MEMÓRIA SOBRE OS GENTIOS[1]

 

Uerequenas, que habitam nos rios Içana e Ixié os quais deságuam na margem ocidental da parte superior do rio Negro, segundo a fez desenhar e remeter para o Real Gabinete de História Natural o Doutor Naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira.[2]

 

A tábua IIª representa um dos gentios uerequenas que habitam nos rios Içana e Ixié, os quais ambos deságuam na margem austral da parte superior do rio Negro. De entre todo o gentio que habita nele e nos seus confluentes, os uerequenas somente e os uaupés são os únicos em que se observam alguns sinais de deformidades industriais. As dos uerequenas consistem em um largo furo que fazem entre as cartilagem e a extremidade inferior de ambas as orelhas, introduzindo-lhe ao princípio pequenos tornos de paus ou de flechas, para assim impedirem que cicatrize o primeiro golpe, e, pelo tempo adiante o vão dilatando cada vez mais, à proporção que lhe introduzem corpos mais volumosos, até chegarem ao ponto de trazerem nelas molhos de palhas; de sorte que, em alguns daqueles indivíduos, lhes descem até aos ombros as extremidades das orelhas.

É gentio forte, audaz e belicoso; assim não fora antropófago, que é uma das impiedades que muito desacredita a sua raça. De outros muitos gentios se conta, como eram os ingaíbas, tapixaras e mamaianás, que só pela ocasião da guerra e nos transportes do seu maior furor, mordiam as carnes dos cadáveres dos inimigos e abocanhavam algumas delas; tocavam a chamada para o combate e festejavam depois dele a vitória, tocando gaitas que eram feitas das tíbias das pernas dos inimigos vencidos em outros combates; bebiam e davam a beber água e os seus vinhos em crânios serrados e raspados à maneira das suas cuias; esfolavam e rompiam os cadáveres, arrancando-lhes os dentes para deles fazerem as suas gargantilhas. Porém todas estas barbaridades que ainda hoje alguns deles cometem, durante o furor da guerra e para deste modo satisfazerem aos excessos da sua cólera, são as que o uerequena pratica de sangue frio, com os prisioneiros que aplica para o seu sustento, longo tempo depois de concluída a guerra. Deles se conta o mesmo que de algumas outras nações [de gentio] da América se escreve que praticam o extraordinário costume de em alguns deles, chegando, ou a envelhecer, ou a padecer alguma daquelas enfermidades que a sua grosseira medicina não sabe remediar, os mesmos pais e filhos têm o cuidado de lhe antecipar a morte, não só para se aliviarem a si do fardo de tratar dele durante a impertinência da moléstia, mas também para o aliviarem a ele das dores e tormentos que passa, enquanto se lhe retarda a morte que é a porta que se-lhe abre para escapar das misérias da vida. Eis aqui um rasgo de piedade entre eles, que para nós, que pensamos, é uma impiedade. Viram em outro tempo, os cabos das nossas tropas, que eles tinham currais de gentios prisioneiros, assim como nós os temos de gados, para os açougues. Esta não é uma daquelas relações infiéis entre as muitas que há deste caráter e, no ar de sua malícia, as armavam os apaixonados pelo partido da escravidão dos índios; atribuindo-lhes crueldades e costumes tais, que aos olhos dos menos iluminados, os degradavam da alta dignidade do ser do homem, para os condenarem a uma perpétua escravidão. Homens muito desinteressados, graduados em letras e em virtudes, sem prejuízo algum nesta parte, ou eclesiásticos, ou políticos, antes muito zelosos dos serviços de Deus, do de Sua Majestade e do bem público, o tem testemunhado de vista e de ouvida. O que a respeito dos uerequenas me dizem algumas pessoas desta classe, as quais acompanharam ao capitão Miguel de Siqueira Chaves, quando foi nomeado pelo Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Francisco Xavier de Mendonça Furtado, então governador e capitão-general do estado, para comandar a tropa de soldados e índios uerequenas da vila de Portel, a fim de castigarem os índios rebelados, que no ano de 1757 invadiram, assolaram e queimaram as povoações de Caboquena, Bararoá e Dari, situadas na margem meridional do rio Negro. É que ainda depois de domesticados, se podem, não perdem ocasião de se cevarem na carne humana. Porque por mais diligência que pôs aquele comandante para que os uerequenas domesticados da sua comitiva não aproveitassem as carnes dos índios mortos nos conflitos, não pôde tal conseguir; antes em alguns balaios dos seus ranchos que ele inopinadamente regist[r]ou, se acharam postas de carne humana fresca e moqueada, vindo ele então a acabar de atingir a razão porque os uerequenas separavam os seus ranchos dos dos outros índios da tropa para não serem vistos e denunciados.

A figura que se representa é a de um uerequena vestido e armado a seu modo. Quanto ao vestido, nenhuma diferença tem dos outros gentios, porque à maior parte deles, é comum o uso das tangas, de diferentes formas e matérias, e o dos ornamentos que fazem de penas das aves, peles de animais e outros muitos caprichos. Aos gentios desta parte da América, parece que a mesma natureza se descuidou de lhes ensinar quanto era indecente o aparecerem nus. Porém como debaixo de um ser benigno, eles nenhuma necessidade sentem de repararem as suas carnes contra as injúrias do tempo; antes, a sua mesma indolência os convida a pouparem-se a toda qualquer espécie de trabalho que lhes não for ordenado por uma extrema necessidade; todos ou quase todos se deixam ficar no estado de uma quase absoluta nudez. Contentam-se com umas ligeiras tangas da entrecasca de alguma árvore, se é que se querem dar à mortificação de trazerem cobertas as partes vergonhosas. Mas ainda que andem nus, nunca dispensam os ornamentos e enfeites com que ornam os braços, as pernas e os cabelos, trazendo dependurados neles, ou algumas folhetas de metais, ou fragmentos de conchas e de cristais, que também trazem pendentes nas narinas, nos lábios, nas orelhas. Outros desenham na pele uma multidão de figuras diversas, custando-lhes estas pinturas muitas dores, muito tempo e muito trabalho. Outros andam sempre tintos de urucu, assim como dos antigos bretões se escreve, que se tingiam com o pastel, para incutirem maior terror ao inimigo. O que assim praticam estes gentios também no designo de apresentarem as suas pessoas em um ar mais bizarro. Porém a vaidade (diz Robertson) que encontra ocasiões sem número de exercitar a invenção e a indústria nos países em que a arte de trajar se tem feito muito complicada, nestes, contudo, se acha ainda circunscrita em um muito estreito círculo e limitado somente a bem poucos objetos; se bem que os gentios não só se esmeram, quando podem, em adquirirem e aperfeiçoarem os seus poucos armamentos, mas também sentem um peso e inclinação natural a alterarem as formas naturais de seus corpos. Os antigos cambebas, como escreverei na explicação da tábua 5ª, imprensavam entre duas talas as cabeças das crianças, para as fazerem chatas; outros lhes davam uma figura cônica e, outras, quadradas. O uerequenas, como deixo escrito, rasga e distende as extremidades das orelhas. O mura, como também escreverei na explicação da tábua 3ª, e outros muitos gentios, furam ambos os lábios e trazem introduzidos neles os botoques, como marca de coquilho e fragmentos de ossos e de pedras. Os mauás, como já em outra tábua expliquei, andam sempre espartilhados, à imitação das damas da Europa, de sorte que, com a chave da mão, quase se chega a abarcar toda a sua cintura. Para se adquirirem semelhantes formas, arriscam as suas vidas e as de seus filhos, fazendo-os passar logo, desde o berço, pelos mais dolorosos transes, não se dirigindo eles a outro fim mais, do que a de desordenarem o plano da natureza, debaixo do vão pretexto de aperfeiçoarem as suas obras. Porém, o certo é que o principal fim a que se dirigem estes diferentes meios e caprichos de ornarem as suas pessoas e de alterarem as formas naturais dos seus corpos, não é tanto para os embelecer, como se pensa, mas sim, para lhes darem um ar impostor, que com a sua presença e disformidade aterre ao inimigo, segundo bem refletiu o citado inglês, e eu, para prova do que ele escreve e eu mesmo tenho observado, não necessito de produzir mais que os mesmos ornamentos e figuras, as quais por si próprias estão mostrando, que são mais aptas para a guerra do que para o galanteio. Pode-se, quanto ao princípio e progresso que tem tido entre os homens, a invenção dos vestidos, subir desde a sua infância, até ao seu estado atual, discorrendo assim: Os homens primeiramente andaram todos nus; pouco depois trataram de cobrir somente as suas partes vergonhosas, donde se originaram as tangas, em que uma experiência e gosto mais tardio foi aperfeiçoando a forma e a matéria, cresceu o desejo, e em alguns países os obrigou a necessidade, a repararem os seus corpos contra as injúrias do tempo e dos outros animais, passando eles a usarem de roupas abertas, que primeiramente as fizeram de folhas, depois, de entrecascas das árvores e, pelo tempo adiante, de penas das aves e das peles dos outros animais. Fecharam-se ainda mais tarde as roupas, principiando em formas de casulas abertas pelos lados e sem mangas, donde passaram por um longo lapso de tempo para os feitios e para as matérias de que hoje as fazem; depois que conheceram a lã, o linho, o algodão, a seda e depois que a arte ensinou a conhecer, cultivar, recolher, preparar, fiar e tecer cada uma destas substâncias. De lhes embelezar a matéria, se encarregaram os tintureiros, os bordadores e outros diversos artistas, com a mera forma se ocuparam os alfaiates, proporcionando-as, cortando-as e cozendo-os, segundo o gosto e a necessidade.

Quanto às suas armas, o Nº I denota um dos seus dardos, a que na língua geral se dá o nome de murucu. A parte superior dele representa uma roca de fiar, sendo igualmente vazada e cavada por dentro como ela, com a diferença de ser pont[i]aguda. Introduzem-lhe algum pequeno seixo, o qual na ação de eles brandirem o dardo, soa como um cascavel, e assim cuidam eles que incutem maior terror.

O Nº 2 designa a outra arma, a que se chama cuidaru. É de madeira dura e compacta, pintada com ocra ou com as féculas do urucu ou carajuru; disposta a pintura em forma de embutido; porém são tão somente as tintas que enchem alguns lavores abertos na madeira, mediante os dentes das pacas, das cutias e de outros animais, os quais são as goivas dos seus artífices.

Elas nos fazem reflexionar que as primeiras armas ofensivas foram sem dúvida as que ministrou o acaso; e que os primeiros esforços da arte para as aperfeiçoar foram muito simples e grosseiros. Tais são estas pequenas massas de pau pesado, que eu tenho remetido por vezes para o Real Gabinete, debaixo do nome de braçangas, as quais são as armas curtas dos gentios, contundem e cortam como os sabres; as lanças de madeira simples ou tostada ao fogo, para lhes conciliar maior dureza; os piques armados na ponta, ou com alguma pedra, ou com algum osso aguçado. Porém todas estas só servem para combaterem de perto. Os homens excogitaram depois um meio de ofenderem de longe ao seu inimigo. A esta idéia se deve a invenção dos arcos e das flechas, e semelhantemente, a das palhetas e das zaravatanas que foram as primeiras armas de tiro que então se inventaram e que ainda hoje são as únicas que possuem os povos que vivem na infância da sociedade. A funda contudo não é tão conhecida dos americanos. Quaisquer que sejam as armas de que usam os gentios desta parte da América, eu as tenho remetido no intuito de completar algum dia a História da Indústria Americana, sendo certo que, para se chegar a adquirir um perfeito conhecimento do seu princípio e progressos, é preciso mostrar o americano em todas as diversas situações em que a natureza o tem colocado; seguir os seus passos nos diferentes graus de sociabilidade por onde ele tem passado; avançar gradualmente desde a infância da sua vida civil, até a madureza e a declinação do seu estado social; e observar os esforços que em diferentes tempos têm feito as suas faculdades ativas, em todos os ramos da indústria na guerra e na paz. O que certamente se não pode empreender com prudência, senão em vista das suas obras. Persuado-me que tenho respondido aos que me impacientam com me perguntarem para que ajunto eu e remeto semelhantes armas e galantarias.

Barcelos, 29 de agosto de 1787.

Alexandre Rodrigues Ferreira.

 


[1] Códice 21,1,1 nº 16 da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Cotejar com o códice 21,2,25.

[2] Este fragmento consta somente do manuscrito 21,2,25.