MORRER DE AMOR: O ÊXTASE DO AMOR CORTÊS EM DUAS CANTIGAS DA LÍRICA TROVADORESCA

Cláudia Valéria de Oliveira Pinto (UERJ)

Platão já propunha a distinção entre o amor popular e sensual, supostamente ligado aos homens vulgares que sucumbem à sedução feminina, e o amor dos sábios, que buscam uma verdadeira comunhão espiritual, prescindindo do sexo. Incorporando a teoria platônica à doutrina cristã que preconizava, a Igreja propiciou a formação de uma ideologia fundamentada basicamente na antítese carne/espírito. Além disso, não se limitando a interditar o consórcio entre esses dois extremos, também garantia e até reforçava essa cisão mediante a introdução da noção de pecado, que levava o homem medievo a viver um conflito insolúvel: satisfazendo o desejo sexual, torturava-se diante da perspectiva das penas eternas; repudiando a sexualidade, sofria o desespero pela sua natureza insatisfeita.

Com o advento do humanismo carolíngeo, lentamente, passa a se desenvolver uma nova mentalidade na Europa medieval, promovendo a renovação da cultura da antiguidade, que descobre a natureza e a força libertadora do individualismo. Essa tendência se faz perceber notadamente a partir do século XII, quando os trovadores da Península Ibérica, resgatando a estética do lirismo provençal, produzem, em galego-português, as cantigas nas quais o amor sublima-se à maneira cortês.

O amor cortês, como bem afirma Natália Correia, “insere-se num complexo ideológico que determina a Renascença e a Reforma, surgindo como a síntese encontrada pelo homem pré-renascentista para se furtar a um poder desfigurante de sua individualidade.” (CORREIA, 1978, P. 24) Isto porque a divisão em corpo e alma impossibilita ao ser atingir a sua síntese, a plenitude de sua identificação, tornando-o mais suscetível de pressões externas. Uma vez reintegrada essa plenitude, “vive em regime de androginato, de unificação, e não teme enfrentar a autoridade paterna do deus, assim como o estatuto terreno que a reflete”.(CORREIA, 1978, P.24) Por tudo isso, deve-se reconhecer que o amor trovadoresco não promove um ajuste entre a realidade e o conceito de amor. De certa forma, porém, torna-se um conceito que busca operar sobre essa realidade, transformando-a sobretudo a partir da valorização do princípio feminino, da posição de destaque que confere à mulher. Na verdade, a submissa posição feminina converte-se em fonte de inspiração do amor capaz de reintegrar a personalidade do homem perante a autoridade que o descaracteriza. Daí o caráter revolucionário do amor cortês, uma “invenção” que surgiu e desapareceu durante a idade média, mas cujos ecos podemos perceber em toda a literatura posterior, até os nossos dias.

Na canção de amor, assim como nas cansós provençais, um homem expressa o seu amor pela “senhor”. Mas cumpre notar que, além das diferenças entre a língua d’oc e o galego-português, havia grande discrepância entre as estruturas sócio-culturais do sul da França e da Península, fatores que certamente contribuíram para a existência de distinções, se não chegaram mesmo a determiná-las, entre os dois modos de trovar, de aquém e de além Pireneus. Confrontando-as, observamos, dentre outras dessemelhanças, que os peninsulares enfatizavam o aspecto da renúncia à recompensa do amor, por parte do amador. Dessa forma, a “joy” occitânica, imprescindível na “fin’amors”, e a esperança de recompensa, que eram praticamente direitos do amante conforme o código do amor cortês provençal, são enfraquecidas na lírica galego-portuguesa, onde a “coita”, o sofrer pelo amor não correspondido, adquire maior relevância. O trovador torna-se, então, um “coitado”, destinado à fatalidade da paixão e do sofrimento que a esta sobrevém, pois a senhora, em contrapartida, sempre comparece em sua excelência, altiva e inacessível. Assim sendo, ao trovador só restam duas possibilidades: se não consegue administrar a inefável dor provocada por esse amor, irrealizável e jamais correspondido, só lhe resta “ensandecer” e “morrer de amor”. Como concluiu a professora Maria Elizabeth Graça de Vasconcellos, “a febre amorosa que daí advém é alimentada por interdições - o uso do senhal e o serviço prestado à distância -, garantias de um regime de alta tensão erótica que encontra na morte (literária...) de amor o êxtase supremo.” (VASCONCELLOS, s.d., p.5)

A “morte de amor”, uma paradoxal e agridoce solução para a “coita” , torna-se, portanto, tema de várias cantigas, chegando mesmo a servir de motivo para o escárnio de alguns artistas, como na poesia de Pero Garcia Burgalês:

Roi Queimado morreu con amor

en seus cantares, par Santa Maria,

por ua dona que gran bem queria;

e, por se meter por mais trobador,

por que lh’ela non quis (o) bem fazer,

feze-s’el en seus cantares morrer;

mas resurgiu depois ao tercer dia (...)

O trovador, desprezando o cunho puramente literário dessa morte, arremata com ironia:

E se mi Deus a mi desse poder

qual oj’el á, pois morrer, de viver,

já mais morte nunca (eu) temeria.

Essa freqüência com que comparece nas cantigas de amor, entretanto, não torna maçante a temática do “morrer de amor” porque são muito variadas as maneiras como os poetas galego-portugueses a desenvolvem. Pai Soares de Taveirós, considerado um dos pioneiros a trovar em língua portuguesa e a quem se atribui a autoria da discutida Cantiga de Guarvaia legou-nos um exemplo clássico:

Como morreu quen nunca bem

ouve da ren que mais amou,

e quen viu quanto receou

d’ela, e foi morto por én:

Ay mia senhor, assi moir’eu!

 

Como morreu quem foi amar

quen lhe nunca quis bem fazer,

e de que(n) lhe fez Deus veer

de que foi morto con pesar:

Ay mia senhor, assi moir’eu!

 

Com’ome que ensandeceu,

senhor, com gran pesar que viu,

e non foi ledo nem dormiu

depois, mia senhor, e morreu:

Ay mia senhor, assi moir’eu!

 

Como morreu quen amou tal

dona que lhe nunca fez ben,

e quen a viu levar a quen

a non valia, nen a val:

Ay, mia senhor, assi moir’eu!

Nesta cantiga, encontram-se os principais sintomas da paixão trovadoresca, tais como a “sandece”, a perda do contentamento, a insônia e, finalmente, a morte de amor. De forma sucinta, pode-se admitir que as quatro estrofes buscam exprimir uma mesma idéia, a de que o amador está morrendo como morreu quem muito amou uma dama “que lhe nunca quis bem fazer”. Cumpre destacar, por conseguinte, que nesta obra figuram, além do amante e da senhor, mais duas personagens: uma delas é o rival, o antagonista, que levou a dama e, segundo o poeta, “a non valia, nen a val”; a outra, embora desconhecida e sem participar do drama suscitado pela poesia, serve como modelo e referência para o artista, em virtude de a sua história caracterizá-la como um arquétipo do amador, de acordo com o código cortês. A ele compara-se o trovador, por conhecerem ambos o sofrimento, a “coita” de amor, que tende à morte.

João Garcia de Guilhade adotou o mesmo tema, mas conseguiu fazê-lo de forma inusitada, como no exemplo seguinte:

Quantos na gran coita d’amor

eno mundo, qual og’eu ei,

querrian morrer, eu o sei,

o averrian én sabor.

Mais mