Ceildes da Silva Pereira
Rosenilda Evangelista Pacífico
Sandra Sales de Oliveira
Trabalho apresentado ao professor José Pereira da Silva na disciplina Morfossintaxe da Língua Portuguesa, na Pós-Graduação da UFAC, como requisito de avaliação.
Rio Branco -Ac, Maio de 2001
Dedicamos este trabalho à Professora Doutora Luísa Galvão Lessa por todo seu empenho e dedicação ao curso de Pós-Graduação desta instituição e por nos ter cedido, gentilmente, o corpus do Centro de Estudos Dialectológicos do Acre – CEDAC - para a feitura deste trabalho.
Visando aprofundar o estudo dos processos formadores de palavras no português, propomo-nos reunir um inventário de expressões e formas lexicais da linguagem acreana, mais especificamente a linguagem do seringueiro dessa região, o qual é reconhecidamente próprio e peculiar.
Para tanto utilizamos o corpus do CEDAC – Centro de Estudos Dialectológicos do Acre –cedido gentilmente pela coordenadora do mesmo, profª Drª Luísa Galvão Lessa. A pesquisa ora referida segue os preceitos da Dialectologia Social, Geografia Lingüística, Lexicografia, Lexicologia, Semântica e Lingüística Geral, dentre outras.
Baseamo-nos no acervo do Projeto CEDAC, observando os informantes de diferentes lugares, faixa etária e sexo. Assim, apresentamos um breve panorama lingüístico do homem acreano, descrevemos o seu falar para mostrar a feição da língua Portuguesa na região do Acre e como se dá a formação das palavras, demonstrar que o homem segue uma gramática internalizada, para expressar, em harmonia com o meio, as necessidades do LER e do DIZER do mundo que o circunda.
GLOSSÁRIO DE PALAVRAS RELATIVAS AO CAMPO SEMÂNTICO: O SERINGUEIRO E SEU UNIVERSO PARTICULAR (corpus do CEDAC).
pauta. sf. trato,pacto.
marcela.sf. planta medicinal,semelhante ao boldo.
entijelar. v ato ou ação de colocar tigelas.
bóia.sf. variante de comida.
resume. sm. variação de regime,regimento, modo de viver.
apartação. sf.. variação de repartição, divisão de cômodos.
susto.sm. diz-se de uma doença em crianças recém-nascidas.
manga.sf. pequeno desvio na estrada de seringa no qual o seringueiro, após tê-lo feito, retorna ao mesmo lugar.
colocação sf. parte limitada do seringal.O mesmo é constituído de várias colocações.
oito. sf.. pequeno desvio na estrada de seringa, cujo formato é em forma de oito.
estrada de porta.sf. seringueira que fica perto da casa do seringueiro.
esterada de leite. sf. o mesmo que estrada de seringa, seringueira que produz leite.
torar.v. cortar caminho, fazer atalho.
estrada estrada de centro. sf. seringueira que fica no centro da mata.
estrada de recurso. sf. denominação dada às estradas de seringa que já foram cortadas, mas que ainda têm seringueiras nativas a serem exploradas.
estrada bruta. sf. diz-se da estrada de seringa que ainda não foi cortada. O mesmo que estrada virgem.
fecho. sm. Denominação dada ao ponto onde se unem e se fecham duas estradas.
capemba. sf. utensílio usado para jogar o leite da seringa sobre a borracha durante a defumação.
traço.sm. tipo de corte superficial feito na casca da seringueira.
fazer muage – fazer ar de corajoso, decidido
dar o rodo – dar a volta
embocar – variante de emborcar
empausar – ato ou ação de rodear as seringueiras com paus
enrodar – fazer a volta nas estradas de seringa
topar- deparar-se com; encontrar-se com alguém
abrir as estradas – iniciar o corte de seringa, devastar
encauchar – cobrir com caucho(espécie de leite)
embicar – ato ou ação de fazer bica na seringueira
testar o animal – ação de animar-se para o namoro
tomar- levar, ser tomado pela chuva
aviar – ser rápido, ágil
bolar – fazer em bola; tornar a borracha em bola
desembotir – ato ou ação de retirar a tigela da árvore de seringa
embotir – ato ou ação de introduzir a tigela na madeira
entrepessar – ato ou ação de colocar a trepessa (pequena escada)
quebrar a estrada – interromper o corte de seringa
empaiolar – pôr no paiol
encoivarar – pôr em coivara
cortar em bandeira – fazer o corte na seringueira semelhante a uma bandeira
torar – cortar caminho, fazer atalho
PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE VERBOS E SUBSTANTIVOS NO LÉXICO DO SERINGUEIRO ACREANO
Tentaremos, aqui, ainda que superficialmente, examinar alguns processos de formação vocabular no contexto do seringueiro acreano, uns se dão por derivação e analogias, outros, por sinapsia. O material que utilizaremos pertence ao corpus do projeto CEDAC (Centro de Estudos Dialectológicos do Acre) onde observamos que o acervo lexical do seringueiro das diversas regiões acreanas é formado, em sua maioria, a partir da necessidade de comunicação. Os processos formadores de tal acervo, no entanto, não são estranhos às palavras já fixadas em nosso idioma.
Para Evanildo Bechara a criação de palavras para atender às necessidades culturais e da comunicação são chamadas de neologismos, que penetram na língua por diversos caminhos. O primeiro deles é mediante utilização dos elementos já existentes no idioma (prefixos, sufixos,palavras) como meio de revitalizar o léxico da língua.
Vários exemplos temos de palavras formadas por derivação, a formação se dá por analogia a uma palavra primitiva, o que é bastante comum no português.
O verbo embicar é exemplo de palavra formada por um prefixo e um sufixo, que atrelados a um radical, completam-lhe o sentido. Confira:
embicar = em + bic(a) + ar
O radical bic que originou-se do substantivo bica ( já existente na língua portuguesa) deu origem a uma nova palavra feita por analogia. O verbo embicar tem, aqui, o mesmo significado da palavra que o originou. Compare:
bica = fonte natural
embicar = ato ou ação de fazer bica na madeira de seringa
Outros exemplos:
encauchar = em + cauch +(o) + ar ( caucho = árvore)
empaiolar = em + paiol + ar
entrepessar = em + trepess(a) + ar (espécie de escada)
enrodar = em + rod(o) + ar (fazer o rodo na estrada)
Outro caso interessante é o do verbo desembotir que originou-se de um outro verbo primitivo embotir de cuja origem não temos certeza. O mesmo constitui-se um caso de derivação prefixal. Confira:
embotir = ato ou ação de introduzir a tijela na árvore de seringa
desembotir = des + embotir (desembotir = ato ou ação de retirar a tijela da árvore de seringa).
Ligado à noção dos constituintes imediatos está o conceito de parassíntese ou circunfixação, conceito que, segundo Bechara, não é “de todo assente entre os estudiosos. Para uns, para haver parassíntese basta a presença de prefixo e sufixo no derivado; é o caso de descobrimento , maneira de ver que Bechara, Mattoso e outros rejeitam com toda razão, por não levar-se em conta a noção dos constituintes imediatos. Para outros, o processo consiste na entrada simultânea do prefixo e do sufixo no radical, de tal forma que não existirá na língua a forma ou só com o sufixo ou só com o prefixo; é o caso de claro para formar aclarar, em cujo processo entram concomitantemente o prefixo e sufixo:
a +clar(o) + o
As formações parassintéticas são, para alguns, exemplos de circunfixação, termo muito discutido entre os gramáticos e estudiosos do assunto.José Lemos Monteiro em seu artigo entitulado: QUEM DISSE QUE NÃO HÁ INFIXOS NO PORTUGUÊS? Conceitua, naturalmente, o circunfixo como sendo um afixo que aplica-se a uma base (radical) no início e no fim, caracterizando-se como um afixo descontínuo. Sendo assim, podemos apontar como exemplos de derivação por circunfixação as seguintes palavras:
embicar = em + bic(a) + ar
empausar = em + pau(s) + ar
empaiolar = em + piol + ar
entrepessar = em + trepess(a) + ar
No caso dos substantivos ocorre com muita freqüência a formação de palavras por meios de sufixos. É caso dos substantivos beberagem, escorrência, puxado e embotidor, palavras estas, formadas, também, por analogia a verbos já existentes.Observe:
escorrência = escorr(er) + (-encia) = (substantivo para designar abundância)
beberagem = beber + agem (cozimento à base de ervas medicinais)
puxado = pux(ar) + ado (diz-se da falta de ar)
embotidor = embot(ir) + dor (instrumento usado como suporte)
varação = vara + cão (caminho)
Caso de palavras como apartação, se insere nos casos de derivação por circunfixação já citados acima:
apartação = a + part(e) + ação (dividir em cômodos)
No caso da palavra capemba temos um substantivo primitivo formado por analogia ao corisco de castanha que, partido ao meio, é usado em forma de cuia para cobrir a borracha com o látex durante a defumação.
De todos esses procedimentos de revitalização do léxico, merecem atenção especial a derivação, ora estudada, e a lexia complexa, tendo em vista a regularidade e sistematização com que operam na criação de novas palavras.
As lexias complexas (termo de Bernardo Pottier), formadas de sintagmas complexos que podem ser constituídos de dois ou mais elementos também fazem parte do universo lingüístico do seringueiro acreano.Relacionamos algumas expressões lexicalizadas cujo resultado é sempre um substantivo:
boca da estrada = início do percurso que leva às estradas de seringa. estrada de centro = seringueiras que ficam no centro da mata.
estrada de porta = seringueira que fica perto da casa do seringueiro.
estrada de recurso = seringueira que já foi explorada, mas ainda pode ser aproveitada.
estrada de leite = seringueira que produz muito leite.
estrada bruta = seringueira que ainda não foi explorada.
Encontramos, ainda, algumas lexias cujos resultados são verbos.Confira:
dar o rodo = fazer o percurso das estradas em círculos
testar o animal = ato ou ação de animar-se para o namoro
quebrar a estrada = não concluir o corte da seringa
cortar em bandeira = fazer o corte semelhante a uma bandeira
Palavras, há, que sofreram alteração em seu significado devido ser o vocabulário do seringueiro muito restrito. Ele se utiliza de palavras conhecidas para denominar as desconhecidas. Sofreram alteração semântica: pauta, bóia, susto, manga, torar, topar, tomar ( ver glossário).
Segundo Valter Kehdi, um vocábulo também pode ser formado quando passa de uma classe gramatical a outra, aparentemente sem alterações formais; é o que se denomina conversão. Como exemplo, pode-se citar a palavra marcela que passou de substantivo próprio a comum.
Encontramos, ainda, palavras formadas simplesmente por analogia à outras já existentes: manga, fecho, oito, traço.
O homem é um agente transformador. A língua, por sua vez, muda conforme as transformações ocorridas na vida do homem. Dessa forma é de fundamental importância estudos realizados com esse agente, que é ao mesmo tempo, inovador e modificador de palavras.
Este trabalho permitiu-nos aplicar a teoria vista no curso de Pós-Graduação na disciplina morfossintaxe da Língua Portuguesa, pelo mui digno professor José Pereira da Silva, à realidade do seringueiro acreano.
De acordo com o estudo feito da linguagem do seringueiro acreano, afirmamos não ser possível separar o homem do meio físico social; há uma relação muito estreita entre as palavras que ele utiliza e sua vida. As palavras utilizadas no seu dia-a-dia refletem a perspectiva de ler e sentir o mundo que o rodeia, esse homem faz uso do conhecido para, assim, denominar o desconhecido, como por exemplo: “boca da estrada”; “quebrar a estrada”; “embicar” e outros. Assim, cada palavra tem uma história, um motivo que justifica o seu emprego em determinado contexto, podendo variar de lugar para lugar, faixa etária para faixa etária, do sexo masculino para o feminino e de outros fatores que possam determinar essa variação de forma e significado.
Assim, selecionando palavras do corpus CEDAC e desenvolvendo a análise do processo de formação vocabular, e também, a relação semântica da palavra e seus constituintes tomados isoladamente: dar o rodo = verbo + artigo + substantivo, podemos perceber que o homem, mesmo não sendo escolarizado, não tendo noção do que é semântica, analogia, processos de formação de palavras, se apropria inconscientemente de recursos gramaticais que lhes são inerentes e os utiliza segundo suas necessidades de interlocução e interação com o meio em que vive.
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