Renascimento teve no Classicismo a expressão de uma visão de mundo, como se percebe nas palavras de Francisco José Calazans Falcon:

O Renascimento Português define-se como uma época de “crise” de valores de toda a ordem que se traduz em conflitos e tentativas de ajustamento, incessantes, entre as forças de ruptura e de continuidade. (FALCON, 2005)

A temática do desconcerto do mundo cruza-se com outros aspectos da lírica camoniana, sendo aquele, por vezes, apresentado como a causa da angústia que acomete o eu-lírico. O tema amoroso, por exemplo, é tratado como uma duplicidade que sugere a tensão diante da questão amorosa, decorrente de um mundo que oscila entre a castidade e a sensualidade, e que faz a figura feminina ora assumir a face de Laurarepresentação da mulher inefávelora a de Vênus, face sensual do feminino. Tal tensão aponta, de um lado, a concepção neoplatônica, segundo a qual a realização amorosa é impossível ou se dá apenas no plano espiritual, e, de outro, a forte concepção sensual, num nítido resgate da cultura grega, marcada pelo aspecto dos sentidos. Citando novamente Antônio José Saraiva:

A plenitude amorosa parece-lhe tão inatingível como a apreensão de uma ordem racional. Renuncia, aparentemente, ao mundodesconcertado” das aparências e depõe a lira profana para cantar a Divindade. (SARAIVA, A. s/d.: 338)

Alguns dos sonetos camonianos apresentam uma dessas concepções de forma flagrante, enquanto outros fazem justamente do conflito entre ambas o seu eixo norteador. A incerteza decorrente de tal conflito é enfatizada, por termos modalizantes ou indefinidos, como se nota na primeira estrofe de um de seus mais célebres sonetos, quando o eu poético afirma a incerteza que o vitima:

Tanto de meu estado me acho incerto,

que vivo ardor tremendo estou de frio,

sem causa, juntamente choro e rio,

o mundo todo abarco e nada aperto.

 

É tudo quanto sinto um desconcerto;

da alma um fogo me sai, da vista um rio;

agora espero, agora desconfio,

agora desvario, agora acerto.

 

Estando em terra, chego ao Céu voando,

numa hora acho mil anos, e é de jeito

que em mil anos não posso achar ua hora.

 

Se me pergunta alguém porque assim ando,

respondo que não sei; porém suspeito

que porque nos vi, minha Senhora. (CAMÕES, 2002: 18)

As antíteses que estruturam o poema expressam o conflito de emoções e de atitudes verificado. A principal informação contudo, refere-se ao estado incerto do eu-lírico, possível causa para todos os infortúnios. A referência ao desconcerto do mundo é aqui literal, e atinge diretamente a emoção da instância narrante: É tudo quanto sinto um desconcerto.

Outro aspecto que se articula à visão melancólica diante da existência refere-se ao amor. Sendo tão contrário e trazendo consigo tantas incoerências, como poderia, segundo o sujeito poético, causar amizade? As antinomias que atravessam o soneto apenas reiteram a contradição e o conseqüente caos emocional em que é lançado todo aquele que se deixa tomar pelo Amor.

A visão negativista em relação ao mundo é ainda explorada em função da efemeridade das coisas. Ao afirmar: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, o eu-lírico expressa o seu descontentamentopara não dizer pessimismodiante de um mundo de valores tão instáveis, que se tornam piores a cada dia. As mudanças são encaradas de forma negativa: Continuamente vemos novidades / Diferentes em tudo da esperança (Ibidem, p. 106). As mudanças assumem uma conotação pejorativa, e a perspectiva do eu-lírico diante do mundo é tão cética que ele aponta os efeitos sombrios das novidades, chegando mesmo a afirmar que do bem restam mesmo saudades.

Vinde , meu tão certo secretário é considerado por Saraivaum discurso interior de Camões, que se dirige ao próprio papel onde a canção é escrita, assumindo um caráter autobiográfico, buscando um sentido para a vida” (SARAIVA, A. s/d.: 326 e 329-330).

Notamos logo no início desta tão bela canção camoniana que o eu-lírico se desafoga dos seus queixumes através da criação poética. O papel que recolhe seus segredos – o secretário – pode ser visto como um profundo conhecedor de seus conflitos e queixas e a pena, como um instrumento para o Poeta descer suas lágrimas através de sua tinta. As injustiças do Destino, que não podem ser contidas, são implacáveis:

Vinde , meu tão certo secretário

dos queixumes que sempre ando fazendo,

papel, com que a pena desafogo!

