O HUMANISTA PORTUGUÊS DIOGO DE TEIVE
Amós Coêlho da Silva (UGF e UERJ)
O Quinhentismo possuiu estudiosos, como Diogo de Teive (m. 1565), que devem ser classificados como integrantes do Humanismo, e não propriamente do Renascimento, ou seja, a imitação greco-latina era superior ao elemento nacional e, portanto, a sua característica era centrada na exaltação do Homem. Antônio Ferreira, que fora seu discípulo, escreveu A Castro em vernáculo, isto é, imitou os clássicos antigos, mas não descuidou do elemento nacional. Ele, no entanto, só escrevia em latim, nunca escreveu em português, nem sequer no depoimento que fez na Inquisição (DICIONÁRIO DE LITERATURA, 1987: 1080).
Teve a sua gestão de reitor no Colégio das Artes interrompida pelo processo do Santo Ofício, por considerar a ele e outros professores simpatizantes do luteranismo. Consegue, com a intervenção do Cardeal D. Henrique, sua liberdade e recondução ao antigo cargo.
Pertenceu a uma facção que animou o jovem príncipe D. Sebastião a expansão política marroquina. Foi estimulado a escrever uma epopéia em latim, celebrando o feitos lusitanos, dada a reconhecida competência de latinista dele. Não chegou a realizá-la, mas nos legou História do Segundo Cerco de Dio, ou como o seu original: Commentarius de Rebus in India apud Dium Gestis, Anno 1546 e uma ode, parte do ambicioso projeto épico. Advogou a paz diante da agitada posição de Erasmo: Querella Pacis, mas defendeu a necessidade de uma “guerra justa”, como a que foi empreendida por D. Sebastião.
Faremos uma breve incursão em sua peça trágica Joannes Princeps. Inspirada no falecimento prematuro do Príncipe D. João em 1554, cujo pai vem a falecer em 1557, a sua mensagem poética desencadeia o pavor da extinção da dinastia e, por conseguinte, perda da independência.
Teive exprime neste tema nacional um estilo grave e melancólico, característica de Vergílio. Cria uma atmosfera dramática, carregada de presságios, à maneira de Sêneca. Destaque-se o coro a partir do verso 729, semelhante à ode horaciana, expressando o papel de Cupido, a divindade que preside o amor.
CHORUS
Nos tuas uires, Pater o Cupido,
730 nos tuas flammas, quibus et profundum
aequor incendis, quibus et supremum
uris Olympum,
quis flagrat tellus, breuiter canamus.
Nil satum terris pelagoque uasto,
735 nil satum clare aethere, quod tuos non
sentiat ignes.
Hunc simul blandae uolucres furorem
sentiunt tecto radiante caeli,
et suos uictae modulantur ignes
740 ore canoro;
hunc ferae densis nemorum latebris;
hunc aper saeuus, leo, taurus, ursus;
hunc greges mites, simul et furore
concita turba.
745 Sentiunt tantum uitreis sub undis
Numen auratis cooperta squamis
Gens maris uasti retinentque flammas
Gurgite in alto.
His suos praebent satã cuncta fructus;
750 his suas messes bene culta tellus;
his apes gratum generant liquorem
ignibus actae.
Angulum nullum, mare terra et aether
abditum quamuis habet et recessum,
755 in quo Amor sceptrum ualido superbum n
non gerat arcu.
Sit licet caecus iuuenisque, certum
dirigit telum laceratque pectus
uulnere infesto nec opem querenti
760 praebet amanti.
Ille nec parcit Polyphemo agenti
molle per saltus pecus; ille clauam
torquet inuictam ualidis lacertis
ab Ioue nato.
765 quem nec immanes douere gentes
nec truces tauri Nemeaeque terror,
mostra nec Lernae nec atrox trifauci
Cerberus ore,
Perdomat caecus puer et tenellus,
770 cogit et collo iuga seu iuuencum
ferre deuictum dominaeque carae
reddere pensa.
Cuncta si uictor superat Cupido
Cordauictorum, licet illa duris
775 ac feris gestent truculenta setis
cinctaque ferro,
molle cur pectus nequeat domare
uirginum, molles iuuenumque mentes?
Sed repugnantes trahit et uolentes
780 ducit amice.
Omnium uictor deus est Cupido,
Sed magis molles ânimos domare
Uirginum nouit iuuencumque bladis
Urere flammis.
785 Hunc uocant quidam rabiem ac uenenum,
hunc luem pestem, scelus et furorem
milleque immani maledicta lingua
turpia iactant.
Haud tamen norunt geminum esse Amorem:
790 alterum caecum, furibundum, acerbum,
qui sua cveruos leuitate uincit,
uincit et auras:
alterum castum, moderatum, amicum,
prouidum, mitem, placidum, quietum,
795 cui fides semper probitasque grata
pectori adhaeret.
Hunc pii obseruant teneris ab annis
Pincipes lecto socitai eburno,
Principes nostri: quibus a supremo
800 Phoebus Olympo
aut soror Phoebi nihil intuetur
maius extensis meliusue terris,
nil magis pulchrum, magis aut decorum
quod semel ortum est.
805 Vinculis ambo sociantur artis;
unus et constans animus duorum est;
una mens ambos regit; uma uincit
firma uoluntas.
Res at humanae ancipites uagantur
810 nec loco perstant stabili inquietae:
huic pio ardori fideique uerae
fata repugnant.
Dura sors rebus solet inuidere
prosperis nec fert diuturnum in orbe
815 quidpiam inconstans celerique uoluit
cuncta rotatu.
Vastitas, mors, interitus, ruina
maxima in terras ruet obruet que
machinam hanc totam nisi, summe, nobis
820 Tu, Pater, adsis.
Tradução:
Nós, ó deus Cupido, teus poderes,
730 Tuas chamas pelas quais não só o mar profundo
Incendeias, pelas quais ardes
O supremo Olimpo,
Pelas quais se abrasa a terra, cantemos brevemente.
Nada nasce nas terras e no vasto mar,
735 Nada nasce no luminoso éter, que não
Sinta tuas chamas.
Juntamente, este furor o sentem as maviosas aves,
No radiante teto do céu,
E vencidas, modulam seus cantos ardentes
740 Na voz melodiosa.
Este, as feras nos densos esconderijos do bosque;
Este, o selvagem javali, o leão, o touro, o urso;
Este, os mansos rebanhos, e ao mesmo tempo, pelo furor,
Uma turba excitada (de viventes).
745 Sentem, sob o espelho das ondas marinhas,
Os habitantes do vasto mar, cobertos de escamas douradas,
A tua divindade e retêm estas chamas
No profundo abismo (inundado).
Dessas vêm os nascimentos, elas ofertam os frutos (da vida);
750 Dessas, a terra bem cultivada, suas messes;
Dessas, as abelhas geram o mel gratificante,
Agitadas pelas tuas chamas.
Nenhum recanto têm o mar, a terra e o éter,
Por mais afastado que seja,
755 No qual o cetro supremo do Amor não se arme
Com seu arco poderoso.
Embora seja cego e jovem, certeiro
Aponta a seta e dilacera o peito
Com uma ferida dolorosa e não dá lenitivo
760 Ao amante queixoso.
Ele não poupa a Polifemo que apascenta
Seu rebanho pelos pastos; ele atormenta
O de clava invicta, apesar dos músculos robustos,
Nutridos por Júpiter.
765 Este, nem as raças prodigiosas (o) domaram:
Nem touros ferozes, nem o terrível leão de Neméia,
Nem os monstros de Lerna, (ou) o inexorável
Cérbero de tríplice mandíbula.
(Mas) o menino cego e delicado,
770 Força-o, vencido, levar ao pescoço
Um jugo ou um vitelo e ir entregue o fardo
(Agora suave) à amada senhora.
Se Cupido domina vencedor todos os corações
Inexpugnáveis, embora (tais corações) sejam gerados duros
775 E ferozes espinhos e pela truculência
Empedernida pelo ferro,
Por que não poderia domar o peito tenro
Das jovens e arder as mentes suaves dos jovens?
Aos que resistem, arrasta e os que os consentem
780 Conduz afavelmente.
De todos é vencedor o deus Cupido,
Porém, sabe dominar mais ainda os corações sensíveis
Das meninas e abrasar os dos jovens
Com chamas sedutoras.
785 Chamam-lhe alguns fúria e veneno,
Flagelo, peste, crime e desvario
Mil ditos ultrajantes lhe lançam
Com língua truculenta.
Entretanto, não sabem que dois Amores:
790 Um cego, furioso, cruel,
Que vence em ligeireza (os velozes) cervos,
Vence até os ventos;
Outro, casto, moderado, amigo,
Prudente, doce, plácido, sossegado,
795 a quem são gratas sempre a lealdade e a justiça,
Está ligado ao peito.
A este prestam culto desde tenra idade
Os piedosos Príncipes unidos a leitos de marfim,
Príncipes nossos: aos quais do supremo
800 Olimpo, Febo ou sua irmã nada vêem,
Nos recantos da terra, melhor ou maior do que eles,
Nada mais belo ou luminoso
Que alguma tenha nascido.
805 Ambos estão unidos por vínculos estreitos;
Uma e constante é a alma de um e de outro;
Uma só mente rege a ambos; uma
Vontade firme os liga.
Mas as coisas humanas são incertas nas suas ambigüidades
810 E inquietas não se mantém em lugar estável:
A este ardor pio e fé verdadeira
O destino se opõe.
A dura sorte costuma invejar
815 A prosperidade, não suporta o que dura muito no mundo
E revolve tudo
Com rápido movimento.
A devastação, a morte, a destruição, a ruína
Total cairão por terra e derrubará
820 Toda esta máquina, a não ser que em nosso socorro,
Ó Pai supremo, venhas.
Temos na forma métrica a influência horaciana: 3 versos hendecassílabos mais um adônico de 5 sílabas – das odes sáficas de Horácio:
NOs tuAss, uIrEs, Pater O CupIdo
NOs tuAss flAmmAs, quibus Et profUndum
c
quor IncEndIs, quibus Et sUprEmumU
ris olympumEsquema métrico horaciano:
—( / — — / —(( / —( / —(
—( / — — / —(( / —( / —(
—( / — — / —(( / —( / —(
—(( / — —
Quanto ao argumento, Diogo de Teive o assimilou de Sêneca, Fedra 274-357. Destaquemos aqui apenas uma pequena passagem:
CHORUS
Diua non miti generata ponto,
Quam uocat matrem geminus Cupido,
Impotens flammis simul et sagittis
Iste lasciuus puer et reuidens,
Tela quam certo moderatur arcu!
Labitur totas furor in medullas,
Igne furtiuo populante uenas.
Nulla pax isti puero: per orbem
Spargit effusas agilis sagittas. (274-284)
Tradução:
Ó deusa, gerada pelo bravio mar,
Tu que chama de mãe o duplo Cupido,
Que, ao mesmo tempo, incontrolável pelas chamas e pelas setas,
Este menino lascivo e sorridente,
Domina com o arco certeiro.
O seu furor desliza em todas as medulas,
Como fogo furtivo que devassa as veias.
Não há paz para este menino: pelo orbe
Espalha ágil suas setas rápidas.
Cupido, o correlativo latino do Eros grego, é tradução da complexio oppositorum, a união dos contrários. É a própria atualização criadora da vida, explicada na psicanálise como uma pulsão da libido. Na concretização das potencialidades de Cupido, há trocas materiais e interações espirituais com o outro. Tal relacionamento, na superação de antagonismo pela ação de Cupido, provoca sempre choques emocionais, num processo de assimilação de forças divergentes e convergentes, para tornar dois seres numa só unidade. Os estudiosos dos símbolos do homem apontam a cruz, uma síntese de correntes horizontais e verticais, bem como o binômio animus-anima. Cupido é a fixação da ordem, a reintegração do universo que surgiu do Caos primordial.
No entanto, essa força espiritual de progresso místico pode perder o centro unificador, quando dois seres trocam a união pela apropriação. Com a perversão, Cupido se converte em instrumento de morte, porque uma das partes serve-se da outra egoisticamente, ao invés do enriquecimento de ambos numa entrega total. Ora, se uma parte se considerar um todo, vencerá de modo falso aquela condição de dependência humana imposta pelos deuses, que nos separaram outrora e desta separação herdamos para sempre a cicatriz: o umbigo.
Referências bibliográficas:
BARBOSA, João Alexandre. A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1986. 3 v.
––––––. Dicionário mítico-etimológico da mitologia e da religião Romana. Petrópolis: Vozes, 1993.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANDT, A. Dicionários de Símbolos. Trad. Vera Silvaet alii.Rio de Janeiro: José Olympio,1994.
ERNOUT, A. & MEILLET, A. Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine –Histoire des Mots. Paris: Klincksieck, 1985.
PEREIRA, Maria Helena da R. Estudos da História da Cultura Clássica: Cultura Grega.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964.
SÉNÈQUE. Tragédies. Tome I “Phèdre” Texte établi et traduit par Leon Herrmann. Paris: Lês Belles Lettres, 1924.
TEIVE, Diogo. Tragoedia, quae inscribitgur Joannes Princeps. (apostila)
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