Carta
dirigida ao governador e capitão-general
João de Albuquerque de Melo Pereira e
Cáceres [sobre os
aldeamentos
dos índios guaicurus e a escravização que estes
fizeram com duas negras fugitivas de uma
rebelião de escravos
numa fazenda dos
arredores
de Cuiabá] por Alexandre Rodrigues Ferreira. 1791.
Ao
Ilustríssimo e
Excelentíssimo
Senhor
João de Albuquerque de Melo Pereira e
Cáceres, Alexandre Rodrigues Ferreira, em carta de 5 de
maio de 1791.
Quanto ao gentio,
persuado-me que
já
pode V. Excia. aceitar as devidas felicitações, pelo vantajoso princípio que
tem dado o sargento-mor Joaquim José Ferreira ao importante
negócio da redução do guaicuru; redução em
que tão
grande serviço
faz ele a Deus,
como a Sua
Majestade e ao bem
público. A Deus
pelo considerável
número de almas
que, mediante
o batismo, podem ser
chamadas ao
grêmio
da sua igreja;
a Sua Majestade,
por mais
aqueles vassalos
que reduz à sua
obediência, antes
que contra
nós os revoltem os espanhóis, que em toda a parte são muito maus vizinhos;
ultimamente ao bem público,
pela segurança
e liberdade do
comércio
[interno] e da
navegação
mercantil desde
os portos
de
beira-mar para
estas minas.
Porque, suposto
que além
daquele gentio,
outros
muitos infestam as
margens
destes rios, como
são os guanaãs,
paiaguás, quatós, coroiás
e outros, contudo
de entre todos
eles, os guaicurus
são,
sem dúvida,
os mais audazes e
belicosos.
Com eles
estão aliados os guanaãs; os paiaguás por temor que lhe têm,
cuidam muito em
lhes não
desmerecer a sua
amizade. Todos
os mais
cotidianamente
são presas
suas, que
eles reduzem à
escravidão.
Ali tive o gosto
de vê-los, quando cheguei, que eram onze por
todos, entre
seis homens
e cinco mulheres.
No número dos
homens,
vinha incluído um
cacique seu,
que entre
eles se chama
Caimá e, entre
nós, João Qucima d'Albuquerque, o qual vinha acompanhado
de uma formosa
tapuia,
sua mulher,
já então
denominada D. Joaquina Ferreira de
Albuquerque. E de si dizia o referido cacique, que era governador geral de todo o
guaicuru. Já
a esse tempo
o tinha o sargento-mor fardado de encarnado, para o pôr nos termos de ser decentemente
apresentado a V. Excia., quando for
servido condescender com
o gosto que
disso mostra
aquele
cacique, para,
das mãos de V. Excia.
receber
(diz ele),
o
bastão de chefe
da sua gente.
Ficava da mesma
sorte
vestida sua
mulher e toda
a mais comitiva,
proporcionalmente à representação de cada pessoa; e todos uniformemente
dizem que querem aldear-se nas margens deste rio, segundo se exprime uma negra
crioula nossa,
que eles
cativaram quando
rapariga
e presentemente serve de língua. É incrível
a voracidade com
que comem; se bem
que nada
tem de bárbaras as maneiras com que, à mesa do sargento-mor, se
comporta
aquele cacique.
Em uma palavra,
está aquele
negócio
nos termos
de ser por V.
Excia. dirigido e ampliado do modo possível, ficando V. Excia. na
certeza
de que a nenhuma
cautela
se poupa o sargento-mor, principalmente
tratando ele com
uma qualidade de
gente
que, em
seus sinistros
projetos, sabe
constantemente
guardar a insidiosa máxima
de um
impenetrável
segredo e uma refinada
dissimulação. Sabe Vossa Excia.
que
não de outra
sorte se reduziram os muras, que infestavam as margens
do Amazonas, Solimões e Madeira; no que
fez S. Excia. o Sr.
João Pereira Caldas um tão aceito serviço, que já das reais mãos de Sua Majestade têm os referidos muras recebido uma significante prova de sua liberdade.
Sabe
que este
tem sido, em
todos
os tempos, o principal
objeto de suas
reais ordens
e recomendações e, ultimamente, sabe que esta é a paixão
favorita do iluminado ministro da repartição
de ultramar.
E
porque, tendo
falado
deste gentio, que
eu ali
vi e observei, e de quem me deu uma exata
informação o
reverendo
capelão do
presídio, João José Gomes da Costa, que pessoalmente
tinha ido
visitá-lo aos seus
alojamentos.
Não será fora
de propósito dar eu dele a V. Excia. uma circunstanciada relação.
Há
muitos anos
que ele
costuma infestar as margens
dos rios Cuiabá,
São
Lourenço ou Porrudos, Paraguai, Embeleteú ou Mondego, Taquari e Cochim e
até, ultimamente, infestou as de Camapuã. Do
que
não tem deixado de
receber
graves danos,
tanto as canoas
de comércio que
navegam por
aqueles
rios, como
alguns
estabelecimentos
nossos, que
nele temos experimentado de uns por outros anos, as
suas costumadas
hostilidades.
Comandava
aquele presídio
o sargento-mor Marcelino Rodrigues Camponês
quando, na manhã
de 6 de janeiro de 1779 praticavam eles com 54 praças da sua guarnição, a perfídia de as convidarem
para
uma permutação mercantil de
alguns
cavalos e
carneiros
que trouxeram. E
depois
que as viram fora
da estacada, desarmadas, como se elas puseram e baralhadas
com eles,
quase à vista
do comandante, aleivosamente as
assassinaram e se retiraram impunes. De então para cá, parece que
se recearam de castigo. Sim, algumas mortes
têm feito nas
vizinhanças
do mesmo
destacamento;
porém em
todas elas deve-se
igualmente
culpar da nossa
parte a
facilidade
e o descuido; por
que eles
o mais que
têm feito, é aproximarem-se a nós e observarem-nos a seu
salvo, quando
podem; porém
nunca
jamais se-nos dirigiram debaixo de outro
algum pretexto
senão, ultimamente,
que
as circunstâncias
emergentes
facilitaram de parte a parte uma acautelada
comunicação.
Tendo
ali chegado
a 17 de dezembro do
ano
próximo passado,
o referido sargento-mor Joaquim José Ferreira
não deixou de reparar
que, depois
da sua vinda,
nem um
deles aparecia. Suspeitou que talvez teriam os espanhóis urdido
com
eles algum
estratagema
contra
nós e, querendo tirar-se daquela dúvida, tomou o expediente
de lhes enviar
uma escolta e, pelo
cabo dela, mandou
falar
aos caciques, protestando-lhes a sua amizade e
pedindo-lhes que [lhe]
viessem falar. Com
efeito receberam bem
aos soldados e os agasalharam melhor; deram-lhes uma rês
para comerem e, despedindo-se o
cabo,
por ele
responderam ao comandante que cedo iriam
visitá-lo, como
lhes
pedia. Contudo
não
o executaram tão
prontamente,
que não
concebesse ele
segunda
suspeita, de ter
sido paliativa a
sua
resposta; de
maneira
que não
sossegou, sem
lhes
enviar segundo
recado. Já
então, mandaram visitá-lo por três escravos, que
voltaram bem comidos e
vestidos,
pelo que se
resolveu a vir pessoalmente
o cacique Caimá,
acompanhado
de três soldados
seus e dous
escravos. Conduzido à presença do
comandante,
vinha tão
assustado, que
nem
falar podia. Porém,
tanto que
se tranqüilizou o seu espírito com as
boas palavras que
lhe ele
disse e com os
donativos,
que lhe
fez, levantando-se em pé o cacique e
abraçando-o muito
estreitamente,
lhe disse de uma
voz
arrogante: "Amigo
Caimá!"
Repetidas
vezes se tem ido
aos seus
alojamentos
e, na carreira de os
conduzir
e reconduzir, ainda
o soldado Antônio
Batista
da Silva, que é o
que
mais ele lhes caiu em graça, por se acomodar aos seus gestos e maneiras.
Tanto se têm eles
familiarizado com a
nossa
gente, que
até já
consigo trazem as
suas
próprias mulheres.
Porém, mostram um
tão
grande zelo
da fidelidade conjugal, que em nenhum caso e por nenhum motivo se apartam delas, ou
seja, que se eles
queira lavar, ou
que vão
passear, caçar, pescar. Em uma palavra: para qualquer parte que vão, e façam
eles o que
fizerem, a mulher acompanha fielmente a seu marido.
Aquelas mesmas operações
naturais,
que sem
um recíproco
pejo e grande
incômodo dos
sentidos, se não podem
fazer
de companhia, e
que,
por essa razão,
entre nós,
cada um
trata de as
recatar
quanto pode, eles
as fazem na presença um
do outro. E o
mais
é que, sem
de parte a parte
se mostrar o menor
sinal de ressentimento. Triste condição
dos homens que,
como diz um
filósofo, são
animais
de costume e quanti, quanti sunt, educatione
debentur.
De uma daquelas vezes
que
se-lhes dirigiu, de ordem do
sargento-mor, uma escolta
nossa
de 45 praças, resolveu-se a acompanhá-la
o sobredito padre João José Gomes da Costa, que o que entre eles viu, fielmente
mo
comunicou. Saiu a 13 de fevereiro próximo passado e,
tendo navegado água
abaixo
dous dias e meio
de viagem, desembarcou em um porto da margem oriental do rio, onde montou a cavalo
e seguiu viagem
pela
terra dentro,
cousa de 14 de légua,
e ali achou o primeiro
alojamento. Dali marchou oito léguas à leste, até onde estava o segundo,
que se denominava dos Guanaãs. Andadas mais cinco léguas ao mesmo
rumo, chegou ao
terceiro,
que era
dos guaicurus.
Guanaãs
Pouca diferença
têm dos guaicurus, de quem são vizinhos, amigos e aliados.
Casam entre si
e, reciprocamente, se auxiliam sempre que assim o pede
alguma urgência pública ou particular. Porém
não se arrancham
em
tijupares, como
ele[s].
Antes, dão às
suas
palhoças uma
figura
oval, com as cumeeiras muito
altas e todas
elas
cobertas desta
espécie
de grama, que
por aqui
se chama sapé.
Também são
menos ociosos
que eles,
porque fazem
roças
onde plantam
milho,
feijão, batatas, canas
etc.
Algumas
frutas cultivam,
principalmente
papaias ou
mamões; bananas,
abóboras,
melancias
e, quando chega
o tempo da colheita
do arroz bravo,
fazem a esse fim
diversas excursões
pelos
lagos e pantanais
onde se ele
cria. São
grandes criadores
de cavalos; e nisto se conformam com os guaicurus. De algumas
palavras
que proferem,
evidentemente
se conclui que a sua língua primitiva
foi a geral do Brasil; porém eles a têm
desfigurado de maneira que, para distinguir-lhe as
feições não
basta uma mediana
perspicácia. De
Deus
e da religião cristã, algum conhecimento
mostram ter. E um
deles, que foi ao
presídio, vendo uma imagem
de Cristo, a beijou. Provavelmente,
assim viu fazerem os espanhóis, com quem se comunicam e de cuja
língua proferem algumas palavras, como são capitán, cristiano, cristianista,
Santa Cruz etc.
Guaicurus
O quam contenta
res est homo nisi supra umana se evexerit.
Habitam os terrenos
que
formam a margem
oriental
do rio Paraguai, pelo
dilatado espaço de
quase
cem léguas,
que correm norte–sul desde o rio Mondego ou, por outro nome, Embeteteú, até a margem boreal do Ipané, compreendendo-se, entre estes, outros muitos rios, que são o Mboimboi, o Iereri, o Guac[o]ri,
o Tepoti, o que parece
ser
o rio das Correntes,
o Barrique ou Mboeri, o Piraí e o
Cambanupá. Todos deságuam no Paraguai, para cuja margem ocidental
atravessam os guaicurus no tempo da vazante por diferentes passagens
que então
lhes facilita o rio;
sendo que, de todas
elas,
tão somente
duas conhecemos: a primeira, na distância de quatro
léguas abaixo
do sobredito presídio;
e a segunda,
defronte
da foz do Piraí. Tem
alentados
homens entre
si, os quais,
com todo
o conflito, sabem
manejar
destramente as
faculdades
ativas da
natureza. De todos
quantos
vi, nenhum tinha
de altura menos
de 8 palmos e
meio. Setenta polegadas
contava o cacique Caimá, que
é dos mais altos
tapuias que
até [a]gora
tenho visto.
Porém,
todos eles
eram igualmente
espadaúdos
[e quadrados, com
os peitos largos
e fornidos], o
ventre
plano, o dorso
e os braços musculosos. A sua vida é de corso, tanto em terra como pelos rios, com a diferença que, em terra, andam montados a cavalo, donde lhes
vem o nome de
cavaleiros, e, pelos
rios, navegam em ligeiras
canoas,
que remam com
incrível celeridade. Tem cada remo seu, dezoito palmos
de comprimento, a saber:
seis de pá
e doze de haste pont[i]aguda, para lhes servir de remo e de lança.
Não se ocupam em
construir palhoças,
como os guanaãs; se bem
que alguns
alojamentos têm
que
são fixos,
e eles vão
situá-los nas serras circunvizinhas, quando, com a enchente do rio, se inundam
as campanhas
adjacentes. Servem-lhes de quartéis de
inverno, para onde se retiram
os decrépitos, os
inválidos, as mulheres
pejadas e as paridas que têm de criar a seus filhos. Tudo o mais, pelo tempo de verão, são
alde[i]as errantes,
que
se estabelecem onde favorece o tempo e o lugar.
Ali se abrigam
debaixo
de tijupares de esteiras de periperi, horizontalmente estendidas.
Todos
dormem no chão,
sobre
couros de boi
[ou] peles
de onças, de
veados,
porcos do mato
e ariranhas,
coberto
cada um
com um
grande cobertor
de pano de
algodão
listrado, de branco,
vermelho
escuro e negro.
Recolhida uma turma a um
tijupar, os casados dormem a uma parte
e os solteiros a
outra. Ajuntam-se em
matrimônio
como os animais,
voltando a mulher as costas a seu marido. Todos são polígamos, se bem que comumente cada
homem não
tem mais de três
até quatro
mulheres. O
marido
não leva
a mulher para
o seu tijupar;
ela
fica, como estava dantes, em companhia de
seus pais,
onde o marido
a procura e a
sustenta
do que lhe
leva. Ora,
como eles
andam vagando de uns para
outros
alojamentos, em
cada um
deles tem cada
marido
uma mulher, a
quem
leva o que
caça ou
o que pesca.
Amam-se ternamente. E os maridos, como já disse, zelam quanto
podem, a fidelidade conjugal. Com o mesmo afeto e ternura
amam as mães os
primeiros
dous até três
filhos e guardam-nos como as meninas dos seus
olhos. Porém,
em concebendo
mais, lembram-lhes vivamente
os trabalhos que
os filhos têm de dar
e passar, para se
conduzirem da infância à virilidade; e a impressão
daquela lembrança sufoca a voz da natureza
e faz as mães
insensíveis
às mais vivas
emoções do amor
materno. Porque,
então, o mais
seguro expediente
de as mães se livrarem a si da mortificação de pari-los e de criá-los; e a eles, de, em toda a sua vida, passarem pelas
necessidades
e trabalhos que
consigo traz a
vida
selvagem, é o de abortá-los
logo
que os sentem gerados. O regimento da mulher
pejada consiste em
comer
pouco; e a razão
é (dizem elas)
que,
para não crescer muito o feto e com o seu volume dificultar o parto. Aproximando-se
este, tem o
marido
o cuidado de prevenir
para sua mulher uma pequena
palhoça, bem
reparada do ar. E nela se ajuntam as parteiras que, tudo quanto
executam da sua arte
de partejar consiste em
comprimir-lhe o ventre e ajeitá-lo de modo que se-lhe
facilite o parto.
Também estes gentios desenham na pele
diversas listras e
figuras, pintando a face
de urucu, de tabatinga
e de jenipapo,
que é o com
que tingem
de preto as mãos
e os pés, os
lábios
e as orelhas. E
como
todos andam a
cavalo,
tanto homens,
como mulheres,
cada mulher
traz em uma perna
um sinal,
que é o da marca
do seu cavalo.
