Memória
Sobre os gentios
cambebas, que
antigamente
habitaram nas margens, e nas ilhas da parte superior do rio dos
Solimões;
segundo o fez desenhar
e remeter para o Real Gabinete
de História
Natural
o doutor naturalista Alexandre Rodrigues
Ferreira.
A
tábua Vª representa
um
dos gentios cambebas, que, já o
capitão-mor Pedro Teixeira, quando
voltava de muito, para a cidade do Pará,
pelos anos
de 1639, achou situados nas margens e nas
ilhas da parte
superior do Rio
das Amazonas,
aonde
eles ocuparam o
espaço
de duzentas léguas.
Assim
o escreveu no livro X dos Anais Históricos
do Maranhão, o governador e capitão general
que foi do Estado
o Senhor Bernardo Pereira
de Berredo, a quem,
por
ter sido o primeiro que trabalhou na história
da capitania do Grão-Pará, não deixarei de fazer o obséquio que
devo, dando-lhe nesta memória o lugar que lhe compete.
A
província dos cambebas, escreveu aquele general,
como consta do § 714 do referido livro,
é a mais
dilatada de todo o gentilismo, porque compreende duzentas
léguas
de longitude,
porém
a latitude não
passa das das
Amazonas,
que ali
é menos avultada; e nas suas ilhas, que são muitas,
se acham situados todos estes: tapuias com habitação assaz incômoda
pelas anuais
inundações
do rio; mas
conservam-se nela, só
para
viverem mais defendidos dos seus inimigos, que são poderosos.
715 Alguns
destes índios se comunicaram por muito tempo com as povoações do governo
dos guixos, donde pouco antes se tinham retirado
queixosos
do mau trato
dos seus moradores; e como incorporando-se com
a sua nação,
na maior força
dela, a instruíam naquela doutrina, que pôde tirar a sua fereza dos documentos
castelhanos; ficaram todos menos bárbaros.
716 Conservam pela
banda do sul
uma contínua
guerra
com vastas
províncias, sendo principal a dos
maiporunas; nação tão poderosa, que não somente se defendia
deles pela parte
do rio, mas
de outras muitas pela da
terra; e na do norte
não
encontravam menos
oposição
nos índios
tocucas. Porém
hoje
se acham quase
todos
domesticados.
717 Não se
sustentam os cambebas de carne humana, e já
naquele tempo se tratava um e outro sexo com algum recato; para que, suposto que da cintura para cima não
usassem dele, daí para baixo
era menos
a sua indecência,
por se cobrirem
todos
de uns panos
curtos
de algodão, que
teciam com
suficiente
curiosidade,
principalmente
na eleição dos
matizes,
como sucede ainda
hoje, no que
mostram bem mais
nacionalidade
racionalidade
do que todos
os outros, que
só se vestem da
mesma
natureza,
alimentando
também dela a
brutalidade
da sua gula.
718 Toda
esta populosa nação
tem as cabeças
chatas,
não por
natureza, mas
sim por
artifício, porque
logo que
nascem, lhas apertam entre duas tábuas, pondo-lhes uma sobre
a testa, outra
no cérebro e,
como
se criam metidas nesta emprensa, crescendo
sempre para
os lados, lhes
ficam disformes;
desproporção
que procuram fazer
menos horrível
todas as mulheres
com
a multidão dos
seus
cabelos.
719 Dizem que
usam desta diferença tão especial para que, sendo conhecidos por ela entre todos os brancos,
segurassem a sua
liberdade
na distinção
notória
de não comerem
carne
humana; porém
que importa se
são
o seu flagelo?
Porque não
só insultam todas as vidas dos estrangeiros,
sempre que
podem a seu salvo,
mas nas maiores
festas, as dos
seus
mesmos naturais;
que respeitam ou
temem como mais
valorosos, fazendo-lhes delito de uma tal
virtude e, despedaçados a feridas uns e outros
cadáveres, despois de lhes cortarem as cabeças
(que penduram
logo
por troféus
nas paredes das
casas
da sua habitação)
os lançam ao rio, como
escreve o Padre Lunhas, a que se deve acrescentar a certa notícia
de que arrancam das mesmas caveiras todos
os dentes, com
uma fleuma verdadeiramente a
mais
abominável; e furando-os, formam deles grandes gargantilhas,
que lhes
servem de adorno.
Agora, se são
estes
os menos bárbaros,
o que serão
os outros?
Domesticada esta nação ao
princípio
do seu
estabelecimento
pelos
missionários
carmelitas, que
foram os que no rio
do Solimões, ou
parte
superior do
Amazonas
assim chamada,
fundaram sete alde[i]as. Na de São Paulo se situou a maior
força dos cambebas; conservando-se nela,
ainda despois que
o Ilmo. Exmo. Sr. Joaquim de Melo e Póvoas, então
governador da
nova
capitania de S. José do
Rio
Negro, a exigiu
em
vila de Olivença.
Ela
era o seu
principal domicílio,
quando em
novembro de 1774 a visitou o autor do Diário
de viagem, em correição da dita
capitania, e
também
sobre os cambebas escreveu o que consta do seguinte
extrato
Quando
o capitão-mor Pedro Teixeira navegou o Amazonas, para completar a desejada descoberta
deste rio, ocupava esta nação
as suas margens
e ilhas, na
distância
de duzentas léguas. Há tradição que este não é o país nativo dos
umauás, mas que
se refugiaram a ele
para
fugirem dos espanhóis, quando
conquistaram a terra, a que
deram o nome do Novo
Reino de Granada,
passando pelo Jupurá ao
Amazonas.
Este nome
de umauá na sua
língua
quer dizer
"cabeça chata";
o mesmo significa cambeba, nome tirado do língua
geral do Brasil, os portugueses lhes dão. Com efeito usa esta
nação comprimir
as cabeças de
seus
filhos entre
duas tabuinhas, posta uma na testa e outra
na cabeça, de tal
sorte que
ficam com a
cabeça
e testa chatas,
com a configuração
de mitras, e
ainda
que este
costume vão
perdendo, não deixam de
comprimir,
com a mão
ao menos as
testas
das crianças.
Os cambebas são comparáveis àqueles povos
chamados macrocéfalos ou homens de cabeça longa, feita artificialmente
dos quais fala
Hipócrates, citado por Thomas Bross. As palavras de Hipócrates são
as seguintes, na
tradução
latina, "cumprimum editus infans, caput tenelum manibus efingunt et in longitudinem
adoles cere cogunt. Hoc institutum". Se entre
as nações de
índios
se pode dizer que
são os cambebas os
mais
civilizados e racionáveis, a mesma sua cor é mais alva e a figura elegante. Sempre usaram de vestidos
em ambos
os sexos, cousa raríssima nos índios da
América Meridional. Tecem cobertas, a que
chamam tapoeiranas de vários matizes; pano para o uso doméstico, de fio
finíssimo e outras semelhantes alfaias de algodão,
com o que
fazem utilíssimo comércio. São estes vestidos de algodão,
que plantam e fabricam as suas mulheres com admirável arte. Uma nação de índios fabricante
e comerciante pode se ter
por um
prodígio. E na verdade
sempre deveram os cambebas por estes motivos uma especial
atenção aos
viajantes. Os vestidos
porém
dos cambebas não tinham artifício algum;
não era
mais que
um pano
lançado para diante
e para trás, com um buraco, por onde introduziam a cabeça
e dous nos lados
para os braços.
Dos cambebas aprenderam as mais nações e igualmente
os do Pará, a fabricarem a célebre goma ou resina elástica chamada
vulgarmente leite
de siringa, porque daquela goma se fazem, também
outras obras como
botas, sapatos,
chapéus, vestidos,
que tudo
é impenetrável à
água.
Os cambebas são
guerreiros. Os seus
antigos
inimigos eram os tocunas e os maipurunas.
Na guerra eram cruéis. Cortavam as
cabeças dos inimigos
e as penduravam como troféus nas suas
casas e, arrancando-lhes os dentes, faziam deles
gargantilhas
para seu adorno. A sua arma é a frecha, a qual
não lançam com
o arco, mas
com uma palheta
de dous palmos e
meio
de comprimento,
em
que cravam em
uma das extremidades o dente de algum animal de meio dedo de comprido
e virado para
a outra
extremidade. Tomando a palheta na
mão
entre os dous
dedos
polegar e índex,
aplicam a frecha à ponta aguda do dente,
que também
hoje usam de
ferro
e, logo, fazendo a
pontaria
ao objeto, arremessam a frecha a grandes distâncias
e com admirável
dextridade.
Há
dúvida se os cambebas eram antropófagos. Crêem muitos
que o eram ainda
os que vivem no
mato.
Todos os desta
nação
que examinei neste
particular
me afirmaram que
era falsa
semelhante
imputação;
antes dizem os
que
descendem dos cambebas, que eles usam do artifício
das suas cabeças
para mostrarem, que
não comem carne
humana e podem
assim
escapar à escravidão
a que, para igual delito, os
submetiam os europeus.
Entre vários costumes dos cambebas é um
deles a feiticeria na qual são insignes os
seus pajés
ou feiticeiros,
para fazerem as suas
curas e outras
imposturas.
Por mais bem circunstanciada que
me pareceu
qualquer
das duas descrições
acima,
não tendo eu
visto o original,
desejava vê-lo para o fazer
copiar. Percebeu a minha
curiosidade o Ilmo. e Exmo. Sr. João Pereira Caldas
e, para em
nenhuma cousa deixar de cooperar
para o complemento
da História Filosófica desta parte da América; e V. Excia.
tanto
tem coadjuvado pela
sua
parte, ordenou ao sargento-mor Henrique
João Wilckens, segundo comissário da quarta
partida da
diligência
da demarcação, residente no quartel da vila
da Ega, que
fizesse vir à sua
presença algum
dos antigos cambebas de cabeça chata; que ainda
houvesse; como
realmente
expediu o que vai desenhado, respondendo
a S. Excia., em
carta
de 21 de agosto do
corrente
ano o que
consta do seguinte
parágrafo:
Nesta ocasião
remeto o índio Dionísio da
Cruz
da nação cambeba,
único
desta nação que
se acha ainda
com a testa
chata. Acresce ser
ele curioso
de carpinteiro e poder
ele mesmo
fazer as taboas e mais
preparos de que
usa esta nação,
para dar mais [a] se distinguir assim como
poderá dar exata
informação dos
ritos
e mais cerimônias
que usam os cambebas, tanto no nascimento dos filhos,
como nos
seus dias
lustrais, tanto
que chegam à
idade
de puberdade e nas primeiras assistências mensais
e periódicas das índias raparigas da mesma nação. O dito índio é civilizado e
tem servido honradamente sem nota nem fuga, desde que na expedição
de Bacelos saiu
em
piloto e, aqui,
na construção das canoas.
Pelo modo com que ele, a meu rogo, se apresentou na ação de expedir uma frecha não
pelo meio do arco, seguindo os outros
gentios, mas
sim mediante
o instrumento da
invenção
dos antigos cambebas, à que nós outros damos o nome
de palheta, assim
o desenhou o desenhador da expedição. Todo ele vai pintado ao natural,
sem outra
alguma diferença
mais
do que o do
vestido, o qual
ele
mesmo explicou,
que
era da forma,
em que
vai copiado; e tanto nisto como em tudo o mais que disse, eu não fiz mais do
que fielmente
escrever e ordenar a sua informação.
Nº 1
É o modelo que
o mesmo índio
fez na minha presença,
para me fazer compreender o mecanismo e a figura que tinham as tábuas
com que
comprimiam as cabeças. Não eram logo
duas tábuas como
se tem escrito
que
eram; mas sim
as ditas tábuas, as
quais
ou eram feitas
das castaneiras das frechas ou das canas. Entre as
tábuas e a cabeça,
diz ele que,
para se não
magoarem as crianças, se interpunha uma almofadinha e, com
razão, porque,
sendo certo que
o osso coronal e os dous parietais, como
todos os outros,
são naquela idade
cartilaginosos, dever-se-iam magoar muito as crianças a se-lhes não
interpor a dita
almofadinha,
quando
aliás nenhuma
dificuldade
encontram nela os ossos da cabeça, para cederem à sua compressão.
Havia testa da
altura
de um palmo;
deixaram-se de semelhante
costume
despois de instruídos e civilizados nas nossas povoações.
Nº 2
É a referida palheta, que
também a fez o
mesmo
índio, para me fazer
ver,
tanto a forma
dela, como o uso
que tem para
a expedição da frecha. Tem o comprimento já dito de dous palmos
e meio: na parte
superior está o
dente
ou prego
que serve de apoio
em que
descansa a
extremidade
da frecha com os dous dedos anular e mínimo; fixa segura na mão direita a parte
inferior da palheta:
no alvéolo se
estriba
a cabeça do dedo
índex: os outros
dous dedos
polegar
e maior seguram e dirigem a frecha e,
impelida ela pelo
arremesso do braço, voa a
ferir
o objeto a que
se dirige.
Nº 3
É
um cuidaru dos
seus.
Nº 4
São uma camisa
e ceroulas de tapolirana ou pano de fio de algodão, matizado [a] seu
gosto. É verdade,
diz o dito índio,
que os mais
antigos cambebas
não
usavam de camisas,
assim
como é verdade
que as primeiras
que
despois se usaram não tinham mangas; porém que já no tempo em que ele nasceu
no mato, entre
os cambebas seus
parentes,
todos eles
usavam de camisas
com
mangas, com
a diferença somente
de não serem cosidas e ajuntadas nos ombros, como as nossas. O que
disse dos ritos e
cerimônias
antigas dos seus
maiores, concorda com o
que
dos gentios em
geral tenho
escrito
em outras
memórias.
Perguntado
pelo estado atual da sua população e manufaturas,
respondeu o que é
verdade
de fato, que
como nunca
se praticou com
eles,
que eram índios
fabricantes e inclinados àquela manufatura, a distinção
de os dispensarem do exercícios de
remeiros das canoas; distinção a que
lhes dava direito
a sua habilidade,
em diferença
da maior parte
dos outros índios,
que só
para remar tinham préstimo. Uns e outros
haviam diminuído muito nas diferentes viagens
e expedições do
Estado
e de fora dele. De
sorte
que as doenças
para uma parte,
as suas guerras
com os tucunas
por
outra e,
finalmente, as viagens
para
o mato, para
o Pará, para
Mato Grosso
e para outros
rios doentios,
os tinham acabado e reduzido a bem poucos que restam porque,
dos antigos cambebas de cabeça chata,
restariam com ele
dezoito, até vinte e dos filhos daqueles já
hoje sem
a cabeça chata,
não excederiam
muito
à soma total
de cem. Que
o estar ele ainda vivo, o
atribuía à fuga
que
havia feito
quando
em 1765 subiu para
Mato Grosso
a tropa que
foi comandada pelo tenente-coronel João Batista Marctel, então
capitão de
granada
do regimento da
cidade,
pois que
receando ele o
mesmo
que viera a suceder
de, naquela viagem
falecer
a maior parte
dos índios remeiros, tomara o expediente
de desertar para
escapar da morte.
Barcelos, 17 de setembro de 1781
Alexandre Rodrigues Ferreira.