O QUE É “SENTIDO”
NO SINCRETISMO DA LITERATURA INFANTIL

Beatriz dos Santos Peres (UFF e UNIPLI)

Ler é uma forma de escrever com mão alheia.

(Affonso Romano de Sant’Anna)

Em foco, a leitura competente e sensível

Affonso Romano de Sant’Anna (s/d), em uma crônica que fala da leitura como processo de decifração dos “sinais à nossa frente” (não só as palavras, mas também as urnas eleitorais, os sintomas das doenças, uma partida de futebol, ou a forma como um jornal é feito) associa a leitura dos signos à capacidade de ler o mundo. A capacidade de reconhecer experiências e de relacionar essas experiências à situação em que o “texto” se insere é fundamental ao ato de atribuição de sentido: a destreza como leitor, ou como decifrador, depende de uma certa habilidade de projetar a si mesmo, através do conhecimento adquirido ao longo de sua vida, no texto que lê.

Ainda que restrinjamos a noção de leitura ao ato de construir o sentido de um texto, verbal e/ou não-verbal, intencionalmente produzido em determinada circunstância comunicativa, o processo significativo a que o indivíduo se submete incessantemente (inclusive em relação a fenômenos sem emitente humano, ou com emitentes sem consciência de que comunicam algo a outrem) alimenta sua capacidade leitora com dados e pontos de vista posteriormente usados em novos processos de leitura.

Pensar a leitura como o ato de atribuir sentido a textos constituídos por signos oriundos de universos simbólicos diversos, como a maioria dos textos de literatura infantil, demanda uma capacidade interpretativa baseada, sobretudo, na sensibilidade para aproximar mundo textual e mundo real: primeiro, porque são textos dedicados também às crianças, nos quais palavras e ilustrações encontram-se inseridas em uma atmosfera poética, impactante, rica em “sentidos” (significados, sensações, afetividade, direções); além disso, porque, tendo como parte do público-alvo um leitor ainda em formação, o “sucesso” da leitura (como finalização de um sentido verossímil interna e externamente) estará vinculado, em especial, a uma capacidade leitora obtida no cruzamento de diferentes competências.

A partir da análise de Três reis magros, de Cláudia Figueyra e Denise Nascimento (1998), pretende-se dimensionar as competências semiolingüística, discursiva e situacional (Charaudeau, 2001b), direcionadas ao ato de l(v)er o texto sincrético de literatura infantil. Para isso, será utilizada, fundamentalmente, a teoria semiolingüística, que, apesar de privilegiar a palavra como forma de expressão, entende que a semiotização pode ocorrer em diferentes sistemas semiológicos — sendo, portanto, uma teoria adequada também para a investigação de textos mistos. Além disso, a fim de tornar mais profícua a análise dos signos icônicos, serão usadas noções advindas da teoria semiótica peirceana.

Competência(s) para ler os vários “sentidos”

A leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de”‘escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente. (Freire, 2003: 20)

Paulo Freire, em A importância do ato de ler (2003), a partir do relato de sua experiência como “leitor" do mundo e da palavra, revela a estreita ligação entre, de um lado, a percepção das coisas ao redor, da natureza, das pessoas, das crenças, dos valores culturais e, de outro, a leitura da palavra propriamente dita: percebe-se o mundo para interpretar a palavra; lê-se a palavra, para interpretar o mundo.

A experiência perceptiva vivida por Freire desde a infância, repleta de sensações e sentimentos, aprendizado e memória, compreensão de seu mundo particular e interpretação do “sentido” — tanto o que é sentido pelo coração, afetivo, no contato físico, sensorial, com o mundo, quanto o sentido referente à cognição, intelectivo — revela a “primeira leitura” a que estão os homens expostos, desde que nascem. Na interação com a vida, com o social, vai-se construindo um modo singular de “leitura”, na atribuição de significados — mais tarde tão necessários para outras “leituras” e interpretações. Freire ainda defende uma “segunda leitura”, a da “palavra escrita”. Na verdade, defende um modo de ler e de escrever (“no fundo indicotomizáveis”) crítico, profundo, ligado àquilo que há de essencial aos indivíduos. Somado a esse modo, entende a leitura da “palavramundo” como um meio para uma profícua leitura do mundo, já que, acionadora do conhecimento prévio e partilhado, vai além das letras e das palavras, solidariza texto e experiência: “... a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele” (op.cit.: 20).

Sob a perspectiva semiolingüística, pode-se afirmar que Freire prega uma leitura verdadeiramente interpretativa, que leva em conta o plano discursivo da linguagem e pressupõe estratégias leitoras não-mecanizadas, abarcando todo o universo enunciativo em que se insere cada ato de ler. Segundo Charaudeau (1983), para se construir o sentido que corresponda à intencionalidade do enunciador, é preciso relacionar as palavras e seqüências portadoras de sentido com outras palavras e seqüências portadoras de sentido que se acham registradas na memória da experiência do sujeito: trata-se, justamente, da leitura de mundo que subjaz a leitura da palavra e se enriquece com ela.

Ao mostrar como são inseparáveis a leitura da palavra e do mundo, Freire expande a noção do que é ler, considerando como tal não só a (ultra)passagem da simples compreensão da palavra escrita em direção à importância da compreensão crítica do mundo através do ato de ler, mas também a influência que uma constante e apurada leitura do mundo, fruto da experiência ao mesmo tempo individual e social do leitor, pode ter sobre o resultado de suas leituras posteriores.

Em uma outra perspectiva, pode-se afirmar que Freire aponta para dois tipos de leitura: a primeira, conhecimento e re-conhecimento do vivido, atividade mnemônica impregnada tanto de racionalidade quanto de afetividade; a segunda, decodificação e interpretação do simbólico, dos signos convencionados pelo homem para a comunicação em sua prática social — sobretudo do símbolo-palavra-escrita. Em ambos os casos, porém, há a presença de um traço que os une e justifica: a atribuição de sentido parte de um sujeito que deve saber relacionar os dois pólos.

Para se tornar um leitor proficiente e crítico, portanto, é preciso desenvolver competências relativas não só ao conhecimento dos signos partilhados por um determinado grupo social através de textos de variada natureza, mas também aos rituais nos quais os sujeitos se envolvem e aos papéis que assumem em sua relação com o mundo. A Semiolingüística, uma das teorias de análise do discurso fundada por Patrick Charaudeau, define e explica as competências envolvidas no ato de linguagem. O leitor, atuando com essas competências, reivindica sua posição de produtor de sentido, de autor do sentido do texto que lê, “escrevendo, com mão alheia” sua própria história.

“Ler bem”, ou “ler com competência” é tarefa que pressupõe, em primeiro lugar, um trabalho incessante na direção do sentido particular veiculado pelo texto, em um determinado momento, de acordo com uma intenção do produtor do texto em função de um (suposto) recebedor; em segundo, o conhecimento dos elementos e dos níveis constituintes da textualidade como forma de entender a construção desse sentido. Para isso, Charaudeau (2001b) postula a noção de competência de linguagem.

Diferentemente de Chomsky, para quem e competência se refere à capacidade do falante de determinada língua para produzir incontáveis orações (inclusive inéditas) a partir de alguns enunciados primários submetidos a transformações conforme um sistema de regras complexas, a Semiolingüística, ao absorver noções trazidas pela Pragmática (como a idéia de ato de linguagem), pela Teoria da Enunciação (considerando o espaço enunciativo) e pela Sociolingüística (que propõe vincular o enunciado ao contexto social e cultural), entende a competência de linguagem como a capacidade que o sujeito (comunicante ou interpretante) deve dominar para construir o sentido textual. Essa competência se subdivide em três tipos — situacional, discursiva e semiolingüística — de acordo com os três níveis a que pertencem os recursos de linguagem usados para a construção do sentido.

A competência situacional refere-se às aptidões para perceber as circunstâncias da comunicação, como a identidade dos protagonistas envolvidos no ato de linguagem, a finalidade desse ato, seu propósito e suas circunstâncias materiais (comunicação inter ou monolocutiva). É essa competência que “determina lo que está en juego con un acto de lenguaje, y esto es fundamental, puesto que no hay acto de lenguaje sin propósito” (op. cit., p. 15). Já a competência discursiva relaciona-se às aptidões para manipular/reconhecer as estratégias de encenação – enunciativa, enunciatória e semântica — e para recorrer a relações intertextuais. Para a manipulação/reconhecimento da forma dos signos, de suas regras combinatórias e de seu sentido, que consiste em saber reconhecer e usar as palavras (ou as imagens, texturas e cores, no caso do signo não-verbal) em função de seu valor de identificação e de sua força portadora de verdade, há a competência semiolingüística. É neste nível que se constrói o texto que, conforme Charaudeau, deve ser entendido como “el resultado de un acto de lenguaje producido por un sujeto dado dentro de una situación de intercambio social dada y poseyendo una forma peculiar” (op. cit., p. 17).

O sincretismo sígnico no ato de ler

Mesmo atentando para a supremacia da linguagem verbal quanto à sua capacidade de semiotização do mundo, tão essencial para dar sentido às coisas, não se deve desprezar a aptidão para a sensação imediata, intrínseca a outras linguagens, especialmente àquelas mais presas à percepção sensorial (como a música, ou a pintura). Essa sensação imediata, primeira, impactante, anterior ao processo simbólico a que se submete o verbal antes que desperte sensação equivalente, só é possível em meios semióticos não-lineares, apreendidos global e instantaneamente. Esse é o caso do texto constituído por signos icônicos.

Em termos gerais, segundo Peirce (2003), de acordo com sua aparência (isto é, a maneira como ele aparece), o signo pode ser considerado um ícone, um índice ou um símbolo.

É ícone o signo que guarda uma relação de semelhança ou identidade entre o significado e o significante. Mais do que representar o objeto a que se refere, ele o apresenta. Toda imagem, portanto, é, em princípio, um ícone. Também as onomatopéias, por causa da semelhança com o objeto que representam, guardam essa característica icônica. A metáfora, “cujo traço principal é a similaridade na significação” (Valente, 1997: 26), corresponderia, da mesma forma, a essa relação icônica.

índice é o signo que apresenta uma conexão direta entre significante e significado, tendo, portanto, como traço principal a contigüidade: ele “indica outra coisa com a qual está factualmente ligado” (Santaella, 2003: 66). Todo índice é constituído por ícones, mas nele “é mais proeminente seu caráter físico-existencial, apontando para uma outra coisa (seu objeto) de que ele é parte” (op.cit.). De acordo com Valente (1997: 26), relação indicial “pode guardar uma correspondência com a figura de linguagem chamada metonímia, cuja característica principal é a contigüidade na significação”.

Finalmente, o símbolo “extrai seu poder de representação porque é portador de uma lei que, por convenção ou pacto coletivo, determina que aquele signo represente seu objeto” (Santaella, 2003: 67). A convenção presente no símbolo não é gratuita: há sempre uma relação acionada por contigüidade instituída. A cruz simboliza o cristianismo porque Jesus Cristo, sua figura central, morreu em uma cruz; a raposa simboliza a astúcia, porque culturalmente é considerada um animal astuto. É um signo que provoca uma cadeia relacional de significações, dependente de nossa concepção de mundo. As palavras, por sua convencionalidade, são símbolos; aquilo que representam são objetos gerais, não singularizados; constituem-se em idéias abstratas. Para adquirirem um poder de referência específico às situações de uso, precisam ser acompanhadas por índices; passam, pois, a símbolos indiciais.

Após essa caracterização (ainda que generalizante), podemos afirmar que o termo sincretismo sígnico aponta para a coexistência de universos diversos em um único texto. Esse sincretismo revela-se, no caso específico do corpus utilizado neste trabalho, na concomitância da palavra, signo verbal caracterizado pela arbitrariedade e pela linearidade, e da imagem, signo icônico caracterizado pela similaridade e pela superficialidade (Almeida, 1999). O sentido textual será construído, neste caso, através da complementação a que esses universos submetem-se reciprocamente.

Esse processo será observado na análise de alguns elementos de Três reis magros, paródia da história bíblica dos reis magos, que seguem uma estrela para conhecer e presentear o messias nascido em condições miseráveis.

“O que é sentido” em Três reis magros

No papel de leitor de Três reis magros, o sujeito-interpretante, a partir do momento em que investe seus esforços para construir-lhe o sentido, dá o “direito à palavra” às autoras do livro em questão, acreditando na pertinência dos elementos ali apresentados para que obtenha êxito nessa empreitada. Todos os elementos inscritos no texto através do sistema de signos que o constitui, serão, desse momento em diante, relacionados, para que, na convergência de suas instruções de sentido, finalizem o sentido global, que revelará o propósito do texto, assim como a finalidade de sua existência de acordo com um determinado foco. Em outras palavras, a partir do nível semiolingüístico, mais aparente e concreto, estabelecem-se relações que apontam ora para o nível situacional, ora para o discursivo, encampando-os a fim de calcular o sentido veiculado pelo texto.

Reconhecendo o livro como de literatura infanto-juvenil, constituído de um meio simbólico misto, o leitor cria a expectativa de encontrar um universo ficcional, mágico, no qual as imagens participarão da construção do sentido, a fim de provocar inferências, ou orientar conclusões. No caso de um leitor menos experiente, como em geral são as crianças a quem também se destinam os livros de literatura infantil, essa expectativa pode ser criada por um mediador de leitura: um professor ou os pais que lhe lêem a história. Todas as informações ligadas ao conhecimento prévio exigido do leitor devem ser supridas a fim de que seja possível a finalização do sentido.

A linguagem poética e lúdica, observada desde a capa na co-presença de signos verbais e não-verbais, mobiliza e seduz o leitor para obter sua adesão ao projeto de palavra e, através das relações que engendra entre Três reis magros/texto bíblico e texto/realidade, revela tanto a finalidade do texto (literária e reflexiva) quanto a tematização em torno da compaixão humana.

Os elementos icônicos (desenhos, traços, imagens figurativas) e plásticos (cores, texturas, dimensões) trazem, aparentemente, um caráter universal, visto que o homem produz imagens desde a pré-história até nossos dias — e a similaridade entre esses elementos e a realidade que representam induz a esse engano. Isso traz a impressão de que a leitura desses elementos seja “natural”, ou “automática”; contudo, segundo Joly (1996: 99), “a interpretação das formas, assim como a das ferramentas plásticas, é essencialmente antropológica e cultural”. Destarte, se o signo icônico atrai o leitor pela aparente “facilidade” de leitura, por outro lado, exige uma outra leitura, mais profunda, sempre ativadora do plano discursivo/situacional. São ícones incessantemente transformados em índices e símbolos, que precisam ser, além de reconhecidos / compreendidos, interpretados: é necessário recorrer à “significação segunda”, à conotação imagística.

A imagem de três meninos descalços, sem camisa, caminhando na mesma direção, registrada por cima de uma folha de jornal, quando cruzada ao título, aponta para vários sentidos. Primeiro, reforça uma característica relativa aos protagonistas da história (meninos magros), trabalhando no espaço da tematização, nomeando-os e caracterizando-os, numa relação ao mesmo tempo icônica e simbólica, pois se refere a seu aspecto físico, mas também provoca inferências a respeito de sua condição social e do valor ideológico que impregna os personagens. Soma-se a isso o diálogo com o texto bíblico, parodiando-lhe, através da semelhança sonora e da subversão: três reis magros por três reis magos (personagens que seguiram uma estrela a fim de encontrar o recém-nascido messias e presentear-lhe com ouro, incenso e mirra). A intertextualidade obtida reforça o fato de reis pressupor riqueza, altivez, nobreza, mas magros, pobreza, desvantagem social, principalmente ao ser aliada à imagem dos três meninos, um negro, um amarelo e um branco.

Ainda que a combinação desses dois termos (reis + magros), estabelecida numa relação sintagmática de subordinação altamente aglutinadora, pareça estranha semanticamente, ou paradoxal (reis/riqueza x magreza/pobreza), atentando-se para a relevância como um dos fatores que regem a textualidade, provoca-se um novo cálculo interpretativo que desfaz, no nível discursivo, essa incoerência superficial: a riqueza que caracteriza esses personagens magros transcende os valores materiais a que está ligado o significado literal dos vocábulos; pertence ao espiritual, está vinculada à nobreza de suas intenções e pertence ao sentido discursivo que emerge tanto da relação intertextual estabelecida com o texto bíblico, quanto da relação contextual estabelecida com o universo textual dos personagens (que perambulam pela cidade atrás da única luz ainda acesa após um trovão, indicando onde nascera o menino a quem vão presentear com o que há de mais precioso: paciência, esperteza e alegria — em vez de ouro, incenso e mirra, como no texto bíblico).

Kleiman (2000), ao insistir na importância do conhecimento prévio para a compreensão de textos, considera o saber a respeito do modo de organização (que ela denomina “conhecimento textual”, ou “conjunto de noções e conceitos sobre o texto”) parte desse conhecimento. Re-conhecer a estrutura textual incorre na própria construção do sentido, pois faz com que o leitor abrigue ou descarte hipóteses interpretativas: o leitor, portanto, deve utilizar, para isso, as estratégias enunciatórias de que trata Charaudeau (2001b). No texto em análise, vários elementos evidenciam o modo de organização narrativo que “consiste en un saber describir las acciones del mundo con la búsqueda de los distintos actuantes que en ellas intervienen” (op. cit., p. 16).

Na primeira página, a fórmula clássica “era uma vez” instaura, no nível discursivo, o mundo narrado e seus recursos próprios. A presença dos personagens é, a princípio, requisitada metonimicamente através de signos indiciais: um pé negro, outro branco e outro amarelo emergem, respectivamente, da África, da Ásia e da América, representadas em três globos terrestres. Esses signos assumem uma segunda natureza, simbólica, quando, a partir de inferências possíveis de acordo com o conhecimento de mundo do leitor, este interpreta as personagens como representantes das três raças de que se constitui a humanidade.

O ambiente apresentado a partir da segunda página caracteriza-se pela urbanidade, pelas ruas com calçamento, prédios, casas, bueiros, ratos, semáforos; por um espaço distorcido, deserto e impregnado de um cinza triste e sem vida: é o significante não-verbal que transborda de “sentidos” — sensações, através da percepção; significações, através da interpretação; emoções, através da identificação afetiva produzida pela combinação de signos.

O fato narrativo inicial, marcado pelo emprego do pretérito perfeito (“deu um trovão”), aliado à expressão adverbial (“naquela noite”) e ao emprego da terceira pessoa do discurso, não só dimensionam o tempo da narração, mas também mergulham o texto no distanciamento da delocução, ou do “discurso reportado”.

Em função da identidade dos protagonistas e das circunstâncias materiais do intercâmbio, o leitor, sujeito-interpretante, submete-se a uma relação assimétrica em relação ao autor, sujeito-comunicante desconhecido, que se apresenta apenas através do sujeito-enunciador no qual se transforma, já embutida a “máscara” (própria para essa função) de alguém muito próximo, que “adivinha” os pensamentos do leitor “virtual” a quem se dirige, numa interpelação simulada e subentendida através de estratégias enunciativas, como em “Na minha história, era chinês”(Figueyra e Nascimento, 1998: 6).

Sendo um texto produzido antes do momento de sua enunciação (embora seja preciso considerar que se alguém lê/conta para os outros a história, torna-se um co-enunciador, que inclui algo de sua interpretação pessoal e, portanto, novos signos podem ser acrescentados à enunciação primeira do texto) e monolocutivo (naquilo que se refere à impossibilidade de interferência do leitor na produção do texto, mas não na do sentido), todos esses recursos interpelativos, não “descartáveis” e bastante presentes na literatura infantil, são coadjuvantes na construção do sentido global do texto e altamente eficazes para promover a aproximação do leitor.

