DIÁRIO
DA VIAGEM FILOSÓFICA
PELA
CAPITANIA
DE SÃO JOSÉ DO RIO-NEGRO
COM
A
INFORMAÇÃO
DO ESTUDO PRESENTE
PELO
DR. ALEXANDRE RODRIGUES FERREIRA
Naturalista, empregado
na expedição filosófica do Estado
16º Gentios que
habitaram e habitam nele,
pela ordem
dos rios indicados no tit. 15º
Note-se, primeiramente, que
os manaus foram os gentios dominantes na parte
inferior, assim
como os barés na
superior; donde vem, que
estas são as duas línguas
que falam os
índios
aldeados, sendo cada uma delas a geral do seu distrito. Dos primeiros
escreveu o autor do
Roteiro de Viagem
para a Capitania
de S. José do Rio Negro.
(a)
Que
foram poderosos
e valentes, ainda
que antropófagos
no estado da sua
infelicidade,
assim
como ainda
hoje o são
os uerequenas, e em
outro
tempo o foram
quase
todos, excetuados tão-somente os uaupés.
(b)
Que
invadiam as aldeias
dos outros
gentios, situados nas margens
do Rio-Negro e capitaneados pelo facinoroso
principal
Ajuricaba, subiam pelo Rio-Branco a
vender
os índios que
cativavam aos holandeses de Suriname, com
os quais se comunicavam, vencendo com jornada de meio dia o espaço de terra, que há entre
o Tacutu e a parte
superior
do Ruponuri,
que
deságua no Esequibe, e este no mar do norte.
(c)
Que
enquanto a religião, criam com
uma espécie de maniqueísmo, que haviam dois deuses, um
chamado Mauari, autor de todo o bem, outro por nome Sarauá, autor
de todo o mal.
(d)
Que
estes e todos os mais
gentis do Rio-Negro não tinham sinais ou deformidades industriais,
à exceção dos das
nações
uerequenas e uaupé.
(e)
Que
a todos era comum o uso do arco e flecha, e lanças
envenenadas, e paus
semelhantes
aos cuidarus e tamaranas, que eram as armas da sua primitiva invenção.
Digo da sua invenção, porque
o grande número
de armas de fogo,
com que
alguns deles, já
pelo tempo adiante, faziam a guerra
aos brancos e
índios
situados nas aldeias deste distrito, foi sem
dúvida adquirido dos europeus, dos quais
as houveram, ou
por
despojos de algumas
surpresas,
ou por
via de comércio,
particularmente
com
os holandeses. Elas
já
eram tantas e tão
vulgares, ao tempo
que
governava o Estado o Sr. Cristóvão da Costa Freire, que
da ordem (resolução),
que (ele
se viu obrigado a
tomar
a este respeito,
fica dito o que
basta na memória
do ano de 1716, especificada no tit. 3º passo a especificar os gentios. O asterisco
denota as nações desertadas ou extintas nos
rios da sua
habitação como
foi a dos tarumãs), em
forma
de regimento, expedido na data de 17 de julho
de 1716 ao coronel José da Cunha da Eça, encarregado
de subir aos sertões
dos rios das
Amazonas,
Negro, Solimões e
Madeira,
para prender o grande número
de soldados
desertores
das capitanias do
Pará
e do Maranhão, que
nos
referidos sertões se haviam refugiado, e
neles cometiam impunemente muitas violência e desordens,
consta o disposto no 3º
parágrafo,
pelo teor seguinte:
E porque
os índios da
nação
manaus, xapuenas e matiuenas, tem grande
número de armas
de fogo, com
que tem feito
algumas mortes e se deve
recear, façam maiores
absurdos, destruindo as aldeias
dos índios domésticos
e matando alguns dos religiosos do Carmo, como
já tem feito,
que são
os que tem a seu
cargo as aldeias
daquele distrito, fará todo o possível
por resgatar
algumas destas armas, de sorte que não faça dano
aos índios, nem
lhes dê
ocasião a se levantarem, porque nesta parte
terá o maior
cuidado
e para fazer os tais resgates
de armas, lhe
mandará dar o capitão-mor José
Velho
de Azevedo oitenta peças de machados e facões;
o que tudo
se entregará ao sargento, que leva em sua companhia, Antônio Barbosa, para
dar conta destas peças de ferramentas,
e do mais que
se lhe entregar
na forma acima
declarada.
