ARGUMENTAÇÃO NA ESCOLA
A IMPORTÂNCIA DOS VALORES ARGUMENTATIVOS
Sigrid Gavazzi (UFF)
Neste trabalho, pretendemos descortinar, para os colegas docentes, um dos universos em que a argumentação pode ser trabalhada em sala de aula – os “lugares argumentativos”, correspondentes ao VALOR predominante no arcabouço argumentativo escolhido pelo interlocutor, na manifestação de sua opinião.
Em decorrência, limitaremos nosso campo de atuação em uma única proposta de ensino, ou seja, em meio a inúmeros projetos para o trabalho com redação/argumentação – variados, importantes e válidos –, escolheremos o referido vetor e dele falaremos neste artigo.[1]
INFLUENCIANDO O OUTRO
Só é ouvido/lido aquele que é considerado competente para tal – e isso envolve não só as pessoas mais próximas ao argumentador (o ¨auditório particular¨) mas também a sociedade como um todo, isto é, aqueles que – um dia – podem vir a lê-lo/ouvi-lo (e com ele concordar). Assim, para que uma argumentação se desenvolva, há necessidade de se ter apreço pela adesão do outro, ponto de partida para que qualquer convencimento seja aceito. Acordos (ou pré-acordos) são estabelecidos, dando lugar aos valores que serão evocados para que haja concordância e a conseqüente se completará, assim, de forma desejável.
Portanto, quando alguém redige um texto argumentativo-dissertativo, preocupa-se sobretudo com sua platéia. Deve conhecê-la bem para evocar imagens que provoquem e instaurem credibilidade. O que ela pensa? Como reagirá diante dessa ou daquela asserção? O que se deve enunciar e o que se deve omitir? Ou, ainda, que valor deve preponderar para que os argumentos se fortaleçam e realmente convençam o outro?
Por conseguinte, quando se conhecem as pessoas a quem o discurso é dirigido, pode-se, pelo menos, optar por uma escolaridade valorativa que as faça pensar X e não Y, por exemplo. Em decorrência, ensinar ao aluno – pelo menos – uma ESCALA VALORATIVA BÁSICA servirá, no mínimo, como FERRAMENTA para o encadeamento do raciocínio. Durante o processo, portanto, o professor trabalharia, concomitantemente, com as possibilidades de leitura e de interpretação de texto, aliadas à multiplicidade de formas de redigir.
Outra vantagem recairia no próprio estatuto dos valores, que dependem de circunstâncias transitórias (afastando-se aí das chamadas “verdades universais”), vinculam-se ao meio social, variam no tempo e no espaço. Além disso, há o componente pessoal: todo ser humano faz julgamentos (que considera ¨próprios¨) e os hierarquiza de forma peculiar, em função de sua cultura, de sua(s) ideologia(s) e de suas experiências pessoais.
Por fim, saber COMO e QUANDO usar tais julgamentos/valores na enunciação constituiria exercício cognitivo-emotivo salutar que nenhuma escola, a nosso ver, pode deixar de oferecer. Afinal, todo indivíduo – todo aluno, no caso – gosta de falar para ser ouvido, gosta de escrever para ser apreciado.
EM CENA, OS VALORES
Para que se instaurem os valores, recorremos ao que a Retórica Clássica denominava “lugares” (ou ¨valores¨) – premissas básicas (e mais gerais) que intervêm para justificar a escolha do redator, espécie de “arsenal” de que se pode lançar mão para embasar a opinião/tese principal.[2]
São seis (06) os lugares/valores com que trabalharemos:
Valor da quantidade
Compreende-se aqui que “algo é melhor do que o outro por razões quantitativas”, ou seja, bens mais duráveis são melhores do que os menos duráveis; mais dinheiro é preferível a menos dinheiro; fatos que servem a um maior número de pessoas mostram-se mais adequados do que particulares; o todo é favorecido em detrimento da parte, entre outros. Pelos parâmetros da FREQÜÊNCIA, o normal – por ser o habitual – é melhor, bem como o que se pode provar (o provável) e o de maior facilidade de consecução.
A quantidade estaria, também, no âmago dos fundamentos da democracia: vence aquele que arrebanha mais votos. Não é sem razão que, no lugar da quantidade, a presença de NÚMEROS e PERCENTAGENS afigura-se como relevante. Vejam-se os exemplos:
DIGA NÃO AO CELULAR, VOVÓ !
Mente quem diz que falar ao celular dirigindo é mania da garotada. Um levantamento feito pelo presidente do DETRAN indicou que só este ano 1.200 mulheres acima de 61 anos foram flagradas e multadas, dirigindo enquanto conversavam – certamente com algum netinho. (O Globo, 31.11.2003)
Valor da qualidade
Ao contrário do anterior, contesta a verdade do número: valoriza o raro, o único, o precioso, o singular, enfim, o diferente.
CELTA 1.4 custa 1.460 a mais que as versões ‘mil’ – mas vale cada cento extra. (O Globo, 26.11.2003)
O lugar da qualidade também singulariza pessoas em suas atividades na esfera em que atuam. Um caso recente é o do conturbado afastamento de uma senadora do partido governista. Para muitos, uma traidora; para outros, uma idealista, perseverante em seus ideais de partido.
Assim, na entrevista abaixo, o órgão de imprensa é a ela favorável e a justificativa da entrevistada (para suas atitudes ou opiniões) baseia-se na comparação com a figura materna bem como nos próprios percalços a que foi obrigada a enfrentar: na época pareceram ¨maiores¨ do que ela, se a senadora não se colocasse – qualitativamente – melhor do que eles.
JORNALISTA – Ao justificar a determinação com suas idéias, você recorre sempre à figura de sua mãe. Como é ela?
SENADORA – Minha mãe é uma referência muito importante na minha vida. Filha de trabalhadores rurais, ficou órfã aos 14 anos e criou os onze irmãos “no cabo da enxada”, como falamos no interior. Meu pai morreu quando eu tinha apenas três meses. Tivemos uma vida difícil. Passei a vida toda tendo que engolir meus medos para enfrentar obstáculos que, ás vezes, ameaçavam esgotar minha capacidade de reação. (O Globo, 26.11.2003)
Também muito utilizado em discursos argumentativos, apresenta-se como relevante “arma” para o contraste: valora-se um (por sua qualidade, sem preço), mas se desvaloriza o outro (pelas razões contrárias). É deste modo que o cronista Artur Xexéo, por exemplo, manifesta seu descontentamento pela substituição da Velha Guarda da Portela (do RJ) – cachê alto, mas qualidade ímpar – pelos Gaviões da Fiel (de SP), em apresentações pelo Brasil, subsidiadas pelo Ministério do Desenvolvimento:
A única justificativa (....) foi que o cachê cobrado pelo grupo paulista era menor do que o do grupo carioca. Só o Ministério parece não saber que, por menor que seja o cachê das Gaviões, ele sempre será caro, enquanto, por maior que seja o da Portela, sempre será barato. (O Globo, 07.12.2003).
Lugar/valor da ordem
Predomina, na ordem, o anterior (ao posterior), o primeiro (aos que vêm depois), a causa (aos efeitos) ou os princípios (aos fins). É o lugar favorito no âmbito esportivo, já que constitui o próprio fundamento das competições, ou em qualquer atividade que requeira certa concorrência. Validam-se, por ele, grandes invenções e/ou descobertas. Como exemplário, observem-se os excertos:
O título de Pequena Notável pode estar trocando de mãos. Depois dos feitos inéditos de Daniele Hypólito – a primeira brasileira a conquistar uma medalha de ouro em etapa da Copa do Mundo – é a vez de Daiane dos Santos brilhar e ir colecionando façanhas. A ginasta repetiu ontem o resultado do Campeonato Mundial de ginástica artística nos Estados Unidos e conquistou a medalha de ouro no exercício de solo, em Stuttgart. (Jornal do Brasil, 30.11.2003).
O lugar/valor da ordem é também muito utilizado como elo sinalizador na hierarquia discursivo-textual. Assim, limita partes do discurso e estrutura seu encadeamento (¨em primeiro lugar¨, ¨em segundo¨, ¨logo depois¨, ¨então¨ são índices recorrentes) É a esse recurso que o estilista Armani, mundialmente famoso. recorre para falar, em entrevista, da opção (quase fortuita) pelo mundo da moda.
Armani – Estava decidindo qual rumo dar à minha carreira profissional. Enquanto decidia, me ofereceram um emprego numa loja de departamentos. Primeiro, como vitrinista e, depois, como comprador de roupa masculina. Foi aí que descobri meu real interesse pela moda¨. Logo depois, veio o primeiro desfile, um sucesso, claro (Jornal do Brasil, 10.12.2003)
Lugar/ valor do existente
Este valor, por sua vez, afirma a superioridade do que existe, do que é atual, do que é real, em relação ao possível, ao eventual ou ao impossível. Observe-se:
DA UNIÃO SURGE O EMPREGO
Muitos teorizam, poucos realizam. Este lema, pregado na parede de uma cooperativa de costureiras, instalada num galpão junto a uma favela da Ilha do Governador, serve para resumir a história de um desafio: como criar postos de trabalho em tempos de economia estagnada, falta de dinheiro para investir e altas taxas de desemprego? A maioria se limita a criticar os governos que se sucedem e não conseguem fazer o país deslanchar. Mas há gente que, sem renunciar à crítica, resolve agir, em vez de esperar por espetáculos de crescimento caindo do céu. (Israel Tabak, JB, Cartas dos Leitores, 03.04.2004.)
Lugar / valor de pessoa
Vincula-se à dignidade da pessoa, ao seu mérito, à sua autonomia. Esse valor também confere prioridade ao que é feito com cuidado, ao que requer algum (ou muito) esforço.
Um trecho da carta do Ministério da Saúde (O Globo, 09.12.2003) corporifica o referido valor: critica veementemente a posição da Igreja Católica contra o uso de preservativos e assegura:
É papel do estado garantir a saúde física. Democraticamente, não podemos ignorar a multiplicidade das orientações sexuais e nem deixar de respeitar o direito que as pessoas têm de manifestá-las e exercê-las
Ou, ainda, as reiteradas perdas humanas (e materiais) em determinados lugares do RJ apelam, falam da importância do valor. Afinal, “pessoa” compreende tudo o que é “intrínseco ao homem e à própria humanidade”.
FATALIDADE
A cena se repete com macabra regularidade. Toda grande enxurrada transforma parte da Baixada Fluminense num pantanal. Morrem pessoas, muitas ficam sem teto. Não falta, também, a clássica revoada de autoridades que para lá acorrem como se fossem resolver o problema de uma vez por todas. Mera coreografia. As enchentes se sucedem porque os rios continuam assoreados, porque obras de saneamento são esquecidas nos desvãos burocráticos – ou, melhor, porque as verbas destinadas ao cidadão são peremptoriamente desviadas, não se sabe para onde.
Lugar / valor da essência
Trata de indivíduos como representantes bem caracterizados do que se considera a “essência”. Concede-se, em decorrência, um valor superior aos indivíduos, enquanto representantes bem caracterizados de determinado modelo, materializações de dado padrão (positivo ou negativo, não importa). O excerto abaixo justificaria a assertiva:
ZICO SERÁ SEMPRE UMA LIÇÃO DE VIDA
Profissionalismo de Zico é uma referência para jogadores
(Caderno de Esportes, O Globo. 02.01.2004)
CONCLUSÃO
Numerosas são as situações de comunicação, tanto na vida privada quanto na profissional, cuja finalidade é induzir um interlocutor ou interlocutores a adotarem um determinado comportamento ou a compartilharem uma determinada opinião. Uma vez que postulamos que o homem, ao se expressar através da língua, manifesta, explícita ou implicitamente, o seu ponto de vista, acreditamos na necessidade de a escola possibilitar ao educando o reconhecimento dos valores veiculados pelos discursos de outrem, bem como pelos seus próprios, levando-o a assumir efetivamente o seu papel de cidadão consciente, crítico e atuante.
Sendo assim, cabe ao professor, dentre outras atribuições, organizar ações que tornem os alunos aptos a desvelarem os implícitos nas práticas de linguagem – incluindo intenções, valores, preconceitos, intenções, explicitação de mecanismos de desqualificação de posições, entre outros itens.
Por isso, acreditamos no trabalho com atividades, em sala de aula – utilizando-se de todos os subgêneros (relatos, crônicas, receitas, bulas, anúncios, títulos, poemas, entrevistas, charges, tiras, entre outros) a fim de proporcionar ao educando as ferramentas lingüístico-argumentativas necessárias para um leitor crítico, competente e capaz de ler nas entrelinhas.
Uma tentativa para tal foi a escritura deste trabalho – atrair o mestre para um estudo desvinculado da “argumentação clássica” do tipo “introdução, desenvolvimento e conclusão” ou, ainda, “tese + premissas” (suficientemente explicitadas, a nosso ver, em compêndios vários, todos relevantes para o ensino). Se conseguirmos que o professor pelo menos nos tenha lido, já teremos dado um passo à frente na transmissão e democratização do conhecimento acadêmico e universitário, ora voltado para os bancos escolares. Afinal, assim como não há pesquisa sem aplicação ao ensino, também não haverá real entendimento das mensagens sem as devidas (múltiplas e polivalentes) interpretações veiculadas por textos que circulam socialmente, relacionados à época em que foram escritos ou falados (em cotejo com a época atual), uma vez que a atualidade é fundamental para garantir a leitura social.
BIBLIOGRAFIA
Abreu, António Suárez. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. 5ª ed. São Paulo: Ateliê, 2002.
Bonini, Adair. “O ensino de tipologia textual em manuais didáticos de segundo grau para a língua portuguesa”. In: Trabalho de Lingüística Aplicada, (32): jan./jun.1998.
Brasil. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental; língua portuguesa / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
––––––. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio/ Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: MEC/SEF, 1999.
Charaudeau, Patrick. “Para uma nova análise do discurso”. In: Carneiro, Agostinho Dias (org.). O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996.
Garcia, Othon Moacyr. Comunicação em prosa moderna. 21ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
GAVAZZI, Sigrid & eduardo, Silvana. “Lugares/valores argumentativos no ensino médio”. In: PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino & GAVAZZI, Sigrid. Da língua ao discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
Koch, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.
–––––– & Travaglia, Luiz Carlos. Texto e Coesão. 9ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.
Maingueneau, Dominique. Análise de textos em comunicação. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.
––––––. Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
Marcondes, Beatriz; Menezes, Gilda; Toshimitsu, Thaís. Como usar outras linguagens na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2002.
Marcuschi, Luiz Antônio. “Gêneros textuais: definição e funcionalidade”. In: Dionísio, Ângela Paiva et al. (orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.
Perelman, Chaïm & Olbrechts-Tyteca, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Rojo, Roxane (org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC; Campinas: Mercado de Letras, 2000.
[1] Daí, cotejos entre teorias argumentativas outras encontrar-se fora do âmbito deste trabalho.
[2] Entretanto, o termo “lugares” pode soar de forma estranha para o alunado. Daí, neste artigo, optamos por utilizar o item lexical “valor” – dele decorrente, pois os valores formam os “lugares¨-em equivalência sinonímica. A opção é, pois, de ordem metodológica e didática.
........................................................................................................................................................... |
Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos |