GODOFREDO RANGEL
MODÉSTIA VERSUS NOTORIEDADE
Carina Adriele Duarte de Melo (UNINCOR)
Geysa Silva (UNINCOR)
Ao estudar fatos antigos de uma civilização - o seu pilar, os costumes, as ideologias que movimentam a alma humana... - há um momento em que o passado e o presente se encontram e, é neste tênue encontro que a história se faz, se refaz. É preciso prestar atenção nos detalhes mais triviais e reconstruir os pretéritos “agoras”. Adentrar no misterioso mundo dos antepassados pode ser uma experiência singular, pois é no passado que muitas vezes se busca explicações sobre o comportamento do homem moderno - para reconstruí-lo é preeminente sentir o mesmo vento dos tempos remotos.
Toda civilização nasce sob determinadas ideologias e todas ideologias seguem determinadas regras, mas até que ponto uma cultura pode influenciar no comportamento de um indivíduo? Cultura? Mas o que vem a ser cultura?
Edward Tylor, fundador da antropologia sociocultural, foi o primeiro a definir em apenas uma palavra “todo o complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (LARARIA, 2003: 25), Culture foi o nome dado por ele a todas estas possibilidades da realização humana.
Muitos antropólogos discutem o processo de evolução biocultural do homem e como isso condiciona a visão de mundo e interação com os demais. “A cultura é como uma lente através do qual o homem vê o mundo. Homens de culturas diferentes usam lentes diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas.” (LARAIA, 2001: 387). Há quem diga que a cultura nasceu com a primeira norma prescrita - em Minas, por exemplo, a regra número um era erguer uma Capela.
As primeiras notícias acerca da terra dos corações são do ano de 1737 quando os bandeirantes que desbravaram as matas mineiras em busca de ouro avistaram algumas roças com catas de mineração ao redor do Rio Verde - no mesmo lugar onde outrora habitavam os índios Cataguases.
O arraial nasceu com uma capela fundada pelo português Tomé Martins da Costa, a quem dedicou aos “Santíssimos Corações de Jesus, Maria e José, do Porto Real Passagem do Rio Verde” (Real Passagem porque era o principal caminho da capital às povoações do interior e, às margens do rio, os viajantes faziam o seu porto). A capela era muito simples, não havia nem imagens, apenas um orago talhado em madeira formando três corações.
Os historiadores acreditam ser esta a razão do atual nome da cidade, os mais lendários preferem dizer que o nome vem das curvas do rio que dão a forma de três corações, e os mais poéticos optam por dizer que três belas moças Jacira, Jussara e Moema ficaram a chorar por darem seus corações a três boiadeiros, como descreve o hino da cidade.
Ainda por muitas décadas os mineradores insistiram na busca de regiões auríferas, “foi o ouro ou a ilusão do ouro que povoou quase toda a América”. (LARAIA, 1984: 23). Grande quantidade deste metal foi extraído, ainda hoje se vê as marcas da mineração - mas com a escassez do ouro, a vila passou a buscar outras formas de sobrevivência, gerando uma grande mudança no fator cultural. Os fazendeiros abandonaram no alto das montanhas seus tachos vazios e começaram a criar gados, outros optaram por cultivar a terra plantando milho, arroz, feijão, mandioca, banana, alimentos tipicamente brasileiros. Pouco se sabe das festividades culturais da época, acredita-se que eram, na maioria das vezes, religiosas - com celebrações aos padroeiros e animadas com corridas de cavalos.
Somente no ano de 1884 que a vila foi emancipada sendo elevada a categoria de cidade, devido a uma visita do Imperador Dom Pedro II e a Família Imperial para a inauguração da Estrada de Ferro Minas & Rio. Neste mesmo ano, no dia 21 de Novembro nasceu José Godofredo de Moura Rangel, filho de João Sílvio de Moura Rangel e Clara Augusta Gorgulho Rangel.
Godofredo Rangel foi um grande escritor e tradutor mineiro. Ainda garoto, já demonstrava traços de erudição herdados do pai. Aos 12 anos, escrevia pequenos jornais manuscritos, com noticiários, páginas literárias e peças de teatro nas quais atuou muitas vezes com papéis femininos. “Seu amor ao teatro levava-o à construção de pequenos palcos de papelão, pintados a lápis de cor, onde bonecos de celulóide, movidos por cordéis, faziam sucesso. A boca e os cenários laterais eram caprichosamente desenhados por ele próprio.” (ATHANÁZIO, 1977: 16).
A partir desta década, têm-se maiores notícias da cidade de Três Corações. Com aproximadamente sete mil habitantes a cidade teve um grande progresso cultural. Nesta época surge o Clube Literário Rio Verdense, logo mais tarde foi publicado o primeiro jornal: Mineiro do Sul, o precursor de muitos outros semanários. Alguns homens tiveram destaque no meio artístico, sobretudo o jovem jornalista Carlos Lúcio Castex que dirigiu um grupo amador de teatro, foi também um dos diretores da Sociedade Dramática e do semanário “O Passageiro” - juntamente com Gentil Nelaton de Moura Rangel, participou da sociedade musical “Lyra Rioverdense”. Houve também uma grande cantora lírica e atriz de teatro que fazia muito sucesso na Europa, Nina Sanzi.
Com a vinda da feira de gado uma “nuvem negra” pairou sobre as manifestações artísticas de Três Corações, historiadores contam que não se podia mais sair às ruas, pois havia gado por todos os lados, eles entravam nas residências e nos comércios causando grande pânico à população tricordiana. Assim foi por mais de 20 anos, há quem diga que a feira de gado foi um grande avanço comercial, mas os intelectuais a consideram um imenso entrave no plano artístico.
Mais de um século se passou e a dúvida emerge: qual seria a influência de uma pequena cidade como esta na vida de um escritor como Godofredo Rangel? Atualmente, qual a ponte que os une? Para refletir sobre estas questões é relevante uma breve apresentação de sua vida e obra.
Sabe-se que com a morte do pai, Godofredo se mudou para a capital paulista, onde mais tarde ingressou na Faculdade de Direito da USP. Foi neste mesmo período que, devido à situação financeira da família, Rangel começou a trabalhar como escrivão de Subdelegacia em um Posto Policial. Em um de seus plantões conheceu o jovem poeta Ricardo Gonçalves. Pouco tempo depois, Rangel foi transferido para Belenzinho, onde alugou um chalé: “Mas é uma torre, RANGEL! Veja que amplidão de vista se descortina! Uma torre – um minarete! E você é um muezim!” (LOBATO, 1950l: 23) – disse Ricardo, encantado com o Chalé. E é justamente neste lugar que nasceu o Cenáculo, onde Godofredo conheceu Monteiro Lobato, Lino Moreira, Tito Lívio Brasil, Albino Camargo, Cândido Negreiros, Raul de Freitas e José Antonio Nogueira; todos contaminados pela mesma ‘doença’: o carnegão literário, como costumavam denominar. Vários jornais da região, sobretudo o Jornal Minarete, publicaram muitos contos e crônicas de Rangel.
Godofredo mais uma vez se mudou, desta vez para Campinas, mas logo voltou para Minas, onde passa a lecionar Português e Inglês no “Colégio Fernandes”. Neste período, começou a trocar cartas com o amigo taubateano, Monteiro Lobato. O marasmo da rotineira vida interiorana parecia muitas vezes o incomodar:
Queres saber como me sinto aqui? Um pouco como um homem que andou correndo mundo, atravessou Áfricas e varou pólos, que se atirou a todas as aventuras e a todos os trabalhos, exilado, ausente largos meses, e que afinal voltou à casa a repousar das fadigas da viagem. São as únicas emoções que sinto – emoções de repouso merecido, puramente domésticas. Não esperava isto. Desejaria encontrar ainda em mim, capacidades para emoções incandescentes, que nunca tive, ou antes, como as que tive no ano passado...
Em 1906, já bacharel, casou-se com Bárbara Pinto de Andrade e com ela teve três filhos e uma filha: Nello, Caio, Túlio e Duse. O primeiro foi um dos maiores responsáveis pelas informações a respeito da vida do pai.
Rangel oscilava entre a licenciatura e as funções jurídicas por todo o Sul de Minas, mas nunca demonstrou amor pelas leis. No entanto, a Literatura ele jamais abandonou: prosseguiu, invariável, em suas leituras, traduções e escritos. Publicou uma Gramática: Estudo prático de Português e no “Estadinho” (edição vespertina do Estado de São Paulo) publicou capítulos do romance “Vida Ociosa”, “Falange Gloriosa” e contos da coletânea “Andorinhas”.
Sempre considerado pelos amigos como o mais talentoso, Rangel com seu jeitão esquivo e modesto, parecia estar sempre pedindo desculpas por tanto talento – afirmou Drummond. Somente após muita persistência dos amigos, em 1920 Godofredo consentiu a publicação de “Vida Ociosa – romance da vida mineira”, em primorosa apresentação gráfica. Em 1922 publicou seu primeiro livro de contos, “Andorinhas”; em 1929 publicou “A Filha”, uma narrativa romântica; dois livros infantis, “Um passeio à casa de Papai – Noel” e “Histórias do tempo do onça” e o segundo livro de contos, “Os Humildes”; os romances “Falange Gloriosa” e “Os Bem Casados” foram publicados postumamente em 1955.
Enquanto isso a cidade de Três Corações progredia, uma nova Matriz foi construída, porém, desta vez com uma esplendorosa torre gótica, com as colunas internas detalhadamente trabalhadas num estilo clássico e no altar, nada de singelos oragos, mas sim belíssimas imagens sacras. O interior da igreja foi mais tarde coberto de primorosas pinturas que retratam desde o nascimento de Cristo a sua crucificação, feitas pelo decorador Pedro Zogbi.
Em 1944, Monteiro Lobato publicou a primeira edição de “A Barca de Gleyre”, que são as correspondências com o amigo Rangel. Como era de se esperar, Rangel recusou-se terminantemente a publicar suas cartas, alegando que elas não possuíam outro mérito além de provocar excelentes respostas de Lobato. Anos mais tarde o segundo volume de “A Barca de Gleyre” foi publicado, novamente com o habitual silêncio de Rangel.
No dia 4 de agosto de 1951, três anos depois da morte de seu amigo espiritual Monteiro Lobato, Godofredo Rangel, vítima de uma enfermidade que há muito o rodeava, faleceu aos 66 anos na capital mineira. Muitos dos seus amigos do “Minarete” já haviam falecido; o próprio poeta dos “Ipês” Ricardo Gonçalves – o “Ricardito” - suicidou-se no ano de 1916.
Nos tempos atuais pouco se fala de Rangel, Enéas Athanásio, contista, ensaísta e autor de "O Amigo Escrito": biografia de Rangel (1988) foi um dos maiores responsáveis pelas informações referentes a ele. Athanásio acredita que
A obra de Rangel é um retrato de Minas, sua gente, seus costumes, sua geografia. Minas estava tão entranhada nele que ele abandonou o emprego em São Paulo e um meio literário efervescente, onde já tinha nome, para se enfurnar numa "biboca arredia de civilização" do interior mineiro - como ele dizia. Se houvesse gratidão nessas coisas, Minas deveria cultuar Rangel de todas as formas.
Hoje a cidade de Três Corações possui uma casa de Cultura e uma escola que receberam o nome do escritor tricordiando... Há muitos que alegam que Godofredo deveria ser melhor reconhecido. Braz Chediak, cineasta e um intelectual da região falou também de Rangel
Numa época em que o regionalismo era sinônimo de nacionalismo, era natural que Godofredo Rangel se influenciasse pela cultura de Minas. Mas, curiosamente, ele o fez de maneira menos acentuada que Guimarães Rosa ou Mário Palmério, por exemplo. Se por um lado ele observava os costumes, a maneira de ser e viver de seu povo, e isto está claro no bonito conto AS PEQUENINAS, por outro ele não carregava na linguagem interiorana da época.
Rangel foi um representante digno de nossa literatura e amado por seus pares. É conhecida a admiração de Lobato tinha por ele e Menotti del Picchia veio visita-lo em santa Rita do Sapucaí. Murilo Rubião, Milton Campos, Mário Matos, etc., etc., são amigos que o freqüentam, o que prova ser ele uma criatura agradável e claro, um bom papo. Talvez tenha sido um pouco recluso, o que deixa a impressão de uma excessiva timidez, mas esta atitude pode ter sido tomada para afastar os intrusos e não prejudicar seu trabalho de escritor numa Minas onde era comum as chamadas “visitas”. E como trabalhava: era Juiz de Direito, professor, escrevia e publicava seus contos, seus romances, seus artigos, suas traduções, desenhava ardorosamente, fazia parte da Academia Mineira de Letras, participava das reuniões acadêmicas, proferia palestras e, pelas reações a seu discurso saudando Guilherme de Almeida por sua visita a AML em 1943 e pela conferência que fez por ocasião do jubileu de URUPÊS, no mesmo ano, concluímos que foi um magnífico orador.
Sobre sua vida, as informações que temos também são contraditórias. Por exemplo: é decantada sua origem humilde. No entanto, de acordo com Enéas Athanásio, talvez o mais importante dos estudiosos de Rangel, seu pai falava fluentemente inglês – coisa rara na época – e francês, considerada a língua culta, dos bem nascidos e se vestia com ternos vindo de Londres, onde tinha alfaiate especial, bem como o fumo de seu cachimbo, coisa impossível para um homem humilde de qualquer época.
Quanto às suas cartas, chegou até nós a informação que ele pediu a seus familiares que não as publicassem nem mesmo após sua morte. Mas por que não as destruiu, o que seria mais lógico se não as quisesse lidas. Será que esta história não foi inventada para justificar a perda desta correspondência por algum filho ou parente descuidado? Não sei. Fica a indagação.
Três Corações é, culturalmente, uma cidade estranha. Temos uma casa da cultura e uma biblioteca com o nome de Godofredo Rangel. No entanto, não encontramos seus livros, nunca ninguém se preocupou ou se preocupa em reeditá-los e ignoramos até mesmo o dia de seu nascimento ou morte que passam despercebidos sem nenhuma homenagem. Assim como para Drummond Itabira é apenas um retrato na parede, para Três Corações Godofredo Rangel é apenas uma placa indicando que ali deveria ser preservada e divulgada sua obra e sua vida.
Creio que foi James Joyce quem disse que: “a arte é uma porca velha que devora sua própria cria”, mas ela pode, também, renascer, ser interpretada e reinterpretada como são interpretadas e reinterpretadas qualquer obra em qualquer tempo. A obra de Rangel está renascendo. Pouco a pouco os “intelectuais” brasileiros estão redescobrindo este escritor que um dia, tenho certeza, será conhecido em todo o país. Neste dia, quem sabe?, nós tricordianos diremos com orgulho e imprimiremos em nossos papéis oficiais: TRÊS CORAÇÕES, TERRA DE PELÉ E DE GODOFOREDO RANGEL.
O homem vive segundo suas necessidades e possibilidades. Há quem necessite da arte, e para estes, a vida será sempre uma obra inacabada. Rangel é o exemplo de um literato que fez do tédio a sua sombra e soube caminhar com ele. Esse mesmo tédio que esteve presente em seus romances se mesclou muitas vezes com o real e o imaginário e o resultado foi uma vida repleta de figuras e formas intensamente sentidas.
Referências Bibliográficas
ATHANÁSIO, Enéas. Godofredo Rangel. Curitiba: Gráf. Ed. 73, 1977.
FONSECA, João Garcia da. Três Corações e sua história: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1984.
LARAIA, Roque de barros. Cultura: um conceito antropológico. 16 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. São Paulo: Brasiliense, 1950.
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