Passo
a especificar os gentios. O asterístico
* denota as nações desertadas ou extintas nos
rios da sua
habitação, como
foram os gentios tarumas.
Os rios são os seguintes
Ditos
dos norte
No rio Ananiné: Os aroaquis.
No Jauapiri: Ditos.
No Queceuene ou
Rio-Branco: Os paurauanas, ditos
aroaquis, parauás, aturaís, pauxianas, guaiumasás, tapicaris, saparás, uajurus,
xaperus, uapixanas, sucuris, jaricunas,
carapis, uaicás, macuxis, caripunas, amaribás, arinas, quiúaos, pericotos e alguns macus dispersos.
No Uaranacua: Os uaranacuacenas* e parauanas.
No Uaracá: Os quinanas*
No Uereré: Os carajaís e uariúnas*
No Padauiri: Os omanaus, uanás e uariúnas
Nos
riachos antes do Marauiá: Os manaus*
Dito
Marauiá: Os curanaos* poderosos
inimigos dos manaus, e os ujanas*
No Cauaburis: Os damacuris, madauacás e outros,
No Miuá: Ditos
demacuris*
Nos
riachos da fronteira: Os ariinis* e marapitanas*, hoje marabitena
Ditos
do sul
Nos
rios Jaú e Anani: Antigamente
os caraiais, que foram expulsos e destruídos pelos
muras.
No Cauauri: Os cauauricenas* e caraiais*
No Uarirá: Os manaus,
que
ocupavam uma e outra margem do Rio Negro, e dos rios
seus colaterais,
até a ponta
inferior da ilha
de Timoni, fronteira à barra do rio Xiuará.
No Mariá: Os mepuris e macus.
No Curicuriaú: Ditos
e mais os maiapenas.
No Ucaiari ou
Uaupés: Os cojanas, uaupés, cuenacans, arapassus, mueinos, paicoenas, araras, iauaras, banibas, ucaiaris, uananás, cuduiaris,
cequenas, cuererus, cueuanas, burenaris, mamangas, panenuás e vários macus dispersos.
No Içana: Os banibas, tumaiaris, dicanas,
puetonas, urequenas, e outros.
No Ixié: Ditos
banibas, xapuenas, uerequenas, mendós e outros.
N.B. -Que nas povoações
deste rio estão incorporados
com
os índios das sobreditas nações outros muitos, que têm
sido descidos de rios e sertões diversos.
O que aos olhos de todo qualquer espectador
oferece uma admirável
variedade
de objetos, com
que entreter
a sua curiosidade,
enquanto os
gentios
pela civilização
que se lhe
introduz se não uniformam ao método de pensar e de obrar que observam nos índios
aldeados.
Em
uma só aldeia se falam tantas línguas
diversas quantas são as diferentes tribos
de gentios que
a povoam. A superstição
de todas elas,
seus
diferentes
costumes,
extravagância no vestir
e em se ornarem, as
suas
festas e bailes,
os seus
instrumentos
marciais e
festivos, as suas
armas
e utensílios
domésticos,
tudo isto
apresenta um dilatado campo de observações,
pelo qual não farei mais
do que correr
ligeiramente em
ordem a deixar
algum rastro que indique a minha
marcha.
SUPERSTIÇÃO
Ainda
que ele tenha um mando absoluto
na maior parte
dos pensamentos e das obras dos gentios,
não se pode
contudo
asseverar tão
decididamente
como
tenho ouvido que
eles nem
pensam, nem obram coisa
alguma, que lhes
não seja sugerida pelo
demônio. Os
missionários, que tem sido entre
nós as pessoas
encarregadas de espreitar as
suas
opiniões e
práticas
religiosas, desconfiam de tudo quanto os vêem falar e obrar, principalmente
se entre os seus
usos e costumes
lá chegam a descobrir
algum que
se lhes representa ser
da maior veneração. Se se inclinam a
desconfiar,
já digo, em
tudo quanto
obram os gentios,
não
vêem senão obras
do demônio; se a conciliá-los
com
o cristianismo, passam de um a outro extremo: porque
desde logo
lhes atribuem
idéias,
que eles,
sim, são
capazes de adquirir,
como os outros
homens, porém
que ainda
não as tem.
E daqui procede estarem
alguns
dos ditos
missionários
descobrindo em muitas ações dos gentios
bem profundos
vestígios dos
mais
sublimes
mistérios, interpretando a seu
jeito
certas expressões
e cerimônias, que
eles não
entendem, e transformando tudo quanto vêem, do que
verdadeiramente é para os que
se lhes representa ser.
É certo
que, entre
os diversos
princípios
da religião, que
alguns deles professam, um deles é o de sustentarem que
há deuses autores
dos males que
afligem a espécie
humana. A estes
representam os gentios debaixo de formas
as mais horrendas; e
todo
o culto que
lhes dão, o dirigem ao fim de aplacarem a cólera
destas terríveis
divindades. Crêem como
os antropomórfitas, que os seus deuses têm
forma humana,
porém com
uma natureza
superior
à do homem; e
sobre
as qualidades e
operações
destes deuses, imaginam fábulas as mais
absurdas e incoerentes que se pode imaginar.
Mas
estes mesmos nenhuma forma têm de
culto público,
não erigem
templos
em honra
das suas
divindades,
não tem ministros
especialmente consagrados ao seu serviço,
porque
os pajés, que
são os seus
feiticeiros e
sacerdotes,
também são
os médicos, os filósofos e os estadistas de cada
tribo. O entusiasmo supre a ciência
do feiticeiro. Os
gentios
fáceis em crer
tudo quanto
lhes parece
maravilhoso,
pelo temor em que os põe o
seu sacerdote,
se dispõem a estar pelo que lhes ele diz; explica-lhes os sonhos,
observa os presságios e intima-lhes a atenção ao canto,
e ao vôo das aves,
e aos gritos dos
outros
animais.
Todas estas
circunstâncias
(lhes adverte)
são
prognósticos do
futuro, e se de alguma delas prenuncia,
que lhes é desfavorável,
não se executa o
que
estava deliberado.
COSTUMES
Falo
dos morais,
entre
os quais além
de ser ímpia
a antropofagia,
que
ainda hoje
praticam os uerequenas, é igualmente ímpio o comportamento
de quase todos
os gentios pela
ocasião da guerra.
De outros muitos gentios
se conta, como
eram os ingaíbas, tapixaras e mamaianás, que
na ocasião do
conflito, e nos
transportes
do seu maior
furor, mordiam as
carnes
dos cadáveres dos
inimigos
e abocanhavam algumas delas; tocavam à chamada e festejavam a vitória
com gaitas
das tíbias das
pernas
dos vencidos; bebiam e davam a beber água e os seus vinhos em crânios
serrados e raspados à maneira das suas cuias;
esfolavam e rompiam os cadáveres,
arrancando-lhes os dentes, para deles fazerem as suas
gargantilhas; cortavam-lhes as
cabeças
para as pendurarem como
troféus, pelas
paredes
das suas palhoças;
porém
todas estas barbaridades, que todos eles cometem durante
o furor da guerra,
são as que
o uerequena pratica de sangue frio com os prisioneiros, que
aplica para o seu
sustento longo
tempo depois
de concluída a guerra.
Viram em outro tempo os cabos das nossas tropas,
que eles
tinham currais de
gentios
prisioneiros,
assim
como nós
os temos de gado para
os açougues. Deles se
conta o mesmo de outras muitas nações
da América se escreve, que praticam o extraordinário costume, de em algum deles
chegando ou a
envelhecer,
ou a padecer
alguma daquelas enfermidades, que a sua grosseira medicina não sabe remediar, os mesmos pais e filhos têm o cuidado
de lhe antecipar
a morte, não só para se aliviarem a si do fardo de tratar deles durante
a impertinência da
moléstia,
mas também
para o aliviarem a ele
das dores e
tormentos
que passa,
enquanto se lhe
retarda a morte, que
é a porta que
se lhe abre para
escaparem das misérias da vida.
Eis
aqui um rasgo de piedade
entre eles,
que entre
nós é uma
impiedade. Por este se pode julgar dos outros costumes,
com relação
às virtudes da
continência, da sobriedade, da
mansidão, da honestidade,
etc.
VESTIDOS
E ORNATOS
Parece (diz o inglês
Robertson), que a
mesma
natureza se descuidou de
ensinar
aos desta parte da América quanto lhes era indecente o
aparecerem nus.
Porém,
como eles,
debaixo de um
céu benigno,
nenhuma necessidade sentem de reparar as suas carnes contra
as injúrias do
tempo,
antes a sua
mesma indolência
os convida a pouparem-se a toda qualquer espécie
de trabalho, que
lhes não
é ordenado por
uma extrema
necessidade; todos ou quase todos se deixam ficar no estado de uma quase
absoluta nudez.
Contentam-se com
umas ligeiras tangas da entrecasca de alguma árvore,
se é, que se querem dar
à mortificação de trazerem cobertas as partes vergonhosas.
Pelo
que neles se observa, bem se pode,
quanto
ao princípio e
progressos
que tem feito
entre os homens
a arte de vestir e de trajar, subir desde a sua infância até o seu estado atual, discorrendo que
os homens
primeiramente
andaram todos nus;
pouco depois trataram de cobrir somente as suas partes vergonhosas; donde se originaram as
tangas, em que uma experiência e gosto
mais tardio
foi aperfeiçoando a matéria e a forma. Cresceu o desejo, e em alguns países
os obrigou a necessidade a reparar os seus corpos, passando eles
a usar de roupas
abertas, que
primeiramente as fizeram de folhas, e depois,
das entrecascas das
árvores; e pelo tempo adiante
das penas das
aves
e das peles dos
outros
animais.
Fecharam-se ainda
mais tarde
as roupas, principiando em forma de casulos, abertas
pelos lados
e sem mangas;
donde foram tomando por
um longo
lapso de tempo
os feitios e as
matérias
de que hoje
as fazem, depois
que
conheceram a lã, o
linho, o algodão e a
seda; e depois
que a arte
ensinou a conhecer, cultivar,
recolher, preparar, fiar e tecer
cada
uma destas substâncias; de
lhes
embelezar a matéria
se encarregaram os tintureiros, os bordadores, e outros
artistas; com
a mera forma se ocuparam os alfaiates, proporcionando-as, cortando-as e cosendo-as
segundo o gosto
e a necessidade dos
homens.
Os mesmos gentios, ainda que andam nus, nunca dispensam os ornamentos
e enfeites, com
que ornam os
braços, as pernas e os
cabelos; trazendo penduradas neles, ou algumas folhetas de metais,
ou fragmentos
de conchas, de
cristais, de palhas,
que
também trazem
pendentes
nos narizes,
nos lábios
e nas orelhas.
Outros
desenham na pele
uma multidão de
listras
e de figuras diversas, custando-lhes
estas pinturas muitas dores, muito tempo e muito trabalho. Outros andam sempre
tintos de urucu
ou
carajuru; assim
como dos antigos
bretões se escreve,
que
se tingiam com o
pastel,
para assim
incutirem maior
terror
ao inimigo, e
também
apresentarem as suas pessoas em um ar mais bizarro.
Na memória
de 20 de fevereiro de 1787, sobre os gentios
jurupixunas, fiz menção do costume que eles têm de pintarem a face
em diferença
dos outros.
Porém
outros há, que não são os do Rio Negro, porque
deles já disse
que, excetuados os uerequenas e os uaupés,
nenhum
mais praticava
deformidades
industriais, não
só se esmeram em
adquirir e aperfeiçoar os seus poucos ornamentos,
mas também
sentem um peso
e inclinação
natural
a alterar as formas
naturais de seus
corpos.
Os antigos
cambebas,
como eu
já escrevi na
memória
a que eles
deram assunto,
datada
em 17 de setembro
do referido ano, imprensavam entre duas talas
as cabeças das
crianças,
para se fazerem chatas,
outros lhes
davam uma figura
cônica
e outros quadrada.
O uerequena, como
deixo escrito na
memória
de 29 de agosto, rasga e distende as extremidades das orelhas.
O mura,
como também
escrevi na memória de 30 do mesmo mês, e outros muitos gentios furam ambos
os lábios e trazem introduzidos nos furos, ou os batoques, os quais
parecem marcas de coquilho, ou fragmentos
de ossos e de
pedras. Os mauás, como
fica explicado em
outra
memória, também
de 20 de fevereiro de 1787, andam sempre espartilhados à imitação
das damas da Europa.
Para
se adquirirem semelhantes
formas, arriscam as
suas
vidas e as de
seus
filhos, fazendo-os
logo
passar desde
o berço pelos
mais dolorosos
transes, não
se dirigindo eles a
outro
fim mais
do que ao desordenarem o plano da natureza,
debaixo do vão
pretexto de aperfeiçoarem as suas obras.
Porém
o certo é que
o principal fim
a que tendem
estes
diferentes
caprichos
não é tanto
para embelezarem os seus
corpos, quanto
para lhes
darem um ar
impostor, que
com a sua
presença e deformidade
aterre o inimigo.
BAILES
Esta é a paixão
favorita dos
selvagens
desta parte do
globo. Assim
escreveu na sua
História da América o citado
inglês, e eu o tenho
observado, há três
anos,
nos gentios
de dentro e de
fora
deste rio. Sendo eles
por
natureza uns verdadeiros quietistas, que a maior parte do seu tempo a consomem em
um estado
de lanquidez e de indolência;
sem ocupação alguma que
os possa animar e entreter,
quando cessam as
guerras
e as caçadas, gostam de um exercício que lhes põem em ação as faculdades ativas da natureza.
É verdade que entre eles a dança se
não deve chamar
divertimento, antes
é uma ocupação
muito
séria e
importante,
que se envolve em
todas as circunstâncias da sua vida pública e particular,
e de que depende o
princípio, e o fim de
todas as suas
deliberações. Se é
necessário
entenderem-se entre
si
duas aldeias, dançando é que se apresentam os
embaixadores, e entregam o emblema
da paz. Se se declara a guerra
ao inimigo,
por outra
dança é que
de parte a parte
se principia a exprimir o seu
ressentimento e a vingança
que
se medita. Então
esta dança é uma verdadeira cena em que se representa a campanha
dos gentios.
Parece que
se está vendo a saída do exército, a sua
marcha pelo país do inimigo,
as precauções
com que
acampa, a ardileza com
que se vão
emboscando alguns
destacamentos, o modo
de surpreender o inimigo.
O tumulto
e ferocidade do combate
e o triunfo da vitória.
Os atores,
que figuram na
cena, correm a ocupar os
seus
postos com
tanto calor
e entusiasmo, com
tantos gestos
e visagens, e com
as vozes tão
prontas e apropriadas à rapidez e à
celeridade das sua
evoluções,
que aos europeus,
que presenciam
o baile, custa bem a crer,
que
aquela é uma mera
cena
de ensaio e não
um combate real.
Se se trata
de consultar os oráculos,
para se lhes revelar o mistério que indica alguma fome
geral, alguma inundação
repentina, alguma
praga
de ratos ou
de formigas que
lhes devoram as
roças,
algum canto
das aves, ou
grito dos animais
do seu agouro,
o pajé ou
o feiticeiro dispõe a dança, e dela e das diferentes
coisas que
pede em nome
do oráculo (que
sempre são
as que ele
deseja para si) faz depender
a revelação do mistério.
Se adoece algum
deles, como os
seus
pajés atribuem a
origem
das enfermidades à
influências
sobrenaturais,
eles
mesmos prescrevem
certas
cerimônias misteriosas em que fazem consistir o remédio do enfermo. Neste sentido a dança
é um dos mais
eficazes
medicamentos
que lhe
receitam semelhantes médicos, e se o doente não pode suportar a fadiga do exercício, o
seu médico
a suporta por ele.
Enfim
se eles querem
aplacar a cólera
dos deuses (que
nunca estão bem
com os gentios,
quando eles
estão mal com
os seus pajés,
ou quando
se descuidam do seu
sustento
e regalo);
se pretendem celebrar
algum dos seus
benefícios, ou
testemunhar a sua
alegria pelo
nascimento de algum
filho, de algum
parente, de algum
amigo,
ou a sua
tristeza e enojo
pela morte de
algum deles; se tratam de
festejar
algum casamento,
ou mesmo
a declaração do mênstruo em suas filhas,
pela primeira
vez que
são assistidas, se celebram alguma grande caçada, ou
pescaria, alguma
colheita
de frutos da sua
estimação, para os seus
vinhos e bebidas;
eles
têm danças e
farsas
próprias, para significarem os
diferentes
motivos da sua
alegria ou
tristeza. Se a caçada, por
exemplo, foi bem sucedida,
conforme
é a espécie do
animal
que eles
caçaram, assim é a
máscara
que fazem para
o baile.
O festejo por causa de uma boa caçada
de porcos se faz
com
uma máscara que
representa a cabeça de um porco.
O da pescaria
de um peixe
boi, com
outra máscara
que o representa. Veja-se a
este
respeito a
memória
de 31 de agosto de 1787.
Uma dança
há tão bárbara, que toda a cerimônia consiste em
se flagelarem uns aos outros com azorragues ou de corda de pita, ou de couro de peixe boi, os quais
têm apenso na
extremidade
algum sólido
que fira, como
osso ou
pedra, flagelando-se com ele, até ficarem esvaídos em sangue, segundo eu já expliquei em
outra memória
de 13 de fevereiro de 1786, onde fiz menção
do uso dos
instrumentos
e da festa
chamada
do paricá.
INSTRUMENTOS
MARCIAIS E FESTIVOS
São
os trocanos, tamborinhos, trombetas,
torés, membis, gaitas feitas de cana,
de ossos de
animais, e de bicos de
aves; cascavéis nos
pulsos, nos
joelhos e nas tabocas que lhes servem
de bengalas, com
que batem no chão
e determinam o compasso das danças; o que tudo produz
uma música horríssona aos ouvidos, sem harmonia qualquer
que ela
seja, ou instrumental ou vocal.
Porém ela não é a que mais os
inflama e anima para a dança,
porque o espírito
dela é o dos licores fortes, cujo abuso faz que não haja baile,
que não
seja uma verdadeira bacanal.
Como
ignoram a arte que têm os europeus
de dar aos licores
pela fermentação
uma força de embebedar,
obtêm o mesmo
efeito
por diferentes
meios. Lançam de
infusão em água grandes quantidades
de uns bolos
chatos
de mandioca (a
que
chamam beijus)
depois
de mastigados pelas velhas. A saliva excita neles uma
fermentação
vigorosa, e
dentro
em poucos
dias fica um
licor de um
sabor e furtum
forte
para a sua bebida.
As mulheres por nenhuma forma são admitidas à dança;
antes bem se pode guardar de ser vista a que for espreitar, porque corre risco
de pedir o pajé
que a matem. Com
os
movimentos e
agitações
dos corpos,
durante
o baile, mais
se refina a crápula, e
para
não caírem de
todo,
em eles
principiando a cambalear, encadeiam-se uns com os outros,
abraçando-se pelos
pescoços. Em semelhante estado
é que eles
cometem as maiores perfídias e impiedades; e é
certo que
rara é a dança
que acaba sem
efusão de sangue.
No entanto
eles só
deixam de beber, em
se lhes esgotando a
última
gota dos seus
vinhos.
SUAS
ARMAS
Elas
nos fazem reflexionar que
as primeiras armas
ofensivas
foram sem dúvida
as que ministrou o
acaso
e que os
primeiros
esforços da arte
para as aperfeiçoar
foram muito
simples
e grosseiros.
Isto
se vê nessas pequenas massas
de pau pesado a
que
se dá o nome de braçangas, as quais são as suas armas
curtas, que contundem e cortam com os sabres;
as lanças
de madeira
simples
ou tostada ao
fogo
para lhes comunicar maior dureza; e os piques armados na ponta
ou com
algum fragmento
de ferro, ou
de pedra, ou
de osso aguçado, aos quais, segundo
a sua diferença,
se dão os nomes de murucus e cuidarus.
Porém
todas estas só servem
para
combater de perto.
Os homens
escogitaram depois
um
meio de ofender
de longe.
A esta idéia
se deve a invenção dos
arcos
e das flechas que,
ou são
simplesmente umas
flechas
com alguma ponta
de madeira aguçada
ou
de taquara, ou
são ervadas e tomam o nome de curaís.
Também
se devem as palhetas
e as zarabatanas
que,
depois de flechas,
foram as segundas armas de tiro, que então se inventaram e que
ainda hoje
são as únicas que
possuem os povos
que
vivem na infância da
sociedade.
A funda, contudo, não é conhecida entre
estes gentios.
Com as sobreditas armas
fazem a guerra; e ela, segundo a
contemplou o citado Robertson, oferece para se
contemplarem:
I Os motivos para ela
II A ferocidade com que a fazem
III A perpetuidade em
que
a conservam
IV O modo de a fazerem
V A conduta com os prisioneiros.
Quanto
aos motivos, é
certo que
um deles costuma ser
o da usurpação dos frutos, das caças e dos pescados
dos rios e das
terras
do território
alheio. Cada aldeia se julga independente
da outra que
confina com ela;
e sobretudo quanto há no território
imediato ao da
sua
situação, se atribui um direito inteiro e exclusivo,
que a autoriza, pelo
título de possuidora, a
repelir
com a força
a usurpação que se
lhe
faz. Porém
também é certo,
que a idéia
de propriedade
não
é o mais
freqüente,
nem ainda
mesmo o mais
forte de todos
os motivos para
as suas contínuas
hostilidades.
O espírito
da vingança é o maior de
todos, ou
seja, que eles
se arroguem com
preferência
aos outros uma
indisputável
elevação, que
atiça a inveja e a emulação
dos vizinhos, ou
que tenham recebido alguma injúria e lesão,
a diuturnidade do tempo que lhes não risca a lembrança dela.
Ainda
que a injúria não
tenha sido feita a todos,
basta que
um só
a receba para que
o ódio e o ressentimento de todos seja tão implacável como
o indivíduo ofendido.
O desejo
de se vingarem é tão
cego
e abrutado como o das feras; mordem as pedras
que
se lhes atira e as retorquem contra os mesmo
que as atirou; arrancam de
seus
corpos as flechas
que os atravessam e
com
elas fazem tiro
ao inimigo, cortam as cabeças dos mortos
e fazem outras barbaridades, donde se
pode inferir a ferocidade
das suas guerras.
Eles não as fazem para conquistar, mas sim para
destruir; matar, queimar tudo é a sua maior glória militar.
Consultados os pajés
e os velhos, o
principal
da nação dirige
em
chefe de exército,
isto é, quanto
ao fim de
pelejar; porque
quanto aos meios
e à disciplina,
cada
soldado é senhor
de si e das suas
ações. Porém,
como
eles tem de encontrar
durante a sua
marcha
inumeráveis
obstáculos que
vencer, tendo de atravessar
grandes rios
e lagos, de penetrar
matas horríveis,
de lhes
faltarem os viveres
para
municiar de boca
a um grande
exército; o
espírito
de providência os conduz a marchar
para a guerra
em pequenos
corpos ligeiros
e desembaraçados dos empecilhos das bagagens;
e cada
soldado não
leva mais
que as suas
armas e um
pequeno saco
ou de farinha
de mandioca, ou
de beiju, ou
de milho; porque
de caminho vai caçando ou pescando, até
se aproximar às fronteiras
do inimigo; surpreendê-lo e destruí-lo é todo o seu ponto; e como as caçadas que
fazem na paz são
os exercícios para
a guerra, do
mesmo
modo que
eles rastejam a
caça,
assim entram a
rastejar
uns aos outros.
Para
melhor se disfarçarem no mato
e se equivocarem com as folhas e
com os troncos
das árvores, pintam-se e vestem-se diferentemente; não
deixando precaução
por aplicar em ordem a não serem pressentidos. No
caso
de terem essa felicidade, estão
conseguidos os seus
fins; porque
no silêncio da
noite
investem de tropel a aldeia do inimigo,
queimam-lhe as suas
palhoças e,
conforme
a ferocidade e o
costume
dos vencedores, assim matam tudo ou
reservam alguns
prisioneiros.
O mura enquanto se não
domesticou, só a
algum
rapaz dava
quartel
e geralmente às
mulheres. O uerequena a todos
reserva para
se sevar nas
suas
carnes. Os que
os reservam para
serem escravos
são
os mais humanos
de todos eles.
Miseráveis
porém daqueles
que
ficam reservados para
beberem a morte pelo mais amargoso cálice, que lhes prepara uma implacável
vingança. Ela excogita e faz dar a seus corpos
ambas as espécies de tortura ordinária
e extraordinária, uns os espetam com paus, com ossos e com pedras
pontiagudas e em
brasa; outros
lhes cortam e dilaceram as carnes.
Alguns
lhe descarnam os ossos; e
no meio
de todo este
terrível espetáculo
duas coisas (reflete o mesmo inglês) excitam o pasmo de quem
as ouve ou as vê:
1ª outro
nenhum temor
limita a cólera do vencedor, senão o de abreviar a duração da sua vingança, se ele der a
morte ao vencido, mais
breve do que
ela pede; 2ª que
quanto mais
atormentado é o vencido, tanto mais digno se
julga ele da alta
dignidade do ser
do homem; antes
o abreviar ele
mesmo a sua
vida, para encurtar os seus tormentos, seria uma nota
de infâmia com
que deixaria manchada a sua família.
UTENSÍLIOS
DOMÉSTICOS
São
algumas panelas
feitas à mão,
das que se chamam igaçabas;
redes para dormir, a que se dá o nome
de maqueiras e são de fio de folhas
de palmeira muriti; cabaços,
cuias,
balaios, gurupemas, tipitis, abanos, ralos e
todo o mais
trem preciso
para fabricarem os beijus
e as farinhas de
mandioca. As pedras
mais duras,
depois
de levigadas, lhes servem de machadinhas; os
dentes das pacas
e das coitas são as
suas
goivas e formões;
faltam-lhes as ferramentas
e todos os mais
subsídios da arte.
Contudo
não se admirará por
certo
a simplicidade de
semelhantes
utensílios, se se
refletir,
que os esforços
do espírito e da
indústria
dos povos, que
em nenhuma outra
coisa se exercitam, senão
na guerra e na
caça,
só a estes
dois objetos
se limitam. Como
todo o seu
sustento e
vestidos
são mais
simples, também
os seus
utensílios
são poucos,
e esses mesmos
grosseiros. Acresce
que
entre eles
nenhuma idéia há de
propriedade.
Tudo é para todos. Basta que um dos do rancho
tenha feito um
ralo, para todos entrarem em
direito de se servirem dele.
A sua indolência natural
é outro obstáculo
que encontra
a multiplicidade dos móveis e o mecanismo e a conveniência da sua
construção.
Principiam friamente
a fazer uma maqueira, continuam
com
pouca atividade
e, como se fossem umas crianças, qualquer
bagatela basta
para os distrair.
Uma canoa entre as suas mãos chega a apodrecer de velha, antes de a eles
concluírem e, neste descuido de si mesmos, uns
se distinguem mais do que os outros.
De entre
todo o gentio
o mura é o que
menos se trata
e se alinha: os seus
mesmos ornatos
são muito
grosseiros.
As redes em que dormem, são meras fibras
das entrecascas das
árvores. A sua vida é de corso;
os seus
estabelecimentos
são
volantes e incertos. Os
homens
somente usam de umas tangas
ou saiotes
de fio das folhas
das palmeiras; as
mulheres
andam todas nuas.
Parece ser
uma variante do nome
do rio "Ropumani"
Hoje
se diz "asterisco". A forma “asterísticos” pode ser um erro ou uma variante.
"Presenceiam" por "presenciam".