As sem-razões digamos que, vivendo,

me faz inexorável e contrário

Destino, surdo a lágrimas e a rogo (CAMÕES, 1963: 200).

Em seguida, as imagens da água pouca e muito fogo sugerem que, por mais que ele chore (água), nada apagará a paixão (fogo). Nota-se que a canção referida dialoga com a epopéia camoniana quando o sujeito lírico afirma que vai cantar algo maior do que tudo que foi cantado antes:

Deitemos água pouca em muito fogo;

acenda-se com gritos um tormento

que a todas as memórias seja estranho.

Digamos mal tamanho a Deus,

ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,

a quem muitas vezes o contei,

tanto debalde como o conto agora; (Ibidem, p. 200)

N’Os Lusíadas, o Poeta, ao propor o que vai cantar, promete conquistas e valores maiores do que os cantados e conhecidos, numa estrutura que repete a promessa citada acima:

Cessem do sábio Grego e do Troiano

As navegações grandes que fizeram;

Cale-se de Alexandro e de Trajano

A fama das vitórias que tiveram;

Que eu canto o peito ilustre Lusitano,

A quem Neptuno e Marte obedeceram.

Cesse tudo o que a Musa antiga canta,

Que outro valor mais alto se alevanta. (CAMÕES, s/d :.71)

Há, contudo, uma diferença profunda entre ambas as estrofes: na primeira estrofe citada ele canta mal tamanho e o canta debalde; na segunda, ele canta vitórias e as conta na certeza de que seu canto e o que canta têm mais alto valor.

Vinde ... dialoga ainda com a lírica camoniana, às vezes de forma literal, às vezes em situações que se assemelham, como na estrofe a seguir, que remete a um de seus mais conhecidos sonetos:

Chegai, desesperados, para ouvir-me,

e fujam os que vivem de esperança

ou aqueles que nela se imaginam,

porque Amor e Fortuna determinam

de lhe darem poder para entenderem,

à medida dos males que tiverem. (CAMÕES, 1963: 201)

A estrofe acima finda com uma afirmativa recorrente na lírica: a quem tem amor é concedido o entendimento da vida, aqui referida apenas em seu aspecto negativo (os males). O Amor e Fortuna aparecem personificados e determinantes do destino do indivíduo. Semelhante imagem também é vista em Enquanto quis Fortuna que tivesse:

Enquanto quis Fortuna que tivesse

esperança de algum contentamento,

o gosto de um suave pensamento

me fez que seus efeitos escrevesse.

 

Porém, temendo Amor que aviso desse

minha escritura a algum juízo isento,

escureceu-me o engenho com tormento,

para que seus enganos não dissesse.

 

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos

a diversas vontades! Quando lerdes

num breve livro casos tão diversos,

 

verdades puras são e não defeitos...

E sabei que, segundo o amor tiverdes,

tereis o entendimento de meus versos. (CAMÕES, 2002: 15)

O Amor novamente surge como agente do infortúnio do eu-lírico, interrompendo a esperança de algum contentamento, e senti-lo é a condição necessária para entender o testemunho do Poeta.

Tal imagem do Amor como um ser caprichoso e vingativo aparece também na épica. Na passagem referente a Inês de Castro, fica claro que o Amor se apresenta fero, exigindo o sacrifício dos enamorados:

Tu, tu, puro amor, com força crua,

Que os corações humanos tanto obriga,

Deste causa à molesta morte sua,

Como se fora pérfida inimiga.

Se dizem, fero Amor, que a sede tua,

Nem com lágrimas tristes se mitiga,

É porque queres áspero e tirano,

Tuas aras banhar em sangue humano. (CAMÕES, s/d: 158)

Se a cada deus era oferecido um tipo de sacrifício, o Amor aparece como o pior deles, pois, como áspero e tirano, exige sangue humano.

Outro aspecto que também aparece refere-se à experiência, numa visão segundo a qual somente quem passou por determinada situação está mais apto a compreendê-la. No final do Canto III, ao falar de D. Fernando e Leonor Teles, o Poeta defende a supremacia do sentir em relação ao julgar:

Quem viu um olhar seguro, um gesto brando,

Hua suave e angélica excelência,

Que em si está sempre as almas transformando,

Que tivesse contra ela resistência?

Desculpado, por certo, está Fernando,

Pera quem tem de amor experiência;

Mas antes, tendo livre a fantasia,

Por muito mais culpado o julgaria. (Ibidem, p. 164)

O Poeta parece absolver Fernando, argumentando que o julgaria quem jamais tivesse vivido tal situação, numa valorização do saber de experiências feito.

A canção prossegue, reiterando a imagem de um ser fadado à infelicidade desde o nascimento. Os astros, aqui vistos como signos da Fortuna, o amaldiçoam, não dando ao eu-lírico a possibilidade de escolher um destino diferente:

Quando vim da materna sepultura

de novo ao mundo, logo me fizeram

Estrelas infelices obrigado;

com ter livre alvedrio, mo não deram,

que eu conheci mil vezes na ventura

o milhor, e pior segui, forçado. (CAMÕES, 1963: 201)

O Fado infeliz acompanha o Poeta, que desta vez tem seu infortúnio intensificado por Cupido, demonstrando uma perspectiva semelhante à dos clássicos, em que os seres não tinham arbítrio sobre a própria vida:

E, para que o tormento conformado

me dessem com a idade, quando abrisse

inda minino, os olhos, brandamente,

mandam que, diligente,

um Minino sem olhos me ferisse.

As lágrimas da infância manavam

com üa saudade namorada;

o som dos gritos, que no berço dava,

como de suspiros me soava. (Ibidem, p. 201)

Como que a intensificar seu martírio, o eu-lírico parece ter contribuído para aumentar seu infortúnio, pois se iludiu e acolheu paixões que lhe seriam nocivas:

[...]

Enfim, o gesto puro e transparente

para quem fica baixo e sem valia

deste nome de belo e de formoso –,

o doce e piadoso

mover de olhos, que as almas suspendia,

foram as ervas mágicas, que o Céu

me fez beber; as quais, por longos anos,

noutro ser me tiveram transformado,

e tão contente de me ver trocado

que as mágoas enganava cos enganos;

e diante dos olhos punha o véu

que me encobrisse o mal, que assi creceu,

como quem com afagos se criava

daquele para quem crecido estava. (Ibidem, p. 202-203)

Além da intensificação do martírio, pode-se perceber o diálogo da estrofe acima com o soneto Um mover d’olhos brando e piedoso, com a imagem literal citada e a figura de Circe, feiticeira da mitologia:

Um mover d’olhos, brando e piedoso,

sem ver de quê; um riso brando e honesto,

quase forçado; um doce e humilde gesto,

de qualquer alegria duvidoso;

 

um despejo quieto e vergonhoso;

um repouso gravíssimo e modesto;

uma pura bondade, manifesto

indício da alma, limpo e gracioso;

 

um encolhido ousar; uma brandura;

um medo sem ter culpa; um ar sereno;

um longo e obediente sofrimento:

 

esta foi a celeste fermosura

da minha Circe, e o mágico veneno

que pôde transformar meu pensamento. (CAMÕES, 2002:104)

Grande parte do desconcerto camoniano se deve ao desgosto da desilusão, aqui representada pela imagem da feiticeira e das ervas mágicas – mágico veneno. Tem-se, então, a alegoria da ilusão e punição, pois o Poeta ilude-se e em vez de contrariar a paixão, afaga-a.

A melancolia presente nas queixas ao secretário revela uma lira em constante estado de conflito. A ilusão e a fantasia, em contraste com a dura realidade, mostram os enganos do sujeito lírico. O Fado implacável com o Poeta fá-lo sentir-se em desconcerto:

[...]

as bem-aventuranças

nelas também pintadas e fingidas;

mas a dor do desprezo recebido,

que a fantasia me desatinava,

estes enganos punha em desconcerto (CAMÕES, 1963: 202)

Esse desconcerto atinge intensamente o eu-lírico, uma vez que envolve a própria condição humana. É percebido que o curso de tristeza faz arrefecer o fogo ardente de pensamentos namorados, e a força humana parece não resistir à aspereza do comportamento da amada:

Este curso contino de tristeza,

estes passos tão vãmente espalhados,

me foram apagando o ardente gosto,

que tão de siso n'alma tinha posto,

daqueles pensamentos namorados

em que eu criei a tenta natureza,

que do longo costume da aspereza,

contra quem força humana não resiste,

se converteu no gosto de ser triste. (Ibidem, p. 204)

A fraca força humana é também aludida na última oitava do canto primeiro d’Os Lusíadas. Ao invés da fraqueza do homem perante a sua amada, a impotência humana se apresenta em relação ao mar:

No mar tanta tormenta e tanto dano,

Tantas vezes a morte apercebida;

Na terra tanta guerra, tanto engano,

Tanta necessidade avorrecida!

Onde pode acolher-se um fraco humano,

Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme e se indigne o Céu sereno

Contra um bicho da terra tão pequeno? (CAMÕES, s/d.:.98)

A reflexão amarga apresentada tanto na canção Vinde cá, meu tão certo secretário como n’Os Lusíadas constata a fragilidade do ser humano frente ao mundo e aos sentimentos. Essa fragilidade é principalmente sentida nas obras que parecem apresentar traços autobiográficos. Em determinada passagem da canção, alguns críticos vêem elementos da vida do autor nas palavras do eu-lírico:

Dest'arte a vida noutra fui trocando;

eu não, mas o destino fero, irado,

que eu ainda assi por outra não trocara.

Fez-me deixar o pátrio ninho amado,

passando o longo mar, que ameaçando

tantas vezes me esteve a vida cara.

Agora, exprimentando a fúria rara

de Marte, que cos olhos quis que logo

visse e tocasse o acerbo fruto seu

(e neste escudo meu

a pintura verão do infesto fogo) (CAMÕES, 1963: 204)

Note-se que mesmo com todas as agruras que o fero destino lhe trouxe, o Poeta não o quereria trocar por nenhum outro. A imagem de combate em terras distantes aparece, mas é importante perceber que em Vinde cá... o sujeito lírico enfatiza a sensação de exílio, diferente da perspectiva heróica de sua produção épica. As referências à violência da guerra, à sua vida posta em perigo, e à perda de um de seus olhos assumem um caráter de lamento.

A falta de piedade humana o conduz a uma sensação de exílio que o sufoca, fazendo faltarem-lhe tempo e mundo:

A piadade humana me faltava,

a gente amiga já contrária via,

no primeiro perigo; e no segundo,

terra em que pôr os pés me falecia,

ar para respirar se me negava,

e faltavam-me, enfim, o tempo e o mundo. (Ibidem, p. 204-205)

A estrofe citada, nitidamente autobiográfica, como afirma Faria e Sousa (SARAIVA, 1981:70), refere-se às situações vividas por Camões em Ceuta e na Índia. Semelhante lamento é visto no soneto Em prisões baixas fui um tempo atado, no mesmo tom melancólico da canção aqui estudada:

Em prisões baixas fui um tempo atado,

vergonhoso castigo de meus erros;

ainda agora arrojando levo os ferros

que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.

 

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,

que Amor não quer cordeiros nem bezerros;

vi mágoas, vi misérias, vi desterros:

parece-me que estava assim ordenado.


 

Contentei-me com pouco, conhecendo

que era o contentamento vergonhoso,

só por ver que cousa era viver ledo.

 

Mas minha estrela, que eu já agora entendo,

A morte cega, e o caso duvidoso;

Me fizeram de gostos haver medo. (CAMÕES, 2002: 99)

Nessa dolorosa confissão, que também pode ser considerada autobiográfica, o sujeito lírico declara que toda a sua vida foi sacrificada ao amor, e que dele só recebeu tristezas. O Amor, aqui visto como um deus, não haveria de aceitar sacrifícios de animais – como nas culturas pagãs –, mas sim a vida do próprio Poeta, confirmando o caráter cruel daquele, imagem já explorada anteriormente. Digna de destaque é a imagem da Morte que o vai libertando da profunda prisão em que ele se encontra, numa perspectiva em que a Morte parece mais benevolente do que a Vida.

A estrofe seguinte apresenta um dos aspectos da contradição camoniana: o sujeito lírico parece temer o desenrolar dos acontecimentos, mesmo com o fim de seus suplícios, por não saber o porvir, que talvez lhe venha pior do que os tormentos passados:

Não conto tantos males como aquele

que, despois da tormenta procelosa,

os casos dela conta em porto ledo;

que ainda agora a Fortuna flutuosa

a tamanhas misérias me compele,

que de dar um só passo tenho medo. (CAMÕES, 1963:205)

A passagem acima remete ao célebre soneto Erros meus, má fortuna, amor ardente, em que as mágoas passadas são suficientes para despertar um sentimento de frustração no poeta, que já não quer mais ser contente:

Erros meus, má fortuna, amor ardente

em minha perdição se conjuraram;

os erros e a fortuna sobejaram,

que para mim bastava o amor somente.

 

Tudo passei; mas tenho tão presente

a grande dor das cousas que passaram,

que as magoadas iras me ensinaram

a não querer já nunca ser contente.

 


 

Errei todo o discurso de meus anos;

dei causa a que a Fortuna castigasse

as minhas mal fundadas esperanças.

 

De amor não vi senão breves enganos.

Oh! quem tanto pudesse que fartasse

este meu duro gênio de vinganças! (CAMÕES, 2002: 122)

Note-se que há uma ocorrência de vários fatores para o conduzir ao sofrimento, já expressos no primeiro verso: a junção de seus erros à fortuna que com ele foi má, além de um amor ardente não correspondido, acaba por levá-lo a um estado de sofrimento permanente. O medo diante de novidades ou mudanças manifesto em Vinde cá... assume aqui o ar melancólico que pauta o soneto, o qual, por sua vez, remete a outros sonetos, como o que se vê abaixo, cuja primeira estrofe é marcada pelo pessimismo em relação a um mundo do qual ele nada mais espera:

Que poderei do mundo já querer,

que naquilo em que pus tamanho amor,

não vi senão desgosto e desamor,

e morte, enfim: que mais não pode ser! (Ibidem, p. 102)

A última estrofe da canção aqui estudada traz o mesmo ceticismo e amargura do final melancólico de seu poema épico. N’Os Lusíadas, tal momento se dá quando o Poeta pede à Musa o fim da inspiração:

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e da rudeza

Dua austera, apagada e vil tristeza. (CAMÓES, s/d: 353)

O tom de lamento apresentado pelo Poeta diz respeito à falta de valorização, de quem ouviria seu canto – gente surda e endurecida –, o que lhe causa o destempero. Curiosamente, enquanto n’Os Lusíadas ele pede à Musa que não mais o inspire, aqui ele parece se dirigir à própria canção:

Nô mais, Canção, nô mais; que irei falando,

sem o sentir, mil anos. E se acaso

te culparem de larga e de pesada,

não pode ser (lhe dize) limitada

a água do mar em tão pequeno vaso.

Nem eu delicadezas vou cantando

co gosto do louvor, mas explicando

puras verdades já por mim passadas.

Oxalá foram fábulas sonhadas! (CAMÓES, 1963: 206)

A canção aparece aqui personificada, e o Poeta lhe diz que não falará mais, pois, do contrário, falaria por mil anos. É importante destacar que ele atribui o tom pesado da mesma ao fato de ela conter o registro de tudo o que ele passou verdadeiramente. Essa idéia é intensificada no momento em que ele se refere às puras verdades já por mim passadas, ressaltando o caráter autobiográfico. Numa amargura já expressa ao longo da canção, ele afirma que tudo aquilo foi de fato verdade, aproveitando a ocasião para se lamentar novamente, dizendo que queria que tudo não passasse de imaginação: Oxalá foram fábulas sonhadas. Sua lira é destemperada e sua voz enrouquecida, melancólicos ecos de um mundo em desconcerto.

 

BIBLIOGRAFIA

CAMÕES, Luís de. Lírica. São Paulo: Cultrix, 1963.

––––––. Os Lusíadas. Porto: Porto, s/d.

––––––. Sonetos. São Paulo: Martin Claret, 2002.

FALCON, F. A cultura renascentista portuguesa. In: Semear 1.Revista da Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses. Rio de Janeiro: Nau, s/d. Disponível no dia 03/07/2005 em www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/1Sem_03.html

SARAIVA, António José & LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, s/d.

SARAIVA, Maria de Lourdes. Luís de Camões - Lírica Completa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1981.

 

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