ENTRE O ERRO E A CERTEZA
UMA LEITURA D'O MOSTEIRO

Tatiana Alves Soares Caldas (UNESA e UniverCidade)

Qualquer sociedade só dura enquanto durarem as extravagâncias dela.

(BESSA-LUÍS, 1984: 46.)

O mosteiro, romance publicado em 1980, conta a história de Belchior, rapaz que em dado momento volta ao Vale de São Salvador, onde havia sido criado, para morar com as tias. Movido pelo desejo de escrever um livro sobre a vida de D. Sebastião, rei português desaparecido no século XVI, Belche começa a questionar as informações que adquire, e sua narrativa contesta a veracidade da História Oficial.

Tendo a escrita de um romance como pano de fundo, a narrativa realiza uma verdadeira dissecação do inconsciente coletivo português, utilizando-se de Belche nesse processo. Ao pensar a figura de D. Sebastião e de sua mitificação, O mosteiro analisa todo o jogo ilusório que cerca a imagem do Rei Desejado, redimensionando os valores canonizados pela tradição literária.

O romance organiza-se a partir de uma estrutura binária, e muitos são os pares que podem ser detectados, num eixo dicotômico que perpassa a narrativa. A bipolaridade decorrente gera uma tensão entre os dois elementos, proporcionando uma reflexão sobre os mesmos. A configuração d’O mosteiro sugere um desdobramento apontado pela simbologia do número dois: tem-se, dessa forma, a tese e a antítese do processo dialético, ambivalência que gera a perspectiva da síntese. Assim, Passado / Presente, História / Ficção, Loucura / Sanidade, entre outros, são pares que se interrelacionam, suscitando uma reflexão acerca da sociedade portuguesa que aguarda o retorno do rei.

A dicotomia loucura/sanidade aparece no texto diante da dificuldade em se delimitarem as fronteiras que separam o indivíduo mentalmente são do louco. Foucault já dizia que todos trazem o seu quinhão de loucura e, nesse sentido, não ser louco significa ser mais louco que os demais. Chevalier, ao estudar a simbologia do louco (CHEVALIER, 1990), aponta a relação entre esse estatuto e as normas estabelecidas pela sociedade. Segundo ele, a definição de loucura está intimamente ligada aos valores sociais, que marginalizam e estigmatizam todo aquele que não se enquadra nos padrões vigentes.

Curioso é, portanto, verificar no romance a transformação de um mosteiro em asilo de loucos. Mais estranho ainda é observar toda a normalidade que parece emanar do lugar, organizado segundo uma hierarquia e em perfeita harmonia com o resto da sociedade. Ocorre, portanto, uma relação simbiótica que pressupõe a necessidade da loucura para a manutenção da sociedade dita normal. Os doidos do lugar funcionam, dessa forma, como auxiliares no processo de narcisismo que caracteriza a população local. É a convivência de ambos que possibilita uma identidade intermediária, numa estratégia de se estabelecer o eu a partir do outro.

Um aspecto importante no que se refere aos habitantes do mosteiro é o fato de muitos deles se identificarem com personagens históricos. Essa confusão acerca da própria identidade tem o apego ao passado como tônica, o que reflete uma atitude coletiva, social, em que todo o povo português estaria envolvido. Em se tratando de uma narrativa que tematiza o sebastianismo, rotular como loucura o apego ao passado ou a idolatria a mitos históricos significa agrupar nessa categoria toda a nação, que aguarda, ansiosa, um vulto no nevoeiro.

Outro ponto extremamente significativo na obra remete à tensão entre História e Ficção. A personagem central desse conflito é Belche que, obcecado por seu livro, depara-se com a ilusão que envolve a figura do Rei Desejado. Na tensão entre mascarar e desnudar, Belche esbarra na dificuldade em aceitar a frustração histórica, característica de Portugal:

O jogo prodigioso da ilusão e da desilusão, era do que se tratava. [...]Em Portugal de 1578 e em Portugal de 1974 tratava-se de admitir uma frustração histórica, de aprender uma desilusão. (BESSA-LUÍS, 1984: 161-162)

Eduardo Lourenço, n’O labirinto da saudade (LOURENÇO, 1988), estuda a psicanálise mítica do destino português, atribuindo aos traumas do presente a atitude nostálgica que tanto caracteriza Portugal. Segundo ele, o grande trauma português teria sido causado pelo contraste entre o passado glorioso dos barões assinalados, dilatadores da fé e de impérios, e o presente de decadência. A crença no sebastianismo resgata, de certa forma, a glória perdida no passado. Ao rejeitar a morte de D. Sebastião, defendendo a idéia do retorno, a lenda popular não permite a aceitação do fato, alimentando simbolicamente o imaginário da nação. O mito, produto da ficção, atua como uma versão paralela da História, subvertendo-a e criando um simulacro de verdade.

Outro par fundamental na bipolaridade presente no romance é aquele que marca as relações entre os membros da sociedade. Afinal, o estatuto da identidade faz-se a partir da noção de alteridade gerada pelo confronto eu / outro. É, portanto, sintomático que Belche, personagem central da narrativa, seja marcado por problemas referentes à sua identidade. Seu estado mental constitui um dos melhores termômetros de uma espécie de neurose coletiva que assola o imaginário português.

Em termos narrativos, Belche atua como contraponto da narradora. Até mesmo nesse aspecto fracassa, pois, ao deixar de ser personagem para se tornar narrador, há a instância narrante maior, ao fundo, que demonstra explicitamente a desconfiança em relação ao que é dito por ele.

Se por vezes Belche aproxima o primo José Bento da figura de D. Sebastião e sofre, masoquistamente, com a afirmação de sua inferioridade em relação a ele, há outros momentos em que o nosso herói (?) identifica-se com o rei desaparecido, igualando situações de sua vida à atmosfera mítica que prega o retorno de D. Sebastião. Nessa associação, ambos transitam entre realidade e ilusão, denunciando um autêntico processo de esquizofrenia, num processo patológico que se estende de forma metafórico-metonímica a Portugal.

Ao se configurar como uma espécie de duplo de D. Sebastião, Belche permite a dessacralização daquele através de uma caracterização que, ao fragilizar o personagem, desmitifica, por extensão, a figura do rei desaparecido em Alcácer-Quibir. Esse desdobramento toca no ponto-chave do inconsciente coletivo português, evocando a necessidade de auto-reflexão proposta no romance.

Sintetizando as imagens anteriores, a dicotomia Passado / Presente estrutura o conflito que vitima o imaginário português. De um lado, as glórias e conquistas, o reinado de D. Sebastião e o vislumbre do Quinto Império. O presente, em contraste direto, traria a decadência, a ruína dos sonhos, a diletância de Belche e a desmitificação como saída.

O binômio Passado / Presente é ainda metaforizado pela imagem da velhice, recorrente no texto. A convivência forçada com velhos, ainda na infância, angustia Belchior, que se irrita com as atitudes daqueles. Suas impressões são motivadas pelas atitudes passadistas e nostálgicas dos que ele denomina os velhos de minha infância, numa alusão à postura utópica do povo que aguarda o retorno do rei desaparecido.

Belche, da aversão sentida na infância, curiosamente passa a compreender e admirar esses velhos, que então se lhe afiguram como heróicos, sugerindo a sua identificação com o passado mítico e glorioso.

A última parte d’O mosteiro é constituída pelo livro de Belche, uma narrativa autônoma inserida numa narrativa maior, e que o transforma em narrador. A obra sebástica que fora a sua obsessão torna-se agora um livro, intitulado O medo.

A narrativa escrita por Belche atua como sublimação da fragilidade do narrador, que se oculta / protege atrás de uma das figuras históricas mais representativas do imaginário português. Paradoxalmente, entretanto, a projeção e a fixação que marcam a trajetória de Belche em relação à obra acabarão por acentuar ainda mais essa fragilidade.

O título O medo já deixa entrever a estratégia que será utilizada pelo personagem, na medida em que prenuncia o caráter contestador que pautará a sua postura no que tange às verdades históricas por tanto tempo difundidas. Trata-se de uma obra autônoma não apenas pelo fato de ser, em termos narrativos, independente da narrativa principal, mas também por possuir a liberdade de contestar os fatos tidos como verdadeiros. Tem-se, então, a relativização, a contestação do absoluto, tão em voga na contemporaneidade. Talvez daí advenha o medo escolhido por ele como título de sua obra.

Em relação ao universo diegético do romance escrito por Belche, temos a história de D. Sebastião, e de todas as circunstâncias que o teriam levado a assumir um comportamento doentio. Ao enfrentar de modo impulsivo as caçadas e o risco, o jovem monarca mascara o próprio medo, envolvendo-se em situações de extremo perigo. Numa estratégia de sublimação, ele livra-se de seus temores desafiando-os de maneira irracional. Longe de exprimir coragem, seu comportamento denuncia um imenso pavor, camuflado por atitudes extremas.