Da mesma forma, o registro coloquial, pela familiaridade, cativa o leitor. A ampliação plurissignificativa de algumas expressões populares, além de propiciar uma interação maior, provocam o aprofundamento da leitura, como no trecho: “E levou de presente, embrulhadinho, bem embrulhadinho, um saco cheio de paciência.” (op. cit., p. 7) A intensificação obtida pelo sufixo diminutivo na expressão do estado como se encontrava o presente oferecido, ratificada pela repetição dos termos e pelo advérbio, reforçam o cuidado com que a preciosa oferta fora transportada. A expressão “um saco cheio de paciência”, através da adjetivação que indica completude, maximização, demonstra a tentativa de dimensionar fartamente algo imensurável, ao mesmo tempo em que corrobora, com “saco cheio”, clichê que metaforiza a própria idéia de estar no limite da paciência, a necessidade de ser paciente.

Outros recursos discursivos são utilizados com o objetivo de aproximação entre o leitor, a história bíblica e a realidade atual via texto — como a cena final, na qual o menino é encontrado:

Debaixo da marquise, tia Maria, seu José e o menino não eram daquele mundo. Eram de histórias contadas, histórias de antigamente, tipo era uma vez. Histórias que os três reis magros nunca souberam direito.[…] Figura de mãe, figura de pai, figura de filho. Dava coisa pra pensar, mas pensar era muito esquisito. (Op .cit., p. 16 e 20-21)

Complementando a idéia veiculada pelo verbal, tem-se a imagem dos três meninos protagonistas junto a um casal adulto pobremente vestido e um bebê enrolado em retalhos coloridos, deitado numa caixa de papelão desmanchada. Essa imagem estabelece uma relação icônica com a realidade, no reconhecimento desses elementos através de uma parcela de conhecimento de mundo acionado; entretanto, o mesmo conhecimento de mundo coloca em ação o caráter indicial da imagem, quando notada a referência ao texto bíblico.

Uma família sem um abrigo digno, a vestimenta pobre, os nomes Maria e José e a visita dos três meninos são elementos facilmente reconhecíveis como constitutivos de nossa realidade por pertencerem à nossa experiência passada; por isso seu caráter icônico. O tratamento de “tia” e “seu”, freqüentes nos dias de hoje, assim como a caracterização dos meninos e a proteção tão-somente de uma marquise, são signos indicadores tanto da exclusão social, quanto da atualização da cena, agora composta por ícones representantes da realidade atual. No entanto, ao se aproximaram à cena do nascimento de Jesus — através de um outro tipo de reconhecimento por contigüidade, que depende da experiência presente, possibilitada pelo cálculo interpretativo engendrado pelo leitor na sua interação com o texto — esses elementos passam a revelar seu caráter indicial. Além dessa relação concomitantemente icônica e indicial, os mesmos elementos guardam um valor simbólico, que certamente influenciará o pensamento e a conduta do intérprete, preso ao ideal cristão de amor, solidariedade, esperança e confiança na providência divina.

O texto sincrético Três reis magros é, portanto, uma encenação composta por um rico sistema semiotizado, que abriga várias camadas de sentido, superpostas e interligadas, as quais despertam sensações, sentimentos e significações. Na convergência dos sentidos emergentes da organização sígnica, percebe-se a instrução do foco textual, baseado na temática da compaixão e revelador das misérias humanas.

No final da história

Ver o céu, as árvores, as pessoas; seus gestos, suas expressões; ouvir sua voz, o que dizem; apreender, incomodar-se, refletir, criticar; sentir, reter na memória; significar. Das impressões guardadas, expressar, relativizar, generalizar, opinar. Transformar. Esse é o movimento dinâmico da vida em sociedade, propiciado, sobretudo, pela capacidade inerente ao ser humano para dar sentido a tudo que vê e com o que (ou quem) se relaciona; é a oportunidade de influir no mundo e de ter sua subjetividade moldada pelo outro através da comunicação.

Por isso, junto à competência da linguagem postulada por Charaudeau, tão importante para a produção de sentido engendrada pelo leitor, faz-se essencial uma certa “competência para a significação”, desenvolvida desde a infância, em toda experiência vivida pelo homem. Ainda citando Freire, é a leitura de mundo — perceptiva, sensorial, intuitiva, impregnada de afetividade — contribuindo e se nutrindo da leitura da palavra (e do não-verbal); é a importância das experiências individuais e sociais para a produção de sentido, do texto, ou além dele.

A literatura infantil, como gênero textual, caracteristicamente analógica, integra universos simbólicos diversos e, com isso, “ensina” ao leitor a estabelecer variados tipos de relações, seja entre o verbal e o não-verbal, seja entre o texto e a realidade, seja entre o texto e o conhecimento de mundo que aciona. Além disso, as impressões suscitadas pela interpretação desse mundo fantasioso e expressivo, esteticamente bem cuidado, transformam o sentido-significado em sentido-emoção. E no espaço reservado entre o significar e o sentir, surge o prazer de ler.

Na tristeza da exclusão social, a alegria da compaixão: bons e maus sentimentos. O que vivem os personagens, vivem também os leitores. Na analogia dessas situações, realiza-se a conscientização dos problemas humanos. Na satisfação encontrada na leitura, na construção do sentido — inusitado, surpreendente, ou corriqueiro, tão humano, enfim — a razão hedonística de sua existência. É o prazer de ler, por causa do texto, por causa do sentido, por causa do sentimento, que vai conquistando o leitor, quando é competente para interpretar. Da interpretação, vem a consciência de mundo, o incômodo de saber que é preciso mudar (e acabar com a desigualdade, com a injustiça social). É a fruição, colocando o ser humano em conflito, problematizando sua existência, revalidando conceitos e transformando sua maneira de viver. Da leitura do livro para a leitura do mundo, finalmente, formar-se-á um leitor autônomo, capaz de ter prazer e de fruir; um cidadão com o poder de interpretar e reformular a sociedade em que vive.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Fernando Afonso de. Linguagem e humor: comicidade em Les frustés, de Claire Bretécher. Niterói: EdUFF, 1999.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Lisboa (Portugal): Edições 70, 2001.

BÍBLIA SAGRADA. 86ª ed. São Paulo: Ave Maria, 1992.

CHARAUDEAU, Patrick. Langages et discours. Paris: Hachette, 1983.

––––––. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992.

––––––. Une analyse semíolinguistique du discours. In: Langages, nº 17, Les analyse du discours en France. Paris: Larousse, Mars, 1995.

––––––. Análise do discurso: controvérsias e perspectivas. In: Fundamentos e dimensões da análise do discurso. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso – FALE/UFMG, 1999.

––––––. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In: MARI, Hugo; MACHADO, Ida Lúcia; MELO, Renato de (orgs.) Análise do discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso – FALE/UFMG, 2001a.

––––––. De la competencia social de comunicación a las competencias discursivas. In: Revista latinoamericana de estudios del discurso – ALED, Venezuela: Editorail Latina, volume 1, número 1, p. 7-22, agosto de 2001b.

ECO, Humberto. Tratado geral de semiótica. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

FIGUEYRA, Cláudia e NASCIMENTO, Denise (Ilustr.). Três reis magros. São Paulo: Paulinas, 1998.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 45ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e significação. São Paulo: Cultrix, [s/d.].

JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papirus, 1996.

KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor. Campinas: Pontes, 2000.

PEIRCE, Charles S. Semiótica. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2003.

SANTÀNNA, Affonso Romano de. Ler o mundo: tudo é texto. Não é só quem lê um livro que lê. In: O Globo, [s/d.].

VALENTE, André. A linguagem nossa de cada dia. Apresentação de Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Leviatã, 1997.

...........................................................................................................................................................

Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos