A MORFOLOGIA SUFIXAL INDÍGENA NA FORMAÇÃO DE TOPÔNIMOS DO ESTADO DO 
RIO DE JANEIRO

Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ/CiFEFiL)

 

I. INTRODUÇÃO

 Quando do descobrimento do Brasil, o vasto território que, no decorrer dos séculos seguintes foi aumentado graças à ação de entradas, bandeiras, como também de acordos políticos, era habitado por numerosas tribos indígenas oriundas de várias famílias, salientando-se, dentre outras, as famílias tupi e guarani. Os primeiros contatos entre o colonizador branco e as sociedades silvícolas permitiram, em princípio lentamente, mas já no fim da primeira metade do século XVI com maior rapidez, um intercâmbio não só de ordem econômica, como também social.

Durante esse século, o território do atual Estado do Rio de Janeiro foi o palco de uma das primeiras tentativas de se fundarem feitorias, como fez Américo Vespúcio em Cabo Frio, no ano de 1503. O contato entre portugueses e autóctones desenvolveu-se rapidamente, permitindo uma certa integração entre os colonizadores e os índios, integração essa indiretamente relacionada com a chegada dos jesuítas no Brasil.

No século XVI havia tribos da família tupi espalhadas pela costa e interior do Rio de Janeiro. Habitavam as matas interioranas ou viviam próximos do litoral fluminense goitacazes, tamoios, puris, coroados e botocudos. As tribos indígenas eram geralmente nômades, pois dependiam do solo e de suas riquezas naturais para poderem se sustentar. Como membros de uma sociedade primitiva buscavam lugares onde houvesse as condições necessárias para a sobrevivência do grupo, como diz Salete Neme (1990:35): “A escolha do local a ser ocupado pelo grupo  fazia-se em função do acesso fácil e seguro às fontes de subsistência, baseada na caça, pesca  e  complementada  por trabalhos agrícolas ligados à horticultura.”

Esta relação concreta com a realidade que o cercava levava o índio a denominar o lugar onde se instalava, na medida em que o topônimo estava intrinsecamente ligada a uma característica marcante do local, estando essa correlacionada ao reino vegetal, mineral ou animal. A toponímia autóctone, partindo dessa premissa, seria o resultado lógico das vivências e necessidades dos nativos, que associavam a uma idéia acidentes geográficos, nomes de plantas, animais e quaisquer outros elementos importantes e marcantes para a cultura indígena, idéia aquela expressa então por palavras.

Analisando o mapa do Estado do Rio de Janeiro começamos a verificar a existência de inúmeros topônimos com as terminações –iba, –uba, -tiba e -tuba. A partir desta constatação e com base na Geografia Lingüistica e na corrente das Wörter und Sachen (Palavras e Coisas) chegamos à algumas conclusões, as quais exporemos no presente trabalho.

 

II. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A GEOGRAFIA LINGÜÍSTICA E SOBRE A CORRENTE  WÖRTER UND SACHEN

Dentre as várias linhas de pesquisa filológico-lingüística que surgiram no final do século XIX e primórdios da centúria seguinte destaca-se a Geografia Lingüística, que tem no suíço Jules Gilliéron seu expoente máximo. Definindo o método, Maria Luíza F. Miazzi (1972:38) assim se pronuncia: “Consiste na representação cartográfica das variedades dialetais de uma determinada área e representou na época, salutar reação contra os excessos dos neogramáticos...”

Já Francisco da Silva Borba (1967:147) considera a Geografia Lingüística como propondo-se a  

reconhecer as áreas de extensão dos fatos lingüísticos (fonéticos, morfológicos, sintáticos e léxicos).  Como a posição e distribuição destes no espaço obedece a determinadas causas, a pesquisa da geografia lingüística tende a transformar-se numa indagação histórica, com base geográfica, tornando-se, então, importante para a lingüística diacrônica.

Dentre as correntes lingüísticas que dela se originaram, a corrente das Palavras e Coisas é a que, segundo nossa opinião, apresenta a melhor adequação ao escopo de nossa pesquisa, pois ela tenciona estudar as palavras, tendo em vista o seu verdadeiro significado, ou seja, o etmon, aquilo que é “correto, verdadeiro, justo”, que às vezes é encontrado não no étimo, mas na própria história do vocábulo. Fazemos nossas as afirmações de Francisco da Silva Borba (1967:157), quando menciona que este método investigativo postula “a necessidade de estudar-se simultaneamente os vocábulos e as realidades por eles expressas para poder-se obter uma imagem clara da evolução da língua e de sua situação num dado momento.”

Por conseguinte, a coisa é o elemento primário e constante em relação à palavra: esta última está ligada à primeira e gira ao seu redor. Esta inserção do estudo do vocabulário de uma língua na história cultural do povo que a usa pode ser claramente depreendida através da observação da toponímia. As sociedades indígenas que ocupavam o território do atual Estado do Rio de Janeiro, bem como os demais pontos do brasil, refletiam nos topônimos a importância daquelas paragens para o seu modus vivendi. Esses topônimos, criados espontaneamente pelos nativos eram gerados devido à escassez ou abundância de determinados elementos dos reinos vegetal, animal ou mineral. Como bem assevera Iorgu Iordan (1982:102):

Muitos nomes de plantas e animais  baseiam-se  no aspecto exterior dos seres, no seu modo de vida  ou nos seus hábitos, de modo que, se nos documentarmos profundamente sobre estas particularidades, poderemos encontrar o ponto de partida da  palavra que nos interessa.

  Essa relação onomástico-geográfica torna-se visível na análise da toponímia em língua tupi em nosso Estado. Antes, porém, façamos algumas considerações sobre as tribos indígenas que legaram sua contribuição à história fluminense.

 

III. DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA DAS FAMÍLIAS INDÍGENAS NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

 Os estudos etnográficos sobre a distribuição das famílias indígenas pelo território do Rio de Janeiro nem sempre apresentam resultados uniformes. Nomes como tupinambá e tupiniquim são encontrados freqüentemente como sinônimos.[1] Tribos como tamoios, ararapes, goitacazes, guaianases, coroados, coropós, puris, botocudos, araris, xumetós, goianazes, pitás, sacarus, guarus, paraíbas, maracajás e temiminós teriam habitado rincões dentro da terra fluminense.[2]

Pelo exposto percebemos que a nomenclatura dos gentios que ocuparam o espaço geográfico do atual Estado do Rio de Janeiro não é uniforme. Reportamo-nos, contudo, a uma síntese mais precisa, elaborada por Cornélio Fernandes sobre a etnografia indígena do nosso Estado.

Em sua clássica obra Ethographia indigena do Rio de Janeiro, o estudioso enumera as três famílias que decisivamente contribuíram para a formação do quadro indígena na terra fluminense: tupi, gê e goitacá. A memória destas famílias foi preservada através do contato sócio-político-cultural entre as sociedades íncolas e os colonizadores brancos. Reproduzimos aqui o esquema de Cornélio Fernandes: 

FAMÍLIA

TRIBO

a) Tupi

tamoios, tupiniquins, temiminós

b) gê

aimorés, goianases

c) goitacaz

guarulhos, puris, coropós, coroados

Quanto à delimitação dos territórios pertencentes às famílias e tribos é a seguinte a divisão de Cornélio Fernandes (1926:15), que procura esquematizar e delimitar não apenas o locus vivendi das tribos como, principalmente, as interrelaciona e as classifica quanto às suas famílias:

a) os goitacazes ocupavam a região compreendida pelo vale do Paraíba do Sul, indo até aos vales de seus afluentes, rio Preto e rio Bonito, a parte Norte do Estado do Rio de Janeiro, os sertões mineiros da margem esquerda do Paraíba e o território do espírito Santo até os seus 2/3;    

b) os tamoios estendiam-se do ponto terminal da influência goitacá até às proximidades de São Vicente, sempre pela costa, ocupando os bons portos naturais nela existentes;

c) os aimorés campeavam na serra do mesmo nome pelos atuais Estados do Rio de janeiro e Espírito Santo;

d) os goianases habitavam o interior do litoral sul fluminense, por trás do território tamoio até São Paulo;

e) os puris (ramo dos goitacazes) ocupavam a margem esquerda do Paraíba, os guarulhos dominavam as regiões do baixo Paraíba, enquanto os coroados e coropós localizavam-se em diferentes pontos da bacia do grande rio.                                                                       

        Tupiniquins e temiminós para cá vieram a auxiliar os portugueses em suas lutas para assegurarem suas novas conquistas, daí podermos concluir que

a) uma plêiade considerável de elementos autóctones ocupava o território do Rio de Janeiro quando da chegada dos europeus;

b) a partir dos primeiros contatos entre os silvícolas e os colonizadores começaram estes a se inteirar de hábitos e costumes dos primeiros com finalidades econômicas e catequéticas, sendo esse conhecimento a princípio insuficiente devido à pluralidade de grupos indígenas e às suas diversas línguas;

c) várias tribos migravam de seus territórios originais em busca de um melhor habitat; outras foram meramente utilizadas pelos colonizadores em prol de seus interesses e outras extintas. Essa itinerância das tribos impediu à época uma análise mais precisa da distribuição geográfica das mesmas;

d) o desconhecimento da língua brasílica levou o europeu a elaborar pequenos textos explicativos. Todavia, como conseqüência das diferenças de sons existentes entre as línguas européias e as silvícolas, muitos sons produzidos pelos autóctones foram grafados de acordo com a percepção do homem branco, levando esse fato a uma interferência lingüística dos colonizadores na língua dos índios. 

-Iba, -uba, -tiba e –tuba são aparentes terminações, porém na verdade são vocábulos em tupi, nomes de procedência autóctone encontrados em geonomásticos fluminenses. Como anteriormente mencionado, a existência de recursos naturais era a condição sine qua non para a permanência de grupos silvícolas em determinadas paragens. Salete Neme (1990:37) diz que “o esgotamento do solo ou dos recursos naturais constituía uma das causas das migrações periódicas, dentro da porção de territórios sujeitos à dominação tribal” e ressalta a seguir, à página 107, que “o relevo suave e a riqueza hidrográfica atraíram as populações nativas, até então em constante desloca- mento, oferecendo-lhes recursos naturais relevantes na escala de valores da sua organização social.”

O litoral da cidade do Rio de Janeiro era povoado por tribos tupis, até próximo a atual município de Araruama[3]. Teodoro Sampaio (1987:69) vê a língua dessas tribos como instrumento de integração nacional nos séculos seguintes ao descobrimento do brasil, salientando que os europeus “pelo tupi designavam os novos descobrimentos, os rios, as montanhas, os próprios povoados que fundavam e que  eram outras tantas colônias,  espalhadas nos sertões, falando também o tupi e encarregando-se naturalmente de difundi-lo.”

O predomínio tupi em todo o litoral da cidade do Rio de Janeiro também em áreas litorâneas do Estado fixou-se, em parte, em seus topônimos. Como o tupinólogo baiano à página 71 de seu opus magnum O tupi na geografia nacional asseverou, “Tomando-se  uma carta  do  país  e  examinando-a quanto ao que diz respeito às denominações geográficas, reconhece-se, para logo, o predomínio do tupi em toda a região litoral; nota-se que ele penetra fundo nos sertões pelo  vale dos grandes rios,  onde  se tornou fácil o acesso do lado do mar...”

Sendo então descortinada a localização dos tupis pela região preferentemente litorânea fluminense, encontramos os geonomásticos em –iba, -uba, -tiba e tuba, bem como variantes em –diba e –duba, cuja origem é o vocábulo tupi –yba. Passemos agora à listagem dos topônimos encontrados com estas terminações e o significado dos étimos.

 

IV) NOMES TERMINADOS EM –YBA

 Procedemos a uma divisão dos topônimos quanto ao seu fato gerador, ou seja, fosse ele pertencente ao reino animal, vegetal ou mineral e dividimo-los, do mesmo modo, tomando-se como base a presença dos grafemas [t] e [d] em suas terminações.

 IV.1 Nomes terminados em –iba

  IV.1.1 Reino animal

 A)      -IBA

Japuíba – de japu ou japuí; nome comum a várias aves passeriformes da família dos icterídeos; japu-y(ba) – rio dos japus;

Juturnaíba – corruptela de yuturutunhã-y(ba) – o rio das corujas.

 B) –TIBA / -DIBA

Guaratiba – abundância de guarás, garças;

Sernambetiba – coletivo de sernambi, concha, seruru-nambi, mexilhão que tem forma de orelha.

 

IV.1.2 Reino vegetal

 A) -IBA

Cajaíba – de acayá-yba, a árvore do cajá; cajazeira;

Cambaíba – ou de caámbayba, a embaúba da mata ou de camba, planta + yba, a árvore do cambaí, o cambaizeiro;

Ingaíba – de ingá-yba, a árvore da ingá, a ingazeira;

Ipiíba – pé de ipê, ype-yba, com a variante Ipeúva;

Pacobaíba – de pacoba-yba, a árvore da banana, a bananeira. Talvez, também, corruptela de pacoba ayba, a banana ruim, imprestável;

Timbuíba – de timbó-yba, a árvore da espuma. O fruto dessa planta, quando tratado com água, dá espuma.

 B) –TIBA / -DIBA

Araçatiba – de araçá-tyba, onde há araçás em abundância;

Guaxindiba – grafado por Teodoro Sampaio Guaxenduba, de guachi-dyba, as vassouras em abundância, o sítio das vassouras;

Jurubatiba – de yuruba, a palmeira, jerivá e tyba, abundância, i.e., abundância de jerivás;

Mangaratiba – de mangará-tyba, o sítio dos mangarás, onde abundam mangarás;

Pendotiba – de pindó-tyba, abundância de palmeiras com cocos;

Sambaetiba – de sambaí e tyba, abundância de árvores que dão fibras para cordas;

Sepetiba – de çapé-tyba, a abundância de sapês, o sapezal;

Ubatiba – o sítio das frutas, o frutal, de yba-tyba. Talvez, porém, de uybá-tyba, o sítio das flechas ou canavial bravo.[4]

 

IV.2 Nomes terminados em –uba

 IV.2.1 Reino animal

 A) -UBA

Jacuba – provavelmente ligado a yacu, ave do gênero Penelope e yba, i.e., a árvore dos jacus. Não foi localizado o topônimo no mapa do Estado do Rio de Janeiro, apesar do mesmo constar no Índice de topônimos da carta do Brasil ao milionésimo do IBGE.

 

B) –TUBA / -DUBA

 Tarituba – corruptela de tarair e tyba, abundância de traíras, peixes de água doce.

 IV.2.2 Reino vegetal

 A) -UBA

Jaceruba – de yacê-yru-yba, a árvore que contém melancias. Povoado do Rio de Janeiro;

Ubás – de ybá, contração de yba-á, o que se colhe da árvore, o fruto. Também significa canoa, mas apenas aquelas fabricadas com casca de árvore. Há também o geonomástico Ubá, próximo a Paraíba do Sul.

 B) –TUBA / -DUBA

Cotunduba – de cotyn-tyba, abundância de árvores de vela que servem para mastros.[5]

 

Podemos resumir, com base no quadro acima esboçado, as informações pertinentes às terminações provenientes de –YBA e –TYBA:

 a) há dezoito topônimos terminados em –iba e –tiba, sendo quatro pertencentes à denominações de animais e quatorze referindo-se a nomes de árvores e abundância delas;

b) há seis topônimos terminados em –uba, tuba e –duba, sendo dois pertencentes à denominações de animais e quatro referindo-se a nomes de árvores e abundância delas;

c) há oito topônimos terminados em –iba e dez finalizados em –tiba;

d) há quatro topônimos terminados em –uba e dois  finalizados em –tuba/-duba, sendo que Ubás sofreu interferências lingüísticas do português pela presença do morfema de número plural –s;

 A grande maioria desses topônimos identifica elementos do reino vegetal como plantas e árvores dispostos preferentemente nas zonas litorâneas.[6]  Topônimos tupis com outras terminações também são freqüentes no Rio de Janeiro e a respeito deles teceremos as considerações a seguir.

 

V) EXEMPLOS DE OUTROS TOPÔNIMOS FLUMINENSES DE ORIGEM TUPI

 Selecionamos vários nomes de lugares para que se reconheça a devida importância da língua tupi em nossa toponímia.

 V.1 Topônimos terminados em –aba

 1)      Iguaba – vila – de y-guaba, a bebida d’água, lugar onde se bebe, o bebedouro;

2)      Ipiabas – vila – de ypiaua ou ypiau, o que tem a pele manchada, a sardinha. O nome Ipiaba pode proceder também de ypiaua, a fundura, a profundidade. Note-se aqui a presença do morfema de número plural –s;

3)      Maçambaba – praia – de moçambaba, a união, a junção. Nome de uma restinga entre a lagoa e o mar e que faz a comunicação entre dois promontórios;

4)      Mambucaba – rio, serra e vila – de mombucaba, o furo, a abertura, a passagem, o Rasgão;

5)      Morangaba – vila – de moran(ga) e gaba, a beleza, a formosura, o encanto;

6)      Quixabavila – de keçaba, o ninho, o lugar de dormir, cama, rede.

 

V.2 Outros topônimos (em ordem alfabética)

1) Conceição de Macabu – cidade – de macab-u, a macaba preta ou arroxeada. Macaba é o fruto da palmeira Acrocomia sclerocarpia. Trata-se da mescla do elemento religioso português – Nossa Senhora da Conceição – com a denominação indígena devido à existência do fruto da palmeira;

2) Caceribu – rio – de caçira-bu, a vespa escura, o marimbondo negro;

3) Inhomirim – vila – de nhõ-mirim, o campinho;

4) Itaboraí – cidade – de itá-porã-y, a água ou o rio da pedra bonita;

5) Itacuruçá – ilha e cidade – de itá-curuçá, a cruz de pedra;

6)      Itambi – vila – de itá-mbí, a pedra alçada, o penedo em pé;

7)      Marambaia – vila – de mbará-abai, o cerco do mar, a restinga, língua arenosa cercando o mar. Pode ser também marã-mbaia, a cerca ou paliçada de guerra;

8)      Pombeba – ilha – de po-mbeba, a mão chata, a fibra, a verga ou cipó chato;

9)      Tanguá – vila – de tã-guá, a baixa das formigas; pode ser também o papa-formigas;

10)  Tapera – povoado – de tab-éra, a aldeia extinta, a ruína, lugar onde existiu um povoado.

 

Consideramos que a plêiade de exemplos por nós arrolados já fornece uma significativa amostra do elemento tupi no solo fluminense. Desde já podemos  afirmar que

 a) os onomásticos tupi referem-se a elementos ligados ao cotidiano das tribos tupis, designando características geográficas, hidrográficas e os recursos naturais da região;

b) nos topônimos do grupo V.2 nota-se a presença de denominações indígenas relacionadas à área zoo-botânica, bem como aos minerais;

 

VI) CONSIDERAÇÕES MORFOLÓGICO-SEMÂNTICAS

 Pelas listagens dos topônimos fluminenses até então empreendida, notamos a incerteza no que tange à verdadeira grafia de –iba, -uba, -tiba e –tuba. Devemos considerar primeiramente a indexação díspar de –YBA que, ao longo dos séculos, foi entendido e registrado como –i- ou –u- , ocorrendo o mesmo com –TYBA em seus variantes –tiba, tuba, -diba e –duba. Para uma melhor sistematização sobre os geonomásticos é mister salientar que a pronúncia de /y/ sempre foi entendida ora [i], ora [u].[7] Isso torna-se visível ao nos depararmos com pares toponímicos de localidades brasileiras, que ora assimilam a pronúncia de /y/ como /i/ , ora como /u/:[8]

1)            Araçatiba (ES) e Araçatuba (SC, SP e AM);

2)            Carnaíba (PE, BA e PI) e Carnaúba (RN,  RR, PI, PB e CE)  - Carnajuba (PA);

3)            Cotindiba (SE) e Cotunduba (RJ);

4)            Curitiba (PR) e Curituba (BA e AM);

5)            Guaratiba (RJ) e Guaratuba (SP e PR);

6)            Ibatiba (ES) e Ivatuba (PR);

7)            Itaíba (BA e PE) – Itajiba (BA) e Itaúba (PI, AM, RS, AP) – Itaiúba (BA e SP);

8)            Itatiba (RS e SP) e Itatuba (PB e AM);

9)            Macaíba (RN) e Macaúba (MA, MG, GO, PI, SP e BA);

10)        Piritiba (SC e BA) e Pirituba (SP e PE);

11)        Sambaetiba (RJ) e Sambaituba (BA);

12)        Sepetiba (RJ) e Sepotuba (MT);

13)        Tatajiba (RS) e Tatajuba (CE e AC);

14)        Ubatiba (RJ) e Ubatuba (SP, SC, PI e CE).

  A incerteza científica quanto à origem e à pronúncia do /y/ em –yba e –tyba manifesta-se na tentativa de estudiosos em  chegarem a um denominador comum. Agenor Lopes de Oliveira, Lemos Barbosa, Teodoro Sampaio, Frederico Edelweiss e Luiz Caldas Tibiriçá procuraram analisar o fonema /y/.[9] O próximo passo seria estabelecer o significado de –yba e –tyba.

VI.1 Etimologia de –YBA

Viajantes e tupinólogos pesquisaram a etimologia do vocábulo tupi –YBA. John Luccock, Gonçalves Dias, Barbosa Rodrigues, Teodoro Sampaio, Frederico Edelweiss, Silveira Bueno, Lemos Barbosa, Constantino Tastevin e Antônio Geraldo da Cunha[10] arrolaram diferentes formas para -yba, que podemos sintetizar na exemplificação de Teodoro Sampaio (1987: 337 e 346):

UBA corr. Uyba, a flecha para o arco.

UBÁ corr. Ybá, contração de yba-á, o que se colhe da árvore, o fruto. Também  significa  canoa,   mas das fabricadas com casca de árvore.

YBÁ c. Yb-á, o que se colhe da árvore, o fruto. Alt Ibá, Ubá, Ivá, Uvá.

 

A exposição de Teodoro Sampaio evidencia para nos o que é corroborado por outros tupinólogos, ou seja, a toponímia fluminense com final em –iba e –uba referem-se ao étimo –YBA, significando fruto ou árvore, tal qual a listagem do capítulo IV atesta.

VI.2 Etimologia de –TYBA

Os geonomásticos terminados em –tiba e –tuba já são encontrados em obras do século XVI sobre o Brasil. Hans Staden cita a localidade de uwattibi, onde teria vivido em cativeiro indígena.[11]Novamente John Luccock, Gonçalves Dias, Barbosa Rodrigues, Silveira Bueno, Luiz Caldas Tibiriçá, Constantino Tastevin, Lemos Barbosa, Plynio Airosa e Teodoro Sampaio tentaram conceituar e definir o étimo tupi –TYBA. Contudo, o estudo mais pormenorizado a respeito foi empreendido por Carlos Drummond em suas Notas gerais sobre a ocorrência da partícula tyb, do tupi-guarani, na toponímia brasileira. Aludindo a Montoya e seu Tesoro de la lengua guarani, o autor das Notas (1944:63) demonstra o alongamento, através de um –a breve ou o desaparecimento da consoante b, de –tyb.  Assim:

a partícula tyb, entre os índios das  regiões paraguaias, deveria ter sido pronunciada ty, forma contrata usada ainda hoje no guarani moderno do Paraguai; os tupis de Anchieta, ao contrário,  diriam tyba. A refletir, talvez, a pronúncia média entre b e v, encontramos na Amazônia, entre os descendentes dos tupi-guaranis, a pronúncia u, isto é, dizendo tyua em lugar de tyba.

 

Quando precedido de som nasal, segundo Drummond, o grupo tyb apresentará uma modificação no t, que se transformará em –d ou –nd. Para ele, a expressão –TYBA deriva-se de –tyb, com um alongamento devido a um a  breve. Das constantes permutas do b e do v, em espanhol e em português, teria surgido a inconstância de formas em –iva e –uva.

Esboçamos aqui um quadro, seguindo o modelo de Drummond, de tyb e de todas as suas variantes:

                        - ty,     ti,     tu,     ndy,    ndi,     ndu

-tyb                 -  tyba, tiba, tuba, ndyba, ndyba, ndyba

                       -  tyva, tiva, tuva, ndyva, ndiva, nduva

                       -  tyua, tíua, túua, ndyua, ndíua, ndúua

 

Desta forma, -iba e –uba, tendo evoluído de –YBA, fruto ou árvore, formaram um mesmo radical. Com a chegada do colonizador europeu, os sons peculiares do tupi colonial foram grafados de acordo com a percepção acústica do elemento branco. Por outro lado, as variantes alográficas –tiba / -tuba exprimem abundância, formando substantivos coletivos, sendo que as variantes em –nduba e –ndiba estão relacionados com a nasalização do –t e a sempre duvidosa – aos ouvintes do colonizador – pronúncia do –y-.

 

VII) CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contato entre silvícolas de fala tupi com europeus a partir do século XVI  moldou, de acordo com os parâmetros gramaticais ocidentais, a gramática tupi. Fonemas e grafemas existentes ou inexistentes em tupi foram assimilados e indexados nas obras que formariam o conjunto de informações e descrições dos modos, costumes, hábitos e língua dos selvagens brasileiros. Não cabe aqui, devido à exigüidade temporal e à finalidade deste artigo, nos alongarmos sobre detalhes deste processo de interferência dos valores lingüísticos do colonizador, especialmente o de língua portuguesa.[12] Entretanto, podemos chegar a algumas conclusões:

a) a língua tupi estava essencialmente relacionada ao meio ambiente que circundava seus falantes e a denominação se fazia de acordo com peculiaridades específicas de cada objeto;

b) no primeiro encontro com os silvícolas, coube à civilização branca tentar reproduzir a fonética tupi, com o intuito de possibilitar uma maior aproximação entre ambos;

c) para um melhor manuseio da língua geral, especialmente os jesuítas envidaram esforços para “decodificar” e “codificar” a língua tupi, ignorando ou desleixando importantes traços fonéticos;

d) em contrapartida, traços morfológicos pertinentes à língua do civilizador foram inculcados nos indígenas, assim como novos valores semânticos.

O papel das línguas, como instrumentos vivos e reflexos de suas épocas, em se prestar ao convívio entre todos os elementos de uma sociedade e fomentar novos contatos com agentes estranhos à mesma, foi desempenhado pelo tupi e pelo português. No Estado do Rio de Janeiro, as sociedades tribais praticamente desapareceram, deixando contudo assinalada em dezenas de topônimos,  hidrônimos e geonomásticos da mais variada espécie suas passagem por estas terras, contribuindo decisiva e inequivocamente para a própria constituição do Rio de Janeiro.

Em nosso levantamento dos geonomásticos estaduais deparamo-nos com vários exemplos terminados em –iba e –uba e em –tiba e –tuba. A localização desses nomes ocorre em sua grande maioria na costa fluminense e todos eles compreendem a região antigamente habitada pelos tupis, razão pela qual pertencem à língua tupi. Pela análise lexical e semântica, observamos que –iba / -uba e –tiba / -tuba são variantes alográficas ligadas a termos diferentes. -Iba e -uba derivam-se de –YBA,[13] árvore ou fruto, substantivos que, adicionados a outro substantivo, acabam funcionando como elementos sufixais para o homem branco. -Tiba e –tuba, por seu lado, relacionam-se com –TYBA, este sim um sufixo formador de coletivos, exprimindo a idéia de abundância. Nos dois casos, o fonema /y/, interpretado de maneira diferente, gerou a pluralidade de grafias.

