ERVAS DANINHAS NO ORTO DO ESPOSO[1]

Maria do Amparo Tavares Maleval (UERJ)

 

O Orto do Esposo é obra tardo-medieva, de doutrinação religiosa, com tendências vincadamente ascetas, em que as reflexões moralizantes aparecem via de regra ilustradas por numerosos exempla, em muitos dos quais se focalizam mulheres. Estes, certamente que muito contribuíam para a persuasão dos leitores-ouvintes, para a compreensão, aceitação e assimilação da "verdade" das abstrações feitas acerca do gênero feminino, respaldadas em autoridades da história bíblica e greco-romana, profundamente misóginas. Pretendemos observar tais enfoques, tão importantes para o desvelamento do imaginário de uma época, suas mentalidades, ideologias e valores.

O fato de ter sido escrito não já em latim, mas em português, no Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, na transição do século XIV para o século XV, já o coloca em sintonia com o processo de democratização da Igreja, que se vinha operando nas duas centúrias anteriores para fazer frente às heresias. Como também a utilização do exemplum na prédica e na literatura moralizadora se faz um eficaz meio de vulgarização dos ensinamentos, ligando-se, por isso, à renovação das estratégias de pregação promovidas pelas Ordens Mendicantes.

Como observa o historiador Jacques Le Goff, o exemplum medieval consistia numa história "breve, fácil de ser lembrada", "um pequeno talismã que, se for bem compreendido e utilizado, deve trazer a salvação", fazendo-se desta forma "a chave para o Paraíso" (LE GOFF, 1989: 13). Portanto, a brevitas, aliada a outros recursos impressivos, como a visualização (à qual reagia mais que a tudo o homem medieval), permitida pelas cenas evocadas, propiciariam a memorização da historieta e da lição edificante por ela veiculada. E a citação de autorictas, sobretudo de autores e personagens eméritos do mundo greco-romano e judaico-cristão, davam força de verdade incontestável às idéias que se desejava fazer aceitas. A arte doutrinária constituía, dessa forma, um processo claramente intertextual, situando-se numa perspectiva historicizante, nestes seus constantes apelos à tradição, sacra e profana - aqui se incluindo a contribuição folclórica e, muitas vezes através desta, oriental.

Sabemos que as Igrejas e os Mosteiros eram os repositórios e centros de irradiação da cultura da época. Daí que, mesmo que não queiramos ou possamos neste momento analisar os sermonários de então, é evidente que a sua influência pode ser percebida em outros gêneros literários. Por exemplo, nas Crônicas de Fernão Lopes[2], ou em tantos passos do teatro vicentino. Mas a obra que em Portugal oferece mais farto corpus de tais recursos concionatórios, ditos exempla, é sem dúvida o Orto do Esposo.

Trata-se, ao que tudo indica, de obra anônima escrita à época da Revolução portuguesa de 1383-1385, à qual faz referência, ou à do seu genial cronista Fernão Lopes, e que guarda estreito parentesco com a também anônima Boosco Deleitoso, posteriormente publicada. Ambas têm por finalidade a ascese espiritual, sendo-lhes freqüentemente apontada a influencia de Petrarca.

.Já no Prólogo do Livro I, o autor se refere aos receptores "sinplezes" para os quais a obra foi composta, com o fito de proporcionar-lhes ao mesmo tempo prazer e proveito espiritual: "pera proueito e spi(ri)tual dilectaçom de todollos sinplezes, fiees de Jhesu Christo" (Orto do Esposo, 1956: 16). Procede o anônimo autor também à explicação das metáforas do título, a começar por Esposo - "Jhesu Christo, que he esposo de toda fiel alma" -, e a partir daí para o primeiro termo, Horto. Este termo, aliás, fora bastante corrente na Europa medieval, até o século XVI, o que em Portugal se comprova também na tradução quatrocentista da obra denominada Vergel de Consolação.

Revela-se a relação orto/livro, uma vez que "asy como emno orto ha heruas e aruores e fruitos e flores e especias de muytas maneyras pera delectaçõ e mãtimeto e meezinha e cõsolaçõ das almas [dos homees] de qualquer condiçom" (Op. cit., p. 2). Reafirma-se, portanto, a sua finalidade de deleitação e proveito espiritual, ao mesmo tempo mantimento e remédio para as almas.

A obra é dedicada, de forma particular, ao comprazimento e deleitação de uma certa "irmã", na sua velhice. Não se trata, pois, de um livro que da sua recepção exclua as "filhas de Eva", mas que, pelo contrário, dirigir-se-ia a uma monja, para seu consolo.

As mulheres que nele se focalizam, principalmente nos exempla, são por vezes santas, por vezes pecadoras. Vejamos algumas do primeiro grupo. A começar por Salabergua, religiosa que ainda em vida, por sua santidade, tivera uma visão do paraíso, ao qual fora conduzida por anjos, e para onde retornaria ao serem cumpridos os seus dias (Op. cit., p. 24). Outra, seria a virtuosa mãe do rei Luís de França, que através da educação a ele dispensada, muito contribuíra para a sua santidade (Op. cit., p. 29-30). Outra, a monja humilíssima, considerada sandia ou endemoniada pelas suas pares, que a perseguiam, mas que, reconhecida por um santo ermitão enviado por um anjo, passa então a ser reverenciada pelas companheiras - o que a leva a fugir do convento, porque, como diria Santo Agostinho, “A sabedoria dos sanctos he seerem atormẽt[ad]os e atribulados em este műdo e auerẽ deleytaçõões ẽna outra uida perdurauel pera sempre. E a sabedoria daquel que se humilda e abayxa, he cõtrayra aa sabedoria diabolica, que quer hõrra e senhoria” (Op. cit., p. 59). Portanto, destaca-se claramente a apologia do sofrimento santificador, do radical desprezo pelas vanidades passageiras desse mundo imperfeito, em prol do alcance da "vida perdurável pera sempre", ideologia que se confirma em toda a obra.

Maria, presença recorrente, não aparece apenas como adjuvante em casos particulares, mas como a que apaga o furor do Filho divino contra o mundo (25). Dentre as suas intervenções, há um exemplum que vale ser lembrado, até pelo parentesco que guarda com certa narrativa componente das Cantigas de Santa Maria afonsinas (AFONSO X, 1981: I, 124-125), o que indicia ser ele corrente na tradição. Em ambos, salvaguardos pequenos detalhes diferenciadores, acentua-se a piedade mariana para com as religiosas decaídas, livrando-as do vexame e do castigo. No caso presente, focaliza-se uma certa abadessa que, enganada pelo demônio, copulara com um mancebo e emprenhara. Como fosse muito rigorosa para com as monjas suas subordinadas, estas a denunciam ao bispo, que vem punir a transgressora, mas a encontra sem quaisquer sinais de mácula, já que Maria obrara a seu favor, enviando por anjos a criança parida a um ermitão. A ira do prelado volta-se, então, para as delatoras, que no entanto são salvas pela confissão da abadessa. Confirmado o milagre, que evita a punição da abadessa, seu filho é criado pelo bispo, vindo a substituí-lo no bispado. O ensinamento que se quer incutir nos fiéis é igualmente o da oposição aos valores do mundo, inclusive o desmerecimento dos laços familiares, já que "o concebimẽnto de filhos carnaes pooem aas vezes as madres ~e grande periigo" (Orto do Esposo, 1956: 322). Aliás, o parto fora anteriormente mostrado em sua dura realidade de sujeira e dor, desmitificando-se, pois, a aura de sublimidade em torno da maternidade e do "dar à luz", considerados comumente um bem: "Toda mulher concebe cõ çugidade e cõ fedor e pare cõ tristeza e cõ door e cria eu filho cõ angustura e cõ trabalho e guarda-o cõ grande aficamẽto e cõ temor" (Op. cit., p. 99).

Vejamos, agora, as más mulheres. Há as endemoniadas (Op. cit., p. 11) e as que solicitam intervenção do diabo para procriarem (Op. cit., p. 13). Há as sedutoras artistas, que, segundo o próprio diabo, "som as nossas armas e nossos laços, ca per estas cousas que trage e per seus cantares e danças fez a nos gaanhar muytas almas" (Op. cit., p. 161).

Mas chama-se a atenção sobretudo para as vingativas e astuciosas. No primeiro caso, está a mulher de Alexandre, que seduz Aristóteles por haver aconselhado ao marido não procurá-la amiudemente (Op. cit., p. 153). No segundo caso, está o exemplo da mulher que, trancafiada em casa pelo marido desde o casamento, pensando dessa forma evitar ser traído, no entanto consegue fazê-lo, saindo em trajes íntimos, enquanto ele dormia alcoolizado, para encontrar-se com formoso mancebo que observara pelas frestas e a quem mandava recados. Desconfiado o marido pela muita bebida que ela lhe dava à noite, descobre a traição, e não lhe permite a entrada na casa, para repudiá-la junto aos parentes. Mas a mulher ameaça atirar-se ao poço - do que ele teria de dar conta aos seus familiares. Como nem assim o demovesse, atira uma grande pedra ao poço, e o barulho faz com que o marido abra a casa e vá até lá verificar o acontecido. Dessa forma, ela, que se escondera, entra em casa e inverte a situação, podendo passar-se, então, por vítima de adultério (Op. cit., p. 314-315).

Evidentemente que nas condenadas "deleitações corporais", os homens privilegiam... a companhia das mulheres. Daí serem amaldiçoadas pelos Padres da Igreja, autoridades invocadas para sustento de tal ideologia.

Para Santo Ambrósio, é a mulher "porta do diaboo, carreyra de maldade, ferida de escorpiam", acrescentando que "por muy perfecto que o homẽ seia, se ouuer familiaridade e cõuersaçom cõ as molheres, aadur ou nűca pode seer seguro" (Op. cit., p. 306).

Aconselha São Jerônimo: "poucas uezes ou n~uca trilhe o pee da molher a tua cassaa". Até porquê ela "lançou o morador do parayso fora da sua possissom (...), ẽganou Adam e Samsom e rey Dauid e Salamõ". A sua língua "soa castidade e todo seu corpo demostra luxurua". A sua vaidade é tal que dificilmente haverá alguma "posto que seia fea ou uelha, que se nõ alegre e que nõ ouça de boa mẽte que [diga que] he fremosa. Ca, posto que as molheres sejam castas, delectan-sse seer louuadas por fremosas" (Op. cit., p. 306-307). Disto já sabia, aliás, Ovídio, como o expressa na sua Arte de Amar, aconselhando os cortejadores ao elogio, a partir de tal aspecto da natureza feminina (OVÍDIO, 1992: 78-79).

Adverte Santo Agostinho: "nõ deue homẽ meos temer as molheres por seerẽ religiosas, porque, quãto som mais religiosas, tanto mais toste som tentadas e so semelha[n]ça de piedade jaz escondida a luxuria (Orto do Esposo, 1956: 307). Não há referência aos homens religiosos.

O Patriarca Salomão também é invocado para sentenciar que "a molher luxuriosa (...) rouba as almas preciosas". O exemplo lembrado é o do Papa São Leão, que também não ficou imune à sedução, só conseguindo recobrar-se da onda de desejo que o assaltara, por uma amiga da juventude, através da fé na Madre de Deus (Op. cit., p. 308-309).

Denuncia-se com destaque a malícia das fêmeas, suas lágrimas falsas, seu instinto assassino, já que mata por amar e por desamar; estigmatiza-se a "falsura da femea todapoderosa", que "mays ligeyramente se moue a fazer todollos maleficios que o homẽ" (Op. cit., p. 313), citando-se Pitágoras, Catão, Cícero. Ressaltemos que também São João Crisóstomo, dito Boca douro, é autoridade à qual se recorre - aliás, o mesmo que por sua radicalidade seria um dos suportes básicos do Malleus Maleficarum, obra dos Inquisidores Sprenger e Kramer (1991: 114), em sua perseguição às bruxas em fins do século XV. A citação à qual ambos os textos recorrem é, na tradução do Orto do Esposo, a seguinte: “Nõ compre cassar. Que outra cousa he a molher senõ jnmiiga da amizade e pena a que nõ podem escapar, mal necessario, tẽptaçom natural, maa uẽtura desiada, periigo domestico, perdimẽto delectoso, natura de mal pintada cõ collor de bem?... (Op. cit., p. 313).

Exemplo da periculosidade feminina é o já comentado anteriormente, da adúltera que engana duplamente o marido, terminando por passar-se por vítima, vencendo, de tal forma, a força e a inteligência do homem.

Outros pensadores, como Santo Agostinho, são igualmente invocados. E conclui-se com São Jerônimo, para quem "cara cousa he ao pobre mãteer molher, e ao rico he tormento de a soffrer" (Op. cit., p. 315).

O capítulo LXI fala da má mulher, a pior companhia que se possa ter. O exemplo evocado tem como protagonista o diabo, que fazendo-se passar por homem, casa-se com uma mulher tão terrível, embora rica, que termina por preferir retornar ao inferno a continuar convivendo com ela.

O LXII estabelece o louvor aos castrados e às mulheres estéreis ou insensíveis ao sexo, apresentando como preferíveis os filhos espirituais aos carnais, que podem proporcionar danos aos genitores. O exemplo apresentado é o que já comentamos, da abadessa grávida salva da punição pela Virgem.

Após tanta abominação, o que se aconselha para a salvação da a mulher? O isolamento, abraçado pela Madalena (Op. cit., p. 338); o jejum, que leva à cura dos males corporais, à contemplação e à consolação espiritual, enfim, à sanidade/santidade. Ao contrário, a super-estima pelo corpo, o orgulho e a vaidade só conduzem à perdição. Tal se comprova no exemplo (Op. cit., p. 345), que fala de uma duquesa veneziana, que se banhava com o orvalho do céu, especialmente para ela recolhido por não querer usar a água que servia aos homens; que usava talheres de ouro às refeições; que tinha os seus aposentos perfumados com odores preciosos; mas que, ao adoecer, apodrecera ainda em vida, de forma que exalava tal fedor que a todos afastava, só ficando junto dela a serva a que a isso era obrigada.

Pelo exposto, fácil é concluir que, através dos exempla, com o respaldo de autoridades da Igreja e do universo judaico-greco-romano, o Orto do Esposo se coloca em sintonia com a onda de misoginia que então se exacerbava na Europa, dando origem à aterradora caça às bruxas, que se firmaria na ultrapassagem do século XIV para o século XV, mesma época em que a obra fora escrita. Por outro lado, documenta, igualmente, o culto mariano, tão caro ao franciscanismo, que se impusera desde o século XII ascencionalmente, ao contrário do culto da dama pelos trovadores, que acabam por substituí-lo pelo da Virgem, na Provença.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AFONSO X. Cantigas de Santa Maria. Ed. Crít. de Walter Mettmann. Vigo: Edicións Xerais de Galicia, 1981.

KRAMER, Heinrich & SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras - Malleus Maleficarum. Trad. de Paulo Fróes. 2ª ed., Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991. p. 114.

LE GOFF, Jacques. .A bolsa e a vida. São Paulo: Brasiliense, 1989.

MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Rastros de Eva no imaginário ibérico. Santiago de Compostela: Laiovento, 1995.

Orto do Esposo. Edição crítica de Bertil Maler. Vol. I. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1956.

OVÍDIO. Ars amatoria - Arte de amar. Texto bilíngüe. Trad. de Natália Correia e David Mourão-Ferreira. Ap. c/ trad. de Antônio Feliciano de Castilho. 2ª ed. São Paulo: Ars Poetica, 1992.


 


 

[1] Este estudo foi publicado, de forma mais extensa, sob o título “Mulheres exemplares no Orto do Esposo”, em MALEVAL, Maria do Amparo Tavares.. Rastros de Eva no imaginário ibérico. Santiago de Compostela: Laiovento, 1995. p. 63-80.

[2] Observamos o aproveitamento da retórica na historiografia em nossa tese de Doutoramento, intitulada A Revolução pelos ornamentos: Fernão Lopes (São Paulo: USP, 1982).

 

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