O papel dos enunciados
de exercícios de gramática
na construção de conhecimento
sobre a língua materna

Fernanda Gomes Coelho Junqueira (PUC-Rio)

 

Introdução

Muitos pesquisadores da área de língua portuguesa apontam para a ênfase exagerada nos exercícios de gramática: privilegiamento do estudo de uma metalinguagem técnica em detrimento do estudo da linguagem; exigência de memorização de regras, definições e nomenclatura. O ensino de língua materna acaba se transformando em estudo de gramática, com conteúdos geralmente desvinculados dos reais interesses e necessidades dos alunos.

Simões (1999) nos coloca que as aulas de língua portuguesa, por estarem submetidas a uma prática gramaticalista – na qual os fatos lingüísticos sistematizados desconsideram as variações diacrônicas, diatópicas, diastráticas e diafásicas – seguem um percurso de classifique, enumere, cite, analise, etc., de forma a não privilegiar a interação verbal ou oral de maneira satisfatória.

O resultado deste tipo de ensino é a aversão à língua, com a qual os alunos se interagem cotidianamente com o mundo em que vivem. Não é novidade ouvirmos expressões do tipo “português é muito difícil”, “não sei português”, “neste país todo mundo fala errado”.

O ensino meramente gramatical “nada acrescenta ao aluno no exercício de elaboração das idéias e muito pouco auxilia na formação do pensamento através da língua”. (Ribeiro, 2001).

Tem se questionado a eficácia do estudo de gramática no aprendizado da língua e sido enfatizado que esta, por ser uma entidade viva, deve ser analisada e ensinada como tal. (cf. Luft, 1985).

Bakhtin (1992) aponta que a língua como sistema estável e abstrato é útil apenas para determinados fins teóricos e práticos, pois “essa abstração não dá conta da maneira adequada da realidade concreta da língua”.

Se o objetivo das aulas de língua portuguesa, concebendo a linguagem como lugar de processo de interação, é o de desenvolver a competência comunicativa dos falantes, ampliando seu repertório lingüístico, a escola deve priorizar atividades reais de uso efetivo da língua, nas quais os exercícios esporádicos de língua propriamente ditos passem a ter preponderância frente àqueles exercícios metalingüísticos de memorização de rótulos e reconhecimento de estruturas.

No presente trabalho, estamos focalizando enunciados de exercícios de gramática, através dos quais procuraremos demonstrar: 1) a concepção de linguagem, o tipo de ensino, o tipo de gramática que subjazem estes enunciados; 2) o nível de operação mental exigido em cada um deles.

A formulação destes exercícios é a atividade mais reveladora da maneira pela qual os professores trabalham com a gramática, já que por meio dela, depreendem-se as bases, os princípios, as finalidades, enfim, a natureza da atividade lingüística. (cf. Neves, 1999).

A concepção de linguagem do professor é de importância vital na determinação do objeto de estudo. Se a linguagem for considerada um sistema fechado de signos arbitrários, teremos um ensino de gramática baseado em aspectos lingüísticos formais. Se a linguagem for considerada como um processo de interação, o ensino de gramática será pautado pelo uso social da língua nas mais diferentes situações de interação comunicativa.

 

Aspectos teóricos

A Língua como fenômeno social de interação verbal

Na concepção de linguagem de Bakhtin, a língua é vista com um fenômeno social, histórico e ideológico, no qual “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial”. (1991: 95) Para ele, a verdadeira essência da linguagem é a interação verbal, realizada pela enunciação. Aprender a falar significa aprender a construir enunciações.

A língua, em seu uso prático, está vinculada ao seu conteúdo ideológico, sendo assim, seus signos são variáveis e flexíveis, apresentando um caráter mutável, histórico e polissêmico.

Bakhtin defende uma abordagem histórica e viva da língua, de forma que o sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto. Em outras palavras, o enunciado é de natureza social e a prática viva da língua se dá por meio da comunicação verbal concreta.

Na verdade, a língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar. É apenas no processo de aquisição de uma língua estrangeira que a consciência já constituída – graças à língua materna – se confronta com uma língua toda pronta, que só lhe resta assimilar. Os sujeitos não “adquirem” sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência. (Bakhtin, 1981:108)

Na concepção de Bakhtin, a realidade concreta e dinâmica da língua não permite que os falantes se interajam com a linguagem como se esta fosse um sistema abstrato de norma. A língua está em constante evolução por meio das interações verbais dos interlocutores.

Por conceber o homem como um ser histórico e social, compreende a linguagem sob a perspectiva da situação concreta, considerando a enunciação e o contexto. É no contato entre a língua e a realidade concreta, via enunciado, que a palavra pode expressar um juízo de valor, uma significação, uma expressividade. O significado é construído no discurso e essa construção envolve os participantes, a situação imediata ou o contexto mais amplo.

O enunciado é uma atividade real de comunicação verbal, delimitado pela alternância dos sujeitos falantes e que termina por uma transferência da palavra ao outro. (cf. id. ibid., p. 293). O aspecto mais importante da constituição do enunciado é a possibilidade de resposta que ele proporciona, uma vez que ele se elabora em função do outro.

Todo enunciado é um diálogo, não somente a comunicação verbal face a face, mas todo tipo de comunicação verbal (cf. Bakhtin, 1981: 123). Assim, os enunciados de exercícios de gramática, objeto de estudo da presente pesquisa, constituem-se em elementos de comunicação verbal. Conforme Freitas (2000: 135) assinala, o que importa é que o enunciado compreenda uma relação entre pessoas. Segundo Bakhtin (1992: 137), “toda enunciação é um diálogo, mesmo as produções escritas, num processo de comunicação ininterrupto”.

A concepção bakhtiniana de diálogo ultrapassa a noção de conversa, por considerá-lo um abrangente conjunto de condições moldadas em qualquer troca real entre duas pessoas. (cf. Clark e Holquist, apud Mazzillo, 2000: 35).

 

A formação dos conceitos científicos

Vygosty distingue os conhecimentos construídos através da experiência pessoal, concreta e cotidiana das crianças – conceitos espontâneos – e aqueles apreendidos por meio do ensino sistemático na escola – conceitos científicos. Os primeiros são construídos a partir da observação, manipulação e vivência direta. Os segundos referem-se aos conhecimentos sistematizados na escola.

A partir de suas investigações sobre o processo de formação de conceitos, Vygotsky conclui que os conhecimentos científicos não são absorvidos já prontos através de um processo de compreensão e assimilação. Ao contrário, a formação de um conceito é resultante de um processo ativo e criativo. Um conceito

...é um ato real e complexo de pensamento que não pode ser ensinado por meio de treinamento, só podendo ser realizado quando o próprio desenvolvimento mental da criança já tiver atingido o nível necessário. (...) A experiência prática mostra também que o ensino direto de conceitos é impossível e infrutífero. Um professor que tenta fazer isso geralmente não obtém qualquer resultado, exceto o verbalismo vazio, uma repetição de palavras pela criança, semelhante à de um papagaio, que simula um conhecimento dos conceitos correspondentes, mas que na realidade oculta um vácuo. (Vygotsky, 2000: 104)

Ao declarar a impossibilidade de um conceito ser transmitido ao aluno através de atividades mecânicas e descontextualizadas, Vygotsky chama a atenção para o importante papel da escola no desenvolvimento intelectual do aluno. Para ele, a sala de aula deve ser o lugar, por excelência, de desafio, de estímulo, apresentando ao aluno sempre novas possibilidades de atingir estágios mais elevados de desenvolvimento. Sob a perspectiva vygotskiana, a escola exerce um papel fundamental na formação de conceitos, sobretudo os científicos, visto que tal formação depende não só da atividade mental do indivíduo, mas também do contexto no qual se insere. Desafiar, estimular, exigir, problematizar, orientar – eis a tarefa do educador sob o ponto de vista de Vygotsky.

Embora o sujeito participe ativamente na construção dos conceitos científicos, estes são influenciados pelo adulto. Por considerar a construção do conhecimento um processo dialógico, Vygotsky considera imprescindível a participação do adulto no processo de aprendizado do aluno. “Com o auxílio de uma pessoa, toda criança pode fazer mais do que faria sozinha (...) O que a criança é capaz de fazer hoje em cooperação, será capaz de fazer sozinha amanhã”. (Id. ibid., p. 129). Chama a atenção para a necessidade de se utilizar a zona de desenvolvimento proximal, acreditando que a interação entre professor-aluno cria oportunidades de aprendizagem significativa.

Passemos agora a examinar os diferentes tipos de conhecimento presentes no contexto escolar.

 

Tipos de conhecimento

Edwards e Mercer (Apud Moita Lopes, 1996) identificaram dois tipos de conhecimento construídos na interação em sala de aula: o conhecimento ritualístico ou processual e o conhecimento de princípio.

O primeiro tipo envolve um conhecimento imediato, no qual o aluno tem que encontrar a resposta certa para o professor; encaixa-se na estrutura discursiva iniciação-resposta-avaliação. É um conhecimento arbitrário, voltado a resolução de um problema ou de uma tarefa proposta pelo professor dentro da metodologia de ensino. Por não ser elaborado significativamente, não possibilita a autonomia intelectual do aprendiz de maneira a utilizá-lo nos mais diferentes contextos.

No conhecimento de princípio, o professor propicia a autonomia do aluno ao priorizar o ensino para competências (cf. Moretto, 2001). Segundo constatou Moita Lopes (1996: 99), este tipo de conhecimento

...está relacionado à compreensão subjacente ao conhecimento ritualístico, ou seja, é orientado para a compreensão de como o conhecimento processual funciona na aprendizagem, em vez de ser visto como um tipo de conhecimento arbitrário que fornece a resposta certa ao professor.

Em suma, o conhecimento ritualístico ou processual prioriza a memorização e a assimilação mecânica, sem contextualização ou significado. O conhecimento de princípio possibilita ao aluno apropriar-se de um conhecimento e, a partir dele, estabelecer relações significativas com outros conhecimentos já elaborados, ampliar e transformar sua estrutura conceitual.

O professor comprometido com o conhecimento de princípio tem em mente que ensinar não é levar o aluno “ a armazenar resultados na mente, e sim ensiná-lo a participar do processo que torna possível a obtenção do conhecimento. (...) Saber é um processo, não um produto”. (Bruner, 1966:75)

 

A Taxionomia de Bloom

A taxionomia de Benjamim Bloom (Apud Moretto, 2001) considera a complexidade das operações mentais necessárias para alcançar determinados objetivos, ou seja, adota o critério da complexidade das operações mentais, por meio das quais os alunos lidam com situações complexas no processo ensino-aprendizagem.

Os objetivos, nesta taxionomia, apresentam-se organizados em diferentes níveis de crescente complexidade, a saber:

– (re)conhecimento: esta é uma operação de pouca complexidade, cuja habilidade mental básica compreende a identificação das propriedades fundamentais do objeto de conhecimento. As operações neste nível são necessárias às demais operações mentais em outros níveis, contudo, atividades de aprendizagem apoiadas apenas neste nível devem ser evitadas.

– compreensão: as operações mentais neste nível pressupõem o reconhecimento, mas exigem uma identificação da essência do objeto de conhecimento, através da solicitação de descrição ou de demonstração de compreensão – indicação dos elementos que dão significado ao objeto de conhecimento.

– aplicação: este nível é caracterizado pela transposição da compreensão de um objeto de conhecimento, a partir de uma situação/problema.

– análise: neste nível o aluno deve ser capaz de operar mentalmente por meio da análise do todo para o entendimento das suas partes.

– síntese: nesta operação mental que é inversa à análise, o aluno deve precisar as características de um ‘todo’ por meio da síntese de suas partes constituintes.

– julgamento (avaliação): representa o nível de maior complexidade, no qual é exigido um juízo de valor após a realização de análises e/ou sínteses.

 

Aspectos metodológicos

A presente pesquisa insere-se na tradição qualitativa e interpretativa de dados, considerando os enunciados de exercícios de gramática.

Tais exercícios foram coletados durante a observação de aulas em turmas de 5a a 8a séries do ensino fundamental em duas escolas da cidade do Rio de Janeiro, sendo uma particular e outra municipal.

Na escola particular, foram retirados da apostila utilizada pelos alunos, a qual é elaborada pela professora da série ou pela equipe de português. Na escola municipal, a pesquisadora copiou-os do quadro, no momento em que eram passados aos alunos pelas professoras. Como os alunos da escola particular não têm que copiar exercícios do quadro, eles fazem bem mais exercícios do que os alunos da escola municipal. Do material coletado, foram selecionados 78 enunciados para compor este estudo.

Como o foco dessa pesquisa centra-se nas concepções do professor que permeiam os enunciados de exercícios de gramática, tomamos como pontos norteadores para a nossa pesquisa: as contribuições de Vygotsky quanto à construção de conceitos científicos, as concepções de linguagem e de vozes de Bakhtin, a taxionomia de objetivos educacionais de Benjamim Bloom e os tipos de construção de conhecimento apontados por Edward & Mercer.


 

Análise dos dados

Os 78 enunciados analisados contemplam as seguintes áreas do programa de língua portuguesa, sendo que exercícios de sintaxe apresentaram maior ocorrência:

Morfologia: formação de palavras (derivação); substantivo; adjetivo; grau do adjetivo; artigo; advérbio; verbo (modo e tempo); verbos de ligação; pronomes oblíquo e indefinido.

Sintaxe: termos essenciais da oração: sujeito, oração sem sujeito, ,predicado verbal e nominal, predicativo, classificação dos verbos quanto à predicação; termos integrantes da oração: objetos direto e indireto; termos acessórios da oração: adjunto adnominal, adjunto adverbial, aposto, vocativo, concordância nominal; período composto: oração absoluta, oração coordenada sindética.

Morfossintaxe: diferenciação entre advérbio e locução adverbial; identificação do núcleo do sujeito e classe gramatical correspondente; identificação do adjunto adnominal e classe gramatical correspondente; oração absoluta/adjetivo.

Estilística: figuras de linguagem (metáfora/metonímia); discurso direto e indireto; estilo nominal.

Observe os gráficos a seguir:


Figura 1: Enunciados de exercícios de gramática por áreas – 5a a 8a série


Figura 2: Enunciados de exercícios de gramática da
escola particular por área – 5a a 8a série


Figura 3: Enunciados de exercícios de gramática da
escola municipal por área – 5a a 8a série

As figuras 1, 2 e 3 mostram a ênfase dada aos exercícios de sintaxe e morfologia em ambas as escolas. Atividades que envolvem estilística são verificadas apenas na escola particular, conforme indicado na figura 2.

Passemos agora a analisar os enunciados, considerando os níveis de complexidade propostos por Bloom (Apud Moretto, 2001).

Foram encontradas 5 das 6 operações mentais apontadas por Bloom, embora os níveis de reconhecimento e de compreensão tenham ocorrido com maior freqüência. A incidência das operações mentais de síntese e de julgamento (avaliação) foi inexpressiva.

Em determinados enunciados, contempla-se apenas o nível de reconhecimento, em outros este aparece em conjunto com o nível de compreensão.

A partir dos gráficos abaixo, podemos verificar os níveis de complexidade mais recorrentes nos enunciados analisados, a saber: compreensão, reconhecimento e aplicação.


Figura 4: Nível de complexidade contemplado em cada enunciado 5a a 8a série

 


Figura 5: Nível de complexidade contemplado em cada
enunciado na escola particular – 5a a 8a série

Figura 6: Nível de complexidade contemplado
em cada enunciado da escola municipal – 5a a 8a série

A figura 5 revela que, na escola particular, vários níveis de complexidade são abordados pelos enunciados, embora haja uma predominância bem vantajosa dos níveis de reconhecimento, compreensão e aplicação. Já na figura 6, podemos verificar que, na escola municipal, os enunciados abordam apenas os níveis de reconhecimento e compreensão.

Vejamos as palavras representativas de cada nível de complexidade utilizadas nos enunciados:

– Nível de Reconhecimento

Palavras-chaves: retirar, identificar, sublinhar, circular, envolver, separar, completar, dar, substituir

Exemplo: Identifique os verbos de ligação do texto.

– Nível de Compreensão

Palavras-chaves: escrever, fazer, usar, apontar, preencher, explicar

Exemplo: Explique a metonímia das frases abaixo.

– Nível de Aplicação

Palavras-chaves: recontar, criar, formar, passar, comparar, transformar, classificar

Exemplo: Crie orações absolutas seu sujeito.

– Nível de Síntese

Palavras-chaves: o que aconteceu...?; que recursos você usou...? e você (...) faria o quê?

Exemplo: O que aconteceu com os verbos nos novos predicados verbais criados por você?

– Nível de Julgamento

Palavra-chave: justificar

Exemplo: Justifique a classificação dos verbos acima.

O nível de análise não foi observado nos dados coletados.

Esta primeira parte da nossa análise sugere que os exercícios de gramática apresentam a língua como um produto pronto, estático, uma vez que não possibilitam ao aluno testar e construir hipóteses, refletir sobre os fatos lingüísticos.

Ao valorizar em demasia os níveis de reconhecimento e de compreensão em seus enunciados de gramática, o professor permite que o aluno apreenda que só há uma resposta certa: o aluno se vê submetido à passividade imposta pelo exercício e à uma metodologia de ensino que prioriza a memorização.

Ao ficarem limitados quase que somente a estes dois níveis, os exercícios passam ao aluno uma falsa idéia sobre a língua e sobre o estudo que fazemos dela. Que falsa idéia seria essa?

Vejamos os seguintes enunciados, cuja escolha não foi aleatória, e sim devido à freqüência com que apareceram nas salas de língua materna, onde a pesquisa foi realizada

– Classifique os verbos quanto à predicação. Reescreva os objetos, se possível, e os classifique.

– Transforme o sujeito em indeterminado (com o verbo na 3a pessoa do singular).

– Mude a frase abaixo para os tempos verbais pedidos.

– Indique os sujeitos, retire seus núcleos e dê classe gramatical. Em seguida, classifique os sujeitos.

– Indique a classe gramatical do grupo de palavras que constitui esses adjunto adnominais.

– Dê a função sintática dos termos sublinhados.

– Qual é o núcleo do predicado em “O cachorro estava no tapete da sala”?

Podemos observar que tais enunciados, por priorizarem exercícios voltados às regras da língua escrita formal, transformam o estudo da língua em estudo das gramáticas teórica e normativa, podendo gerar aversão à língua e abafar a expressão livre e autêntica do aluno.

Os enunciados não permitem troca de informações, confronto de pontos de vista diferentes, construção de hipóteses sobre o que seja a língua, ou seja, não possibilitam a construção de conhecimento de princípio. (cf. Edwards & Mercer, apud Moita Lopes, 1996)

Discussões e Conclusões

Os enunciados deixam transparecer uma visão de gramática concebida como um manual de “regras de bom uso da língua a serem seguidas por aqueles que querem se expressar adequadamente”, ou seja, a gramática normativa (cf. Travaglia, 2001) e uma visão de linguagem como sendo expressão do pensamento. Tal concepção de linguagem desconsidera: o modo como cada texto é usado em diferentes situações de interação comunicativa, quem fala, para quem se fala, em que situação se fala, para que se fala (Id. ibid.).

Concomitantemente a essa concepção de linguagem e de gramática, os enunciados explicitam o tipo de ensino de língua materna privilegiado pelos professores: o ensino prescritivo (cf. Halliday, Mc Intosh e Strevens, 1974). Este tipo de ensino procura levar o aluno a dominar a norma culta e a variedade escrita da língua. Para tanto, procura impor aos alunos padrões de atividades lingüísticas tidos como corretos e aceitáveis, visando a correção formal da linguagem. Em outras palavras, o professor dá aulas de português para desenvolver a competência gramatical ou lingüística de seus alunos e assim, os enunciados acabam refletindo a maneira como a língua é ensinada: por meio de orações isoladas em meio a atividades mecânicas de repetição e de identificação de fragmentos lingüísticos.

Os enunciados, ao estarem vinculados ao ensino prescritivo, valorizam a visão do certo e do errado, favorecendo apenas o conhecimento ritualístico ou processual.

O ensino prescritivo não deve ser superestimado às expensas do ensino produtivo, uma vez que inviabiliza a obtenção de uma competência comunicativa mais abrangente e não dá espaço para que os processos interlocutivos ocupem lugar preponderante no ensino-aprendizagem da língua. São nestes processos que o aluno apreende novos recursos expressivos e, por conseguinte, novas categorias de compreensão do mundo.

Tais enunciados reduzem a sala de aula a um espaço de reprodução e correção, acreditando que o conhecimento gramatical melhoraria o desempenho dos falantes no uso da língua.

A partir dos enunciados analisados, percebe-se que a língua é tratada como um sistema estável e abstrato de signos, desconsiderando sua realidade concreta e sua dinamicidade.

Os alunos “aprendem” a língua através de atividade mecânicas e descontextualizadas, voltadas às regras da variedade escrita padrão, gerando neles a ilusão de que nada sabem sobre seu instrumento de expressão mais pessoal e, pior ainda, solidificando os mitos de que “Português é difícil” e de que “neste país todo mundo fala errado”.

Nessa perspectiva, o professor é visto não como o interlocutor de seus alunos e mediador na construção de conhecimentos, e sim o corretor de exercícios de escrita.

Pela análise dos enunciados, podemos dizer com Luft (1985):

Em matéria de aulas de linguagem, a escola continua rotineira e bitolada: acúmulo de definições, regras e exceções, classificação de palavras, listagem de anomalias e irregularidades, conjugações inusitadas, análises, muita análise sintática. (grifo nosso)

O ensino da língua deve ser pensado como um processo de prática da linguagem, cujo objetivo maior deveria ser o de aumentar as possibilidades de uso exitoso da língua. Seria muito mais interessante utilizar efetivamente e concretamente a língua do que apenas conhecer suas regras e nomenclaturas. Passar a maior parte do tempo reconhecendo e classificando fragmentos lingüísticos é, a priori, inútil. Não se aprende a língua por meio de exercícios mecânicos, mas sim através de práticas significativas e contextualizadas.

 


 

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1981.

––––––. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BRUNER, J. S. Uma nova teoria de aprendizagem. Rio de Janeiro: Bloch, 1966.

FREITAS, Maria Teresa de A. Vygostky & Bakhtin Psicologia e Educação: um intertexto. São Paulo: Ática, 2000.

HALLIDAY, M. A. K.; McINTOSH, Angus & STREVENS, Peter. As ciências lingüísticas e o ensino de línguas. Petrópolis: Vozes, 1974.

LUFT, C. P. Língua & Liberdade : Por uma nova concepção de língua materna. Porto Alegre: L&PM, 1985.

MAZZILLO, T. M. F. M. O diário como um espaço de reconstrução profissional: um estudo de caso. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000.

MOITA LOPES, L. P. Oficina de Lingüística Aplicada. Campinas: Mercado das Letras, 1996.

MORETTO, V. P. Prova – um momento privilegiado de estudo – não um acerto de contas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

NEVES, M. H. de M. Gramática na escola. São Paulo: Contexto, 1999.

RIBEIRO, O. M. Ensinar ou não a gramática na escola: eis a questão. Linguagem & Ensino. Pelotas, vol. 4, n° 1, p. 141-157, jan./jun. 2001.

SIMÕES, D. M. P. Metodologia do ensino da gramática sob bases semióticas. Linguagem & Ensino, Pelotas, vol. 2, n°.1, p. 107-122, jan./jun. 1999.

TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de Gramática no 1o e 2o graus. São Paulo: Cortez, 2001.

VYGOTSKY, L.S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

 

...........................................................................................................................................................

Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos