Prefácio
Italo Moriconi (UERJ)
A publicação da presente compilação da fortuna crítica de Samuel Rawet é contribuição inestimável aos estudos voltados para a crônica e para a história da literatura brasileira no século recém-terminado. Com esta matéria-prima, novos interesses de pesquisa poderão delinerar-se nos campos dos estudos culturais, da história da vida intelectual brasileira, da história da nossa vida literária. Trata-se de trabalho ciclópico de busca, identificação e ordenamento de fontes, visando à formação de um arquivo contemporâneo. Trabalho que vem sendo realizado há anos por Francisco Venceslau dos Santos, na UERJ, no âmbito do Grupo de Pesquisa/CNPq “Vida literária e história cultural”, co-coordenado por mim e pela Profa. Marília Rothier Cardoso, da Puc-Rio.
E a “causa” não poderia ser mais justa: recuperar a figura de Samuel Rawet. Por sorte, por coincidência, o trabalho de Francisco Venceslau com esse escritor converge com o renovado interesse que por ele tem demonstrado a nova geração de críticos universitários. Pode-se efetivamente dizer, com Francisco Venceslau, que vivemos “tempos de resgate da obra do autor de “Crônica de um vagabundo”. A compilação aqui apresentada traz de maneira viva a história da recepção da obra de Samuel Rawet, revelando questões e dilemas que marcaram os debates literários brasileiros sobre prosa nos anos 50 e 60 e depois, dos anos 90 para hoje.
Acompanhando a própria relação de Rawet com a cena da vida literária, vemos que essa história da recepção de sua obra é intensa nos anos 60 e início dos 70, mas declina bastante desde a segunda metade dessa década até a morte do autor em 1984. A redescobera de Rawet será posterior à sua morte e se dará já no âmbito da crítica unversitária. Nessa trajetória, o esforço documental de Francisco Venceslau acaba por produzir uma narrativa renovada sobre a vida literária brasileira nos anos 50 e 60, por um lado, ao mesmo tempo que coloca o jornalismo de rodapé dessa época em sinergia com a nova linguagem acadêmica tanto de hoje quanto da época estruturalista, nesta sob o estímulo da inesquecível Profa. Dirce Côrtes Riedel. Foram alunos de Dirce Riedel que se encarregaram da primeira recepção universitária da obra de Samuel Rawet.
Neste início de século 21, é hora de voltar aos arquivos e às pesquisas de fontes, desnaturalizando tudo aquilo que pensávamos saber sobre tempos recentes ou quase recentes, buscando construir as narrativas renovadas, capazes de corrigir erros, de preencher lacunas de informação e sobretudo de atualizar modelos de compreensão e de enunciação já porventura em processo de congelamento ou exaustão. Francisco Venceslau enfrentou o desafio. Voltando-se para Samuel Rawet pelo viés da fortuna crítica e da história de sua recepção, inclusive pela crítica universitária, Venceslau chega ao grupo de Café da Manhã da virada dos anos 40-50 e chega à Revista Branca, que como periódico exerceu seu papel na cena dos anos 50. É tocante o modo como o presente livro nos traz de novo nomes tão caros à literatura brasileira enquanto vida vivida: Assis Brasil, Renard Perez, a própria Dinah Silveira de Queiroz, dentre outros, inclusive os mais jovens que são incorporados pelo menos espiritualmente ao grupo difuso, como uma Judith Grossmann.
Com este material recolhido e organizado por Francisco Venceslau, surge diante de nós a faceta coletiva do trabalho literário como labor e oficina, valorizando-se o dia- a-dia e as tentativas gloriosas ou falhadas de personagens dados como secundários da história literária. Onde se lê secundários, leia-se: marginalizados pela narrativas oficiais, canônicas. Abordar esses grupos meio esquecidos pelos esquemas naturalizados em narrativas muitas vezes lacunares ou desatentas, de repente pode elevar o status de cada autor individualmente, obrigando o profissional de letras a operar releituras. Da releitura, pode surgir a paixão cult.
Mas no caso de Samuel Rawet nunca houve dúvidas quanto a ser ele muito mais que simnplesmente um mediano e estimável operário da escrita. Rawet jamais precisaria da vida literária para conquistar um lugar de destaque nas narrativas da história literária contemporânea. Ele é que sozinho pode levantar toda uma vida literária, como de resto deixa mais que provado o material aqui publicado. Rawet é grande escritor e ponto. Nunca houve titubeios na crítica mais antenada quanto a isso, embora se questionassem no início suas liberdades “vanguardistas”, inerentes a uma literatura intimista mergulhada nas condicionantes da arte de ponta do século.
Hoje está em voga indagar a judeidade na obra de Samuel – e o leitor encontrará aqui os textos críticos contemporâneos que sustentam essa abordagem, obviamente legítima. Pessoalmente, me atrai muito em Rawet a expressào bruta de uma linguagem inacabada, o famoso tema do caráter meio “estrangeiro” do português utilizado por ele. Escrita à base de pinceladas grossas, como em contos de Kafka ou em narrativas judaicas de tipo popular, a frase de Rawet nos surpreende a cada passo com poesia marginal, poesia de quem olha para as coisas a partir de um “fora” radical, no exercício de uma sensibilidade exacerbada ao extremo. Cada boa frase é farpa delicada, na poética de Rawet.
Em muito boa hora Francisco Venceslau nos traz de volta, com base no entorno, mas todo inteiro, o perfil desse escritor verdadeiramente cult.