No plano discursivo, temos um narrador que teme o fracasso mas ousa desafiar as verdades históricas em nome da narrativa, realizando uma dupla demolição: de um lado, uma dessacralização da História, em que a imagem virtual e ilusória cede lugar a uma mais real e, por isso, mais cruel; de outro, uma desconstrução narrativa, resultante da projeção que aproxima Belche de D. Sebastião. A perspectiva daquele como historiador fica comprometida em virtude de sua identificação com o objeto narrado. O próprio narrador desconfia do que descobre, e a narradora primeira, por sua vez, desconfia dele.

Em contrapartida, a sua narrativa apresenta uma multiplicidade de perspectivas, sugerindo a liberdade ficcional. Ao se deparar com situações obscuras, Belche busca na versão árabe a coerência e a lógica não encontradas na portuguesa. Ao perceber que a sua perspectiva de abordagem aproxima-se da outra versão, ele detecta a manipulação dos fatos históricos e decide se rebelar contra a versão oficial, pairando entre o erro e a certeza, observando de diferentes ângulos, na visão plural característica da pós-modernidade:

Mais do que a História, Belche amava os seus sussurros e a maneira ousada de os interpretar. Tinha o génio da probabilidade, e talvez, como seu próprio pai, sentia uma certa tentação em pairar entre o erro e a certeza, concedendo a ambos armas e condições. (BESSA-LUÍS, 1984: 140. Grifos nossos.)

A denúncia realizada por Belche ao perceber a enredada trama que envolve os personagens históricos é acentuada pela exaustiva repetição da frase Não é fácil dizer como as coisas se passaram. Podendo ser utilizada como epígrafe do livro, a assertiva aponta a dupla dificuldade que atormenta o narrador: a difícil aventura de narrar, e o problema de transpor os obstáculos que cercam os fatos históricos. Ao contrário das narrativas tradicionais, que apresentam um herói vigoroso, corajoso, viril, a obra de Belche mostra um D. Sebastião mais próximo do gauche, do anti-herói. Também Belche, enquanto personagem da narrativa maior, encarna o estatuto do ambíguo, do andrógino, do covarde. E, num exorcismo que também acaba por atingi-lo, ele passa a ver nas derrotas e fracassos uma forma de libertação.

As terras do Vale de S. Salvador – onde o protagonista fora criado – viviam sob o signo do nevoeiro, do encoberto. Note-se que até mesmo o nome do lugar é sugestivo, por remeter a um messianismo de cunho sebastianista. Significativamente, é o desaparecimento do Rei Desejado o que permite que o lugar adquira identidade. A libertação como decorrência da catástrofe é explícita:

Ali estava o mosteiro, o mesmo que prosperara com a derrota de Alcácer-Quibir. [...] O desastre de África foi o que libertou o mosteiro e que o emancipou do pesado imposto em geral destinado ao sustento dos homens de guerra e despesas de campanha. (Ibidem, p. 316)

O episódio de Alcácer-Quibir possibilita ao mosteiro e ao vale a libertação. Mais importante, contudo, do que a libertação financeira – os impostos davam respaldo à ideologia expansionista – ocorre uma libertação de ordem psicológica: ao perder o sonho do Rei Desejado, a população de São Salvador viu-se livre da responsabilidade do sucesso, tão sonhado quanto temido, e capaz de trabalhar suas frustrações e expectativas reais, sem o sonho do passado.

O mosteiro gira em torno de um eixo paradigmático que opõe duas faces portuguesas. O caráter dual da narrativa faz-se notar inclusive pela instância narrante, que se desdobra para nos fornecer diferentes perspectivas.

O medo, a um só tempo capítulo integrante do romance e narrativa autônoma, reflete a ambivalência de uma obra que tenta se desvencilhar do discurso oficial. Belche instaura o não-lugar, o relativo. O ato consciente de pairar entre o erro e a certeza, na aceitação de um entrelugar, contesta o dogmatismo proposto pela História Oficial. Sendo O mosteiro um romance que coloca em xeque as duas casas portuguesas, a de Avis e a de São Salvador, temos em D. Sebastião e Belche, respectivamente, a perspectiva de regeneração. Com a demolição dos pilares da versão oficial, surge a liberdade da escrita, que adentra, insondável, as esferas do encoberto.

BIBLIOGRAFIA

BESSA-LUÍS, Agustina. O mosteiro. Lisboa: Guimarães, 1984.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANDT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.

LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade – psicanálise mítica do destino português. Lisboa: Dom Quixote, 1988.

 

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