As mulheres são
geralmente bem
feitas, de pé
pequeno e
delicado. O mais
comum
é andarem nuas, cobrindo as partes
vergonhosas com umas ligeiras tangas.
Outras andam enfaixadas com um longo cobertor de pano
de algodão listrado, que lhes cobre os corpos
desde os peitos
até meia
perna. Todas,
enquanto
solteiras, têm a parte anterior da cabeça
povoada de cabelo
descido sobre a
testa,
como as donzelas
inglesas, e pela
posterior
o tem curto,
porque
o cortam. As casadas trazem a cabeça
rapada, deixando-lhe na parte anterior tão somente um topete longitudinal
que, pela
sua posição
e figura, representa a crista de um
mutum. Servem-lhes de navalhas, com que rapam as
cabeças, as conchas
fluviáteis, que
são
os instrumentos
cortantes, de que
originariamente se servem. Uns e outros nem mais um cabelo consentem em
seus corpos.
Tudo arrancam.
Até
as mesmas pestanas e sobrancelhas.
Postos a caminho,
os homens marcham
nus
como andam. Uns montados em pêlo e
recuados para as ancas
dos cavalos, e
outros,
em lombilhos
que fazem de dous
pequenos
feixes de grama
atados um ao
outro,
para servirem de suadouros,
sobre
os quais costumam
estender
primeiramente uma
esteira
de folhas de
palmeira
e, em cima
dela, alguma pele de carneiro ou de veado, ou algum couro de boi. Este é o seu pelego, como dizem os espanhóis
americanos; é a sua
cama
e a sua pelota,
onde embarcam os
móveis,
que se não
devem molhar, quando
atravessam algum rio
ou lagoa.
Como a referida
pelota
é o mesmo couro
ajeitado ao feitio de um barco, em que se pode transportar o seu trem, embarcado ele,
assenta cada
qual sobre
a sua carga
a seu filho e,
puxando por ela,
ou a nado
ou de cavalo,
a conduz para onde
quer. Para a mulher poder
montar, é ajudada por
seu
marido que,
pregando-lhe com a
mão
direita no
artelho
do pé esquerdo,
em seu
pulso lhe
oferece o estrivo, em que ela se firma, para se pôr a cavalo, sobre algum lombilho;
e ela, estendendo as pernas a procurar as espáduas do cavalo,
o conduz tão
destramente
como qualquer
homem, mediante
um simples
barbicacho de cordão
de fio de algodão,
ou simples
ou entretecido
com
lã ou
cabelo, servindo-lhe a extremidade do cordão de chicote, com que o fustiga.
A
abundância que
os guaicurus têm de cavalos, uns criados por eles e outros
furtados aos espanhóis, faz com que nenhum dê um só passo, que não vá montado. Esta é a sua
principal criação;
que o que
eles têm de gado
vacum e ovelhum é cousa muito insignificante.
Também criam [perus],
galinhas [etc.];
porém
delas não comem
senão
os ovos; e a
maior
parte deles já
depois de terem
pintos. A palmeira
mocajuba lhes
subministra o principal
sustento: comem-lhe o palmito
e os coquinhos, ou crus, ou assados, ou cozidos. O mesmo âmago da referida palmeira, quando
nova, lhes
serve de alimento porque,
sendo ele
suculento
e doce, ou
o chupam, como se faz à cana de açúcar,
ou o assam ou
o reduzem a farinha,
para
a comerem seca ou
cozida. Ela
lhes serve de pão,
que, de conduto,
servem as cobras, os jacarés, onças,
veados, antas,
capivaras e tudo
quanto caçam ou
pescam. As mulheres casadas não comem anta nem capivara.
De
entre todos
os seus bens,
os que eles
mais apreciam são
os seus escravos,
as suas armas
e os seus cavalos.
Sabe-se, pelo que
deles transpira sobre a sua conduta com os escravos,
que estes
são humanamente
tratados por
seus senhores.
Nós os chamamos
bárbaros;
porém eles,
nesta parte, não
desonram tanto a
humanidade,
como as mais
polidas nações da Europa que, sem embargo de terem a razão
exercitada pela
filosofia
e iluminada pela
revelação,
em se estabelecendo na América, parece que de propósito escogitam
os meios de fazer
mais pesado o
jugo
da escravidão dos
negros.
Porém, o certo
é que, quanto
menos interessados os senhores, tanto
mais humanos
são e mais
indulgentes com
os escravos. Nenhuma cousa há tão rara, como ver contentes o interesse
e a avareza. Os guaicurus não
a têm e, conseqüentemente, não tratam de enriquecer-se à
proporção
do trabalho de seus
escravos. Tratam-nos indulgentemente. Comem com
eles. E cada senhor se contenta de que,
como tal,
o reconheça o seu
escravo.
Eis aqui
a mais dura
pensão que
entre eles
tem o cativeiro;
que
as ociosas distinções que fazem as nossas
constituições
políticas são,
felizmente, desconhecidas de semelhante qualidade
de senhores.
As
suas armas
de tiro são
as suas frechas. Dizem que também usam
de bolas e de
laço.
Para combaterem de perto,
usam de lanças e de
porretes.
Alguns terçados têm, havidos dos
espanhóis por via
de comércio. De
entre
os brancos ou
negros, que
por desgraça sua lhes caem
nas mãos, se
algum
há que lhes
mereça quartel,
são
tão somente
as mulheres e as
crianças.
Raros são
os homens que
gozam de semelhante
graça. Comumente os degolam despois de
mortos, para de suas cabeças fazerem os seus
troféus. De muitas
tiranias
destas poderia eu
referir muitos
exemplos. Porém,
neste caso, a
história
desta pequena
parte
do gênero humano
seria a história da
desumanidade, de trucidações, de ódios
e de horrores.
Quanto à religião,
diz a referida crioula, que eles trazem
por língua, que o que neles
tem visto é, em
certos tempos
do ano, fazerem
um
baile festivo
em honra
do Sete Estrelo. Das cerimônias e práticas
religiosas que constituem a superstição deste baile
e, semelhantemente, da música instrumental e vocal,
são encarregados
os seus médicos,
que servem eles
mesmos de
cirurgiões, de filósofos e de estadistas
das suas tribos. A medicina, entre esta casta de gente,
é a arte de adivinhar. Os
seus médicos,
pelo que respeita às enfermidades
internas, de que
não
conhecem as causas
são
uma[s] espécie[s] de mágicos, que da
ocasião da
aflição
e dos temores
quiméricos
em que
eles mesmos
constituem os minguados espíritos dos enfermos, sabem aproveitar-se
destramente
para lhes
inspirarem uma confiança cega
na eficácia dos
seus
encantos e na
certeza
das suas
predições. A cirurgia
não
é tão embusteira
como a medicina.
Sabe-se que
freqüentemente
praticam a amputação, a
sucção
e o cautério, e que a diversas feridas e chagas
aplicam eles diversas ervas, raízes e gomas
com que
ao menos
paliativamente
remedeiam até os
mesmos
bubões e úlceras
venéreas, de que
já
hoje
estão infetados. É certo que, sendo a queixa
grave, vem
finalmente
a morte a triunfar da impostura; mas,
nem ainda
nesse caso, cessa a
influência
de seus embustes,
porque, demitindo
logo
o assistente o
emprego
que exercitou, de
médico, investe o ministério
de sacerdote
e, como tal,
é o que dispõe o
enterro
e os ofícios
sepulcrais. Estendido o cadáver,
pinta-se-lhe a face de urucu,
de tabatinga e de jenipapo
e, amortalhado ele
em
o seu cobertor,
traz-se-lhe o seu
cavalo,
onde monta
algum parente
do defunto e o
leva
reclinado ao seu
peito.
Marcha igualmente
montado o concurso
que o acompanha e, sendo cacique o defunto,
não fica vassalo
seu que
lhe não
tribute naquela última
demonstração
de amor e de
respeito, consagrando-lhe a nação inteira toda a qualidade de lágrimas
eqüestres
e plebé[i]as. Chegados ao lugar destinado para as sepulturas dos mortos
(que é um
grande tijupar
que
serve de cemitério) abre-se,
com
paus agudos,
uma cova de 6 [até]
7 palmos de
altura,
para não ser o cadáver
facilmente desenterrado pelas onças; e,
estendida uma esteira no
fundo,
sobre ela
se deita ao comprido o cadáver, cobrindo-o de terra
fofa e sem
ser calcada, até
encher-se a cova,
que
também por
cima se cobre
com outra
esteira. Finca-se-lhe à cabeceira uma forquilha,
onde se-lhe deixam dependuradas as suas armas, os seus móveis e
utensis domésticos.
Perto
da sua sepultura
se abre outra para
o seu cavalo,
que a recompensa
que ali
recebe de ter servido ao
defunto
é a de ser morto
a lançadas, para continuar
a servi-lo
no outro mundo.
Segue-se o luto dos
parentes
que, enquanto
estão enojados, por 6 até 8 dias, não saem de dentro
de suas palhoças.
As mulheres se deixam
estar
sentadas com as
cabeças
cobertas. Não
comem, não se lavam
nem
se pintam. Tudo
ali
são lágrimas
e outras demonstrações de
tristeza.
Poucos velhos
tem visto a nossa
gente, de todas as
vezes
que tem ido
aos seus
alojamentos;
porém muita
criança e homens
de armas. Também
se-lhes viram dous negros e três negras que,
uma delas, é a sobredita crioula Vitória, a qual era, em outro tempo, cativa de D. Ana
de Morais,
assistente
na vila do Cuiabá, e deles foi cativada,
sendo ela roubada de uns negros seus parceiros,
que mataram seu
senhor e desceram fugidos pelo
Paraguai, onde caíram nas mãos dos guaicurus, que
a todos eles
mataram e tão somente
a ela e a uma irmã
sua
concederam a vida e a reduziram à escravidão.
Da
boca do canal
de fora da lagoa
da Uberava, em
viagem
pelo rio Paraguai, aos 5
de maio de 1791.
Chamaremos de A, nas notas seguintes,
o códice 21,2,39,10 e de B o códice 21,2,39,4 da Biblioteca
Nacional. Por
economia, colocaremos entre colchetes
tudo o que
só ocorrer
no códice B.
B substitui “Ilustríssimo e
Excelentíssimo
Senhor” por
“Governador
e Capitão-General”.
B: “dos pontos” por “desde os portos”.
B apresenta sempre “guanaãs”
por “guanãas”.
B: “coraiás” por “coroiás”.
A tem aqui
uma conjunção "que",
absolutamente desnecessária.
B: “o Governador e
Capitão-General”
por “S. Excia. o Sr.”
B: “Embeleten” por
“Embeleteú”.
B: “ele
lhes” por “lhe
ele”.
Este
pronome reto
constitui hoje
um
pleonasmo desagradável.
B:ӎ fiel
satélite
de” por “acompanha
fielmente a”.
B: “a viagem
que
fez, fielmente ma” por “o que entre eles viu, fielmente
mo”.
Em
B só se consegue
ler
“cana,” registrando-se uma
lacuna onde
A registrou “cana
etc.”
B: “conhece” por “conclui”.
B: “Embetetu” por
“Embeteteú”.
B: “Teveri, o Guac[o]ni” por
“Iereri, o Guac[o]ri”.
B: “presídio da Nova Coimbra” por
“sobredito presídio”.
B omite “escuro
e negro. Recolhida uma
turma
a um tejupar, os
casados
dormem a uma parte”
B: “tinham” por “tingem”.
B: “com ligeiras
tangas tão somente as partes vergonhosas” por
“as partes
vergonhosas com umas ligeiras tangas”.
B omite esta preposição a.
B: “estribo” por “estrivo”.
B: “coquilhos” por “coquinhos”.
B: “alheio. Trata-os” por “de seus escravos.
Tratam-nos”.
Aparece aqui, no códice
A, o pronome “eles”.
B omite “que eles trazem por
língua”.
B: “venenosas, de que todos eles”
por “venéreas, de
que já
hoje”.
B: “ilustres” por “eqüestres”.
A: “o continuar a ser
visto” por
“continuar a servi-lo”.
A acrescenta aqui “seus parentes”.