Sangue
nas
vestes
a
performance
trágica
da
arte
sob
os
véus
de Salomé
Marcelo
Santos (UERJ)
O
começo.
Quando
algo inicia,
um
movimento
que se põe no
espaço.
Exatamente
entre a
estática e a
vertigem
próxima,
ali
onde o
movimento tem
início e parece
falhar. O
prenúncio se apresenta
como
impressão,
como
esboço, tateando uma
semelhança
para se
constituir
ainda. No
começo do
drama de Oscar Wilde, a princesa Salomé
assemelha-se à
lua e,
através dessa
semelhança, pode
ser esboçado o
drama: “Olhai a
lua. A
lua tem o
aspecto
estranho. Parece uma
mulher saindo do
túmulo. Parece uma
mulher
morta. Parece
que está à
procura de
mortos” (WILDE, 2002: 16), diz o
pajem de Herodíade. A
imprecisão desse
começo, do
prenúncio, é o
perfume da
imprecisão da
jovem. Salomé é
virgem, a
moça
inexperiente
que ousa
nos
seus
passos de
dançarina.
Preso na
atmosfera da
imprecisão e da
impressão
sobre o
que virá,
tudo se dá
como
prenúncio e
presságio. Salomé se apaixona
por
aquele
que traz a
voz do não-provado: Iokanan.
Pois
ele promete, detém a
potência das
profecias. Iokanan é o
Precursor, é o
que vem
antes. A
jovem princesa Salomé se enamora
por essa
fala de
antes de
tudo. A
voz do
Precursor ressoa no
palácio de Herodes e
toca Salomé. O
futuro na
voz do
profeta seduz a
jovem
como se a
promessa pudesse
ser cumprida
imediatamente
sem
marcas
sobre
seu
corpo
casto.
Por
onde saem as
promessas é
por
onde deve
entrar o
desejo da princesa: a
boca de Iokanan: “É
pela tua
boca
que estou apaixonada” (WILDE, 2020: 33). A
boca
vermelha de Iokanan verte as
profecias
terríveis
que pressagiam o
banho
vermelho
em
que mergulhará o
palácio de Herodes. Salomé é
levada,
pela
embriaguez da
profecia, às
gradações de
tom da
palavra: da
cor da
boca de Iokanan, ao
vermelho do
vinho, ao
vermelho das
vestes de Herodes, ao
fatídico
vermelho do
sangue
sobre o
qual a princesa dançará. A
palavra prenunciadora de Iokanan
toca
todos os
signos do
drama. Na
obra de Oscar Wilde
tudo é pressentido: o
bater de
asas do
anjo da
morte, o
aspecto
lunar
como
prenúncio do
dia, o
vermelho das
flores: “Que vermelhas
são essas
pétalas! Parecem
manchas de
sangue na
toalha.” (WILDE, 2002: 57), diz Herodes, instalando
o
tom
que anuncia a
orquestração do
drama a
que assistiremos.
Por ouvirmos essa
orquestração, na
armadura musical das
repetições, no ritornello
lingüístico, sabemos
que
algo se avizinha,
como se o
novo se instaurasse
em
por
vir, anunciado
pela
repetição ritmada das
palavras. A
mulher
que
dança pressente o
movimento
em
cada
passo
que dá,
em
cada
gesto.
Tudo
que sai da
sua
boca tem a
instabilidade do
movimentado, marcado
pelo
ritmo.
Sem
escutar os
anúncios da
tragédia,
ela empreende
seu
peculiar
ritmo de
drama.
Salomé nunca
deixa de inspirar, apesar do fatalismo que recobre sua figura, já anunciada como
trágica, uma graça. Sua graça de princesa, atrativo da corte de Herodes, seduz
quem a olha. Do mesmo modo que ela se assemelha à lua, no seu aspecto lunar de
beleza que evoca a morte; sua graça feminina, infantil, de virgem, não deixa de
estar construída na bifrontalização do desejo: o perigo e o fascínio. Salomé
“assemelha-se a uma princesa cujos pés são pombinhas brancas”. (WILDE, 2002:
16). Ela nunca é alguma coisa, mas parece alguma coisa. Talvez
seus passos fugidios de dançarina não permitam qualquer fixidez de aspecto. É
através dessa graça, dessa bênção e maldição para os olhos, que se articulam os
pedidos de Salomé. Pela primeira vez utiliza a graça para que o Jovem Sírio
deixe-a ver Iokanan. O jovem deixa-se seduzir até a morte pela candura lasciva
da princesa, medida pela estranheza do aspecto noturno: ela tem o “aspecto
estranho” da Lua: “Parece uma princesinha cujos olhos são de âmbar. Através das
nuvens de musselina, sorri como uma princesinha” (WILDE, 2002: 28). É a
estranheza gerada por esse corpo gracioso, infantil e ao mesmo tempo sedutor,
que detona a transgressão: a transgressão de quem se põe a vê-la, e a que ela
provoca. Tanto mais forte é o desejo em torno dessa figura quanto mais aparece
marcada a candura da princesa. É o lugar em que a perversão se instaura, aliás,
atmosfera tão cara ao fin-de-siècle decadente. A decadência moral,
inspirada pela figura mítica de Salomé, atravessa as artes do final de século
europeu. E é como problema estético que ainda observamos essa presença, aquém de
uma análise das figuras, mas permanecendo nessa posição anterior, no seu
prenúncio, para pensarmos ainda suas aparições. Para isso é necessário
compreender porque a decadência moral se abriga nas artes. O que pode a arte
fazer com o homem, fazer pelo homem? O artista é um decaído a quem só resta o
cárcere? Retomar exatamente este mito é tomá-lo como pensamento sobre a arte. O
fato de Salomé ser uma figura composta dos meandros da sedução e ser, além de
tudo, dançarina, parece indicar que uma arte seja, talvez, o único instrumento
crítico para compreender outra. Pensar, assim, a escrita como dança. O poder
sedutor da arte se encontra na dança de Salomé: uma arte que faz perder a
cabeça. Esse poder deve ser conferido à escrita cada vez que esta retorna ao
mito de Salomé. Como valor estético permanece aquilo que pode “sugerir” o temor
e a sedução. O crítico de arte Gabriel Mourney, no seu comentário às
representações do mito, “...privilegia obras pouco conhecidas, quadrinhos
esquecidos, mais secretos, mais sugestivos.” (DOTTIN-ORSINI, 1996: 131-132).
Nesse âmbito estão as Salomés indecifráveis de Gustave Moreau, e as ilustrações
de orientalismo estilizado de Aubrey Beardsley, que tanto desagradaram Oscar
Wilde, quando elas ilustraram a primeira tradução de seu drama para o inglês, em
1894. Essa “sugestão” é levada a cabo — tornada mortal — exatamente pelas graças
de anjo que se desenham no corpo de Salomé, como aponta Dottin-Orsini:
Excitante, [Salomé] aparece
sem
generosidade na
luxúria, e
sua
crueldade
para
com o
homem é a de uma
virgindade
sem
pudor. É dotada da
ferocidade
ingênua da
criança
mal-educada, da
criatura não-civilizada — do
selvagem.(DOTTIN-ORSINI, 1996: 141).
A
força e a
ferocidade esboçam-se nesse
aspecto
estranho, na
graça
que
só pode
convidar à
desgraça. O
pedido de Salomé
não está desvinculado da
sua não-civilidade. O
que Salomé pede
em
troca de
sua
dança sacia
um
capricho
que fará
cair o
reinado do tetrarca. Inflamada
pelo
primeiro
amor, Salomé faz
sucumbir e sucumbe a esta
primeira
vez, à
inexperiência das
sensações,
aquém da
razão.
Ela
mata e morre do
que
nunca provou, está no
prenúncio das
paixões;
mas, na
gramática do
corpo, a
primeira
vez é a
última,
única e
insaciável
vez: “Ah
Como
te amei!
Ainda
te
amo, Iokanan.
Só
amo a ti...Tenho
sede da tua
beleza. Tenho
fome do
teu
corpo. E
nem o
vinho,
nem as
frutas podem
saciar o
meu
desejo”. (WILDE, 2002: 68).
O
mito da
dançarina
fatal
remonta ao
mito bíblico.
Lá, a
filha de Herodíade
não tem
seu
nome mencionado.
Ela é a “filha”, a “moça”,
ou,
simplesmente, “ela”.
Apenas
nos
evangelhos
apócrifos aparece
seu
nome,
já o tornando
proscrito.
Sua
figura
mesmo fez “...surgir uma
antiguíssima
tradição
popular, a de
anexar aos
textos
breves do
evangelho interessantes variações.”(DOTTIN-ORSINI,
1996: 128). Muitas
vezes essa
tradição igualou o
nome da
mãe ao
nome da
filha, acentuando o
fatalismo da
personagem. E
ambos os
nomes passaram a
significar a
mesma
figura.
Certamente, não-mencionada, a
figura de Salomé, no
mito bíblico, mantém-se na
retaguarda do
martírio de
São João
Batista.
Porém, retomado
pelo
sedutor
nome, é o
mito da
dançarina
que encobre
todo o
episódio. No
século XIX, a
volta de Salomé se faz
pela
arte.
Seu
nome silenciado é
propício
para
que as
tramas sejam urdidas. Nesse não-dito, no
anúncio da
dança
cujo
desfecho se fez
trágico, desfilam as
mortais dançarinas do
século XIX: a Salammbô e Herodíade, de Gustave
Flaubert; as Salomés de Oscar Wilde, de Théodore de Banville, de Pierre Louÿs,
de Jean Lorrain, de Gustave Moreau; as Herodíades de Mallarmé, de Keller, do
dândi Montesquiou; e as Salomés do
século XX, de Apollinaire, de Carlos Saura, de Ken
Russell, de Almodóvar.
Muito da Salammbô de Flaubert circula no
fluxo do
drama de Oscar Wilde. O
aspecto
lunar
já assombrava o
romance de Flaubert: “Fora
a
lua
que a tornara
tão
pálida, e
qualquer
coisa de
divino a envolvia
como
um
vapor
sutil.” (FLAUBERT, [s/d.]: 16), escreve o
romancista. No
momento
em
que Salammbô aparece, a
sintaxe de Flaubert
ganha
um
novo
tom,
como diz Pierre Moreau: “Aos
acentos de
ode, de
idílio
ou de
epopéia se une o
sentido
dramático da
mise-en-scène”
(FLAUBERT, 1970: 22). É
fundamental
notar os
acentos da
dramatização
em Flaubert
que, de alguma
forma, estão
presentes na
orquestração da
peça de Wilde.
Depois de
reconstituir Cartago
através do
amor
trágico
entre Matô e Salammbô, Flaubert, quatorze
anos
depois, gera
sua
versão da
cena bíblica no
conto “Herodíade”, de 1876. No
mesmo
ano, Gustave Moreau apresenta
seu A
Dança de Salomé,
quadro descrito, literariamente,
pelo
personagem de Huysmans
em Às
Avessas,
romance de 1884. Mallarmé,
em 1881,
toma o
mito de Salomé
para uma
peça
poética, denominada de Herodíade,
originalmente arquitetada
como
tragédia. Nesta
peça, o
poema
ganha a
forma da princesa e a
pureza
fatal da
jovem transmigra
para a
preocupação
estética do
poeta, constituindo-se o
poema peça-chave
para
entender
como o
mito da
dançarina apresenta,
antes de
tudo,
um
problema
estético: a
dança empresta à
poesia de Mallarmé a
exigência do
ritmo poético.
Ainda convida a
dançar a
menina Salomé
nos
diversos
poetas
que retomam o
mito bíblico
como
inspiração: “Ela
brinca,
ela ri
com
seus
ares
graciosos, / E a
juventude explode,
então, maravilhada.”, diz os
versos de Banville.
Plena dessa
graça
infantil, a Salomé do
poeta Apollinaire
leva
todos a uma
dança
febril, “superior a
dos
serafins”,
sobre a
morte.
Anunciada pelas
epístolas, a Salomé de Menotti del Picchia vem, na
virada dos
anos 30, no Brasil,
dar uma
face
cosmopolita ao
mito da
dançarina.
Mesmo
assim, encarnando
mais uma
vez a
ancestral femme fatale. “Essa
menina está virando
um
monstro!”, comenta a
mãe de Salomé no
romance. (PICCHIA, [s/d.]: 92).
O nome de
Salomé e sua letra sibilante. O “esse” ondulado em duas aberturas opostas. Uma
abaixo, outra acima, grafando no corpo da letra a acrobacia da dança na qual não
se define o começo nem o fim de seu movimento. Percorrê-lo é se abismar no
limite de seu corpo. Articulação entre morte e dança, anúncio fatal da dança. O
corpo coberto de arabescos da Salomé de Moreau é o signo da sinuosidade, do
labirinto em que os sentidos se perdem. As curvaturas da letra que dança em dois
semicírculos abertos, opostos. A letra representa na grafia uma dança retorcida.
Seu som surdo, de sussurro, de sopro, prenuncia as cenas e o ritmo da tragédia.
Primeiro, a sensação musical do nome: Salomé. O som sibilante anuncia a entrada
de Salammbô:
Le palais s’éclaira d’um seul
coup à sa plus haute terasse, la
porte du millieu s’ouvrit, et une femme, la
fille de Hamilcar, elle-même,
couvert de vêtements noirs, apparut sur le
seuil.[O
palácio esclarece de
um
só
golpe
em
seu
mais
alto
terraço, a
porta do
meio se abre e uma
mulher, a
filha de Amílcar,
coberta de
vestes negras, aparece
sobre o
solo].
[grifos
nossos] (FLAUBERT, 1970: 55).
O
som
gasoso predomina nas
apropriações do
mito, incorporando as espiralações dos
vapores, na
atmosfera embriagadora
por
onde
passa Salomé. Do
silvo da
serpente, ao
solo ensangüentado, à
dança dos
sete
véus. A
linha
seguida
por Flaubert é a
espiral,
assim pontua Pierre Moreau,
espiral
que aparece na Salomé de Gustave Moreau, de 1875.
Sobre o
corpo desta, desfilam
linhas sinuosas,
tatuagens
que se desenham na
pele, tornando a
figura de Salomé
mais
fora do
tempo,
imemorial, simbólica. A
letra
sinuosa é o “sursum”,
símbolo
antigo,
indicador de
que o
canto deve
subir de
tom. Prenuncia a
agudeza da
orquestração pensada
por Flaubert e
por Wilde: “orquestração
de
perfumes e
hálito.”
(FLAUBERT, 1970: 27).
A indecisão de
dar o primeiro passo, de começar a dança, mostra a falibilidade de representar a
dança na escrita. Portanto, os torneios da forma, de algum modo, fazem o leitor
acompanhar a dança da escrita, que, então, se constitui como prenúncio. A
performance de Salomé está encarnada na performance da escrita. Em Wilde, a
polifonia contorna o momento da dança dos sete véus, envolvendo o
leitor-espectador no movimento e nas suas vertigens. Cercada por contrastes de
tons, a música que se ouve nessas palavras, nesse jogo de canto e contra-canto
(“Dançai/ Não danceis”) culmina no silêncio das vozes orquestradas, grafado pela
rubrica teatral: “Salomé dança a dança dos sete véus” (WILDE, 2002: 59). Depois,
tudo deve ser cumprido, a palavra de Herodes deve ser cumprida, a tragédia se
cumpre. Tudo sucumbe à graça da dança de Salomé. Como representar a dança na
escrita?A palavra funciona, no arranjo das Salomés, como prenúncio de sua
significação, ainda é sensação. Um ritmo lancinante se imprime quando des
Esseintes se embriaga dos quadros de Gustave Moreau. Nesse ponto, os olhos do
leitor acompanham os olhos dançantes do personagem, quando a prosa de Huysmans
convida a, fatidicamente, dançar:
Ela está
quase nua; no
ardor da
dança, os
véus se desataram, os
brocados escorregaram; está
vestida
tão-só de
materiais de
ourives e de
minerais
lúcidos;
um
gorjal
lhe
aperta o
talhe
qual fosse
um
corpete e, à
semelhança de
broche
soberbo, uma
jóia
maravilhosa dardeja
clarões na
ranhura dos
seus
dois
seios;
mais
abaixo, nas
ancas, o
cinto
que a
rodeia cobre-lhe a
parte
superior das
coxas
sobre as
quais pende
um
gigantesco
pingente de
onde flui
um
rio de
rubis e de
esmeraldas;
por
fim,
sobre o
corpo desnudo,
entre o
gorjal e o
cinto, o
ventre
convexo, escavado
pelo
umbigo
cujo
orifício parece
um
sinete gravado
em
ônix, de
tons
leitosos e de
cores róseas. (HUYSMANS, 1987: 88).
A
língua,
diante da
brutalidade e da
graça concentradas numa
só
figura, põe-se a
retorcer, a
fazer
malabarismos
lexicais e
sintáticos, ficando na
mesma
instabilidade
que
cerca o
movimento do
corpo na
dança. A
sintaxe
já pressagia o
fim
trágico, a
queda, o perder-se, o desatar-se, o romper-se.
Para
ser
dança, a
escrita
demanda todas as
forças do
ritmo. No
caso de Salomé, essas
forças
são extremas,
pois se
trata de uma
dança
que
leva à
desgraça. Evocando o
mito, o
romance de Menotti Del Picchia
muda de
tom, adquire
um
tom
agudo, no
momento da
dança:
Salomé dançava no
círculo das
árvores
mudas.
Pouco a
pouco o
delírio dos
movimentos transportou-a ao
passado. Uma
forte
carga de
angústia fazia-a
sofrer,
soltar
pequenos
gritos.
Seus
ouvidos estavam
cheios de
satânica
música
interior, a
música de Strauss, aquela
música da
qual conhecia
todos os
compassos, e
que a exaltava
até o
paroxismo
como
quando dançava
em Paris. (PICCHIA, [s/d.]: 170).
Como
olhar o
movimento? Deve-se
olhar
para
ele? A
todo
instante essa
advertência de
não
olhar. Cai-se na
desgraça?
Aquilo
que cai, o
véu
sobre os
olhos dos
homens, desnorteia a
certeza. O
que se apresenta, apresenta-se velado.
Envolta
em
véus, Salomé provoca o
olhar
para descobri-la
com os
olhos. Desvelá-la é uma
promessa.
Mas é uma
promessa de
morte.
Descoberta, a
vida cessa.
Esse
cessar se aproxima
pela
retirada dos
véus.
Mas
nem S.
Mateus,
nem S.
Marcos,
nem S. Lucas,
nem
outros
evangelistas, demoram-se
nos
encantos delirantes, nas
ativas
depravações da
dançarina.
Ela permanecia
apagada, perdida, misteriosa e
vaga, na
névoa
longínqua dos
séculos,
inapreensível
para os
espíritos
precisos e
terra-a-terra,
acessível
somente aos
cérebros excitados, aguçados... (HUYSMANS, 1997:
85-86).
O
nome velado da
dançarina ressoa
apenas
nos
escritos
marginais e nas
artes.
Como
flor
maldita, “lírio”
virginal e
violento, Salomé é
amplamente lapidada, constituindo-se
como
figura
estética
por
excelência.
Tal ambivalência,
sobretudo, é uma
questão de
arte:
encanto,
fascínio e
veneno da
alma? Aparecida
como
nome,
ainda
assim Salomé
guarda
um velamento:
seus
véus.
Enquanto ocultam
seu
corpo, resguardam dos
olhares a
beleza e a
iminente
tragédia.
Por
um
véu, o
amor de Salammbô e Matô foi obscurecido e
tornado
trágico.
Suas
vestes
são de uma
só
cor, a
cor do
sangue,
que encobre
seu
véu
quando
dança
sobre o
chão ensangüentado do
palácio de Herodes. O
desvelamento é o
prenúncio da
tragédia: “Não se deve
olhá-la.
Vós a olheis
demasiado” (WILDE, 2002: 8), adverte o
Pajem. O
desnudamento tem a
ferocidade
que realça os
instintos dos
espectadores.
Mesmo
um
rei
empenha
sua
palavra
diante da
promessa de
nudez. O
desvelamento é,
também, uma
profecia da
carne.
E então o
último véu a sublinhar a semi-nudez do corpo gracioso. O drama que prenuncia,
justificando, a tragédia que virá. Para Salomé, o trágico é a possibilidade do
primeiro e próximo passo. No trágico, os dois coincidem na linha finíssima entre
morte e vida. Todas as vezes que renasce, o mito de Salomé imprime a potência de
movimento a ser cumprido na língua, a alternância entre mover e parar que
desenha o espaço. A dimensão da tragédia, para Wilde, é também uma alternância:
entre o amor e o ódio. “Mas, tal como eu, também teve uma terrível tragédia em
sua vida, embora inteiramente diferente da minha. Quer saber qual era? Ei-la: em
você, o ódio sempre foi mais forte do que o amor”, declara Wilde, em seu
cárcere, a Alfred Douglas. (WILDE, 1998: 52). O trágico moderno tem essa
abertura de sensações no espaço, instável como a dança.
Referências bibliográficas:
APOLLINAIRE,
Guillaume. Poèmes. Paris: Gallimard, 1956.
DOTTIN-ORSINI,
Mireille. A
Mulher
Que
Eles Chamavam
Fatal:
Textos e
Imagens da Misoginia Fin-de-Siècle.
Tradução de
Ana Maria Schreber. 1ª ed.
Rio de
Janeiro: Rocco, 1996.
FLAUBERT, Gustave.
Três
Contos.
Tradução de Manuel Freitas
Costa e Flávio Moreira da
Costa. 1ª ed.
Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1981.
––––––.
Salammbô. Paris: Éditions Gallimard, 1970.
––––––. Salambô.
Tradução
revista
por Marques Rebelo.
Rio de
Janeiro: Ediouro, [s/ d.].
HUYSMANS, J.-K.
Às
Avessas.
Tradução de José Paulo Paes.
São Paulo:
Cia. das
Letras, 1987.
MALLARMÉ, Stéphane. Poésies. Paris: Hachette, 1977.
PICCHIA, Menotti
del. Salomé.
Rio de
Janeiro: Ediouro, [s/d.].
WILDE, Oscar.
De Profundis e
Outros
Escritos do
Cárcere.
Tradução de Júlia Tettamanzy e Maria Ângela
Saldanha Vieira de Aguiar.
Porto
Alegre: L&PM, 1998.
––––––. Salomé.
Tradução de Renata Maria
Parreira
Cordeiro.
São Paulo: Landy, 2002.
...........................................................................................................................................................
|
Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos
|