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As principais vítimas da P.V.D.E.-P.I.D.E. foram sempre os comunistas ou seus simpatizantes, cujos mártires ultrapassaram, de longe, quaisquer outros oposicionistas. Parece também averiguado que os elementos das classes “inferiores” recebiam em geral pior tratamento do que os das classes média e superior. (...) Todas as correntes de opinião, incluindo os Católicos e Integralistas e representantes de todas as classes e grupos sociais contaram inúmeras vítimas das perseguições policiais. (MARQUES, 1998: 652)
A censura imposta pelo governo e a perseguição da PIDE aos que eram contra o sistema eram demasiado intensas. A censura era imposta como uma forma de repressão e interdição do discurso. A verdade era comprometida pelos “valores do Estado”, pois há coisas – vide discurso político e religioso – que não podem vir à tona, para não abalar a ordem vigente. A manutenção da ordem era imposta pelo medo e, por isso mesmo, era tão importante “a produção de liberdade, que é a mais bela meta que um livro pode ambicionar”. Maria Velho da Costa, em Cravo, comenta sobre o que pode ser aprovado – ou não – para ser dito:
A escola portuguesa: onde pela primeira vez soube o que se diz e sente e não se escreve, essa primeira lição do escândalo a consentir: o que se quer dizer e escrever e o que é aprovado se dito e escrito são coisas mesmo diferentes. (COSTA, 1994)
A perseguição aos que se posicionavam contra o regime culminava em sessões de tortura, comparadas, por Cardoso Pires, a um sangrento espetáculo teatral:
Digo então de mim para mim que tem de haver qualquer significado nesta vizinhança, nesta simpatia topográfica, superstição ou lá o que é, e aproximando-me da rua, da PIDE e do teatro, configuro palcos gradeados e cenários sangrentos, música e ‘gritos de fundo’. É natural: entre o interrogatório policial e a encenação dramática existe qualquer coisa em comum. (PIRES, 1977: 316)
Essa “encenação teatral” pode ser vista em Levantado do Chão, de José Saramago, na cena que retrata a tortura sofrida por João Mau-Tempo. Humilhação, coação e violência física faziam parte da técnica da PIDE para conseguir informações:
Levantem bem o focinho para vermos se são parecidos com as putas das vossas mães, disse o paisano, João Mau-Tempo não se teve que não dissesse, A minha mão já morreu, e o outro, Queres que te parta os cornos, só falas quando eu disser (...). Fiquem vocês sabendo que não saem daqui vivos se não vomitarem tudo quanto sabem sobre esta greve, a organização, quem vos deu as ordens, a propaganda, tudo, quero aqui tudo despejado, ai de vocês se não falam. (SARAMAGO, 1988: 155)
A LEI – Latifúndio, Estado e Igreja – também é denunciada no romance de Saramago, apresentando a Trindade salazarista que agia juntamente na repressão:
(...) eu que sou a terra, eles que o trabalho são, o que for bom para mim, bom para eles é, foi Deus que quis assim as coisas, o padre Agamedes que explique melhor, em palavras simples que não façam mais confusão à confusão que têm na cabeça, e se o padre não for suficiente, pede-se aí a guarda que dê um passeio a cavalo pelas aldeias, só a mostrar-se, é um recado que eles entendem sem dificuldade. (Ibidem, p. 72)
Levantado do Chão pode ser visto como uma conscientização, marcada pelo ato de levantar a cabeça para mudar – a evolução e amadurecimento da consciência da arraia miúda. O romance apresenta três tempos: o das formigas – que apenas vêem, acuadas pela opressão –, o dos cães – que ladram, se questionam – e o dos homens – que lutam, fazem greve por mudanças, simbolizando, assim, a mudança de postura dos dominados.
Mesmo sendo publicado em 1979, após a Revolução dos Cravos, o romance saramaguiano reflete acerca dos acontecimentos históricos e sobre o próprio movimento revolucionário. É notada a posição esquerdista de Saramago em sua obra. Segundo Teresa Cristina Cerdeira da Silva:
O tratamento dado pela narrativa aos elementos de repressão é profundamente irônico e reflete a postura crítica de um narrador cuja opção ideológica é claramente a favor dos oprimidos. A forma de despersonalizar os agentes do poder é a de subtraí-los dos seus atributos individuais, reduzindo-os a meros representantes de uma força que eles endossam e executam. (SILVA, 1989)
O sonho da Revolução concretiza-se em 1974, na madrugada do dia 25 de Abril, quando acontece o golpe que tem como principal objetivo depor o regime fascista que assolou o país por mais de quarenta anos. A oposição ao fascismo envolveu quase todas as classes da sociedade portuguesa, e a culminância de greves em diversos setores acabou por influenciar o processo revolucionário.
Como mostrado neste estudo, os intelectuais portugueses sempre constituíram uma forte oposição ao regime fascista, através de ações culturais e das criações literárias. A criação da APE – Associação Portuguesa de Escritores – deu ainda mais força à classe artística. Politicamente falando, a guerra colonial ia enfraquecendo o regime salazarista, enfraquecimento esse agravado pelos movimentos de libertação da Guiné - Bissau, Moçambique e Angola.
Aquilo que ficou conhecido como Movimento dos Capitães foi importante, pois marcou a conscientização do povo português. O apoio das Forças Armadas a uma causa democrática foi fundamental para o sucesso da deposição da ditadura.
Uma das imagens mais impressionantes do levante é, sem dúvida, a dos inúmeros cravos vermelhos que o povo carregava, e que foram utilizados para enfeitar os fuzis militares. Um símbolo que acabou por batizar a revolução, conhecida como Revolução dos Cravos.
Manuel Alegre, em seu poema Abril de Abril, de 1981, tematiza a Revolução, demonstrando a alegria e a comunhão presentes no processo revolucionário:
Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.
Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.
Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.
Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.
Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
este Abril em que Abril floriu nas armas.[1]
Pode-se notar o jogo gráfico da palavra Abril, ora representando o mês referente à revolução, ora remetendo ao verbo abrir, em oposição ao fechamento imposto pela ditadura. É percebida a presença de símbolos que representam a vida e a fertilidade – vinho e húmus –, trazidas pelos novos ritmos e novos rumos. A força do 25 de Abril é vista no último verso da segunda estrofe, não havendo a necessidade de adjetivar o movimento, pois ele já possui um valor único e substantivo. O poema de Manuel Alegre explora a imagem da liberdade e da igualdade, que tanto foram negadas pelo fascismo salazarista. O abrir palavras opõe-se à censura que assolou Portugal durante mais de quatro décadas, mostrando a libertação do povo português do fantasma de Salazar e da ditadura, em um Abril que floria em armas, que remete ao ato de enfeitar os fuzis com cravos, imagem central da Revolução.
Após os Cravos, os escritores portugueses não eram mais vistos como marginalizados, chegando mesmo a ser incentivados a produzir. Segundo Cardoso Pires, a Literatura, antes marginalizada, agora tem sua voz resgatada:
A partir dessa data o escritor não era mais o animal à margem ou o ornamento tolerado que uma Política dita do Espírito pretendera estrangular durante meio século. De todas as áreas culturais a literatura tinha sido a mais segredada pelo ódio fascista, agora dispunha de voz total, a que quisesse. E participava, recebia incentivos, apelos vários à intervenção. (PIRES, 1977: 274)
Sofia de Mello Breyner Andresen, em seu poema 25 de Abril, compara a madrugada do 25 de Abril ao início de um novo tempo, a um dia inteiro e limpo, seguindo-se à noite e ao silêncio, representações claras da ditadura. A liberdade surge, também nesse texto, como a palavra-chave, demonstrando que a coletividade portuguesa, expressa pelos verbos no plural, agora desfruta da leveza do novo tempo:
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo[2]
Maria Velho da Costa, comentando sobre a instauração do direito de liberdade em Portugal, ressalta que
É sempre comovente ver um povo retomar em mãos, com angústia e hesitação e pobremente, os seus próprios destinos, os seus modos preferidos de navegar os ventos da história. (COSTA, 1994: 93)
Enfim o desejo e o sonho de liberdade se concretizam – apesar de movimentos de contra-revolução e supostos atentados – e a caravela lusitana começa a tomar o rumo da democracia, deixando para trás um regime que durante quase meio século assolou a nação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CABRAL, Manuel Villaverde. "Um quarto de século depois do 25 de Abril: balanço crítico de uma democracia consolidada". In: Semear 5.Revista da Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses. Rio de Janeiro: Nau, 2001.
COSTA, Maria Velho da. Cravo. Lisboa: Dom Quixote, 1994.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
MARQUES, A.H. de Oliveira. Breve História de Portugal. Lisboa: Presença, 1998.
PEREIRA, Maria Luiza Scher., "Espaço em questão: Portugal no romance de Cardoso Pires". In: Semear 5. Revista da Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses. Rio de Janeiro: Nau, 2001.
PIRES, José Cardoso. Dinossauro Excelentíssimo. Lisboa: Dom Quixote, 1999.
––––––. E agora, José?. Lisboa: Moraes, 1977.
––––––. O Delfim. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
SARAMAGO, José. Levantado do chão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.
SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994.
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. Entre a História e a Ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
[1] Extraído da página www.uc.pt/cd25a/aedp_po/textos/tl_4.htm em 07/03/2005.
[2] Extraído da página www.uc.pt/cd25a/aedp_po/textos/tl_8.htm em 07/03/2005.
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