Esta dificuldade de representação do fonema /y/ do tupi e as constantes permutas entre b e v deram origem às variantes em –v, como iva, uva, tiva e tuva, sendo que as duas últimas formas não foram encontradas em território fluminense. Os topônimos Cotunduba e Guaxindiba, apesar das formas em –duba e –diba, podem ser explicados pela nasalização do –t em –nd.

Como Teodoro Sampaio (1987:173), sabemos das dificuldades em se trabalhar com o tupi:

Nada mais ingrato nem mais exposto a controvérsia do que esse mister de interpretar palavras de uma língua, desaparecida ou que já não tem vida, diante de outra que a suplantou e lhe  absorveu  parte do vocabulário, como é o caso do  tupi para com  o português falado no Brasil.

Sabe-se das dificuldades existentes, porém, neste terreno das investigações lingüísticas, o imaginário e o hipotético, dando pasto amplo aos espíritos inventivos e imaginosos, aos que se sentem solicitados para as escavações difíceis, aos que se deixam seduzir pelos problemas de soluções transcendentes, deram já nascimento a um verdadeiro gênero literário.[14]

Claro está, que o

estudo etimológico dos vocábulos, para o fim de fixar-lhes o verdadeiro significado, foi sempre campo de larguíssimas proporções, onde a imaginação, não raro, assume papel preponderante, e as hipóteses mais ousadas, como as explicações mais sugestivas, encontram guarida e se impõem ao senso comum, aureoladas, ainda por cima, com esse prestígio que a erudição, de ordinário, lhes comunica.

Labor improbus omnia vincit, pois os onomásticos autóctones resgatam a vida das palavras – Wörter und Sachen – e demonstram inequivocamente quão grande e importante foi a morfologia sufixal indígena na formação de topônimos do Estado do Rio de Janeiro.

 

VIII) BIBLIOGRAFIA

Todas as obras citadas encontram-se indexadas em BRAGANÇA JÚNIOR, Álvaro Alfredo. A morfologia sufixal indígena na formação de topônimos do Estado do Rio de Janeiro.  Rio de Janeiro : Faculdade de Letras, 1992.  Dissertação de Mestrado em Filologia Românica (Inédita)



[1] Para uma discussão maior sobre a nomenclatura tupinambá e tupiniquim confira em BRAGANÇA JÚNIOR (1992: 18-19).
[2] Vide BRAGANÇA JÚNIOR (1992: 21 et passim).
[3] Confira o Anexo I in BRAGANÇA JÚNIOR (1992). Vide Bibliografia.
[4] Os topônimos Guaíba, Inhoaíba e Paraíba não pertencem a essa série, em virtude de, etimologicamente, provirem de outros radicais. Sobre esses étimos, cf. BRAGANÇA JÚNIOR (1992:57, nota 52)
[5] Há ainda o topônimo Jurujuba, que em uma primeira análise poderia ser enquadrado no grupo acima, porém um estudo mais detalhado revela que o étimo é yuri-yuba, no que yuri significa pescoço e yuba amarelo.
[6] Cf. o Anexo II in BRAGANÇA JÚNIOR (1992).
[7] Uma discussão pormenorizada sobre a recepção acústico-articulatória do fonema /y/ está em BRAGANÇA JÚNIOR (1992: 31-34).
[8] Entre parênteses colocamos as iniciais dos Estados brasileiros, onde estão localizados os geonomásticos .
[9] Para a especificação das teorias dos autores supracitados, cf. em BRAGANÇA JÚNIOR (1992: 35-36).
[10] Para a especificação dos estudos dos autores supracitados, cf. em BRAGANÇA JÚNIOR (1992: 37-39).
[11] In: STADEN, Hans (1974:90).
[12] Em BRAGANÇA JÚNIOR (1992:43-49) discorre-se extensivamente a respeito do tema.
[13] Também há a forma YBÁ, fruto. Não a colocamos aqui, pois este funciona como sinédoque, i., a parte pelo todo, como o fruto faz parte da árvore.
[14] Cf. SAMPAIO (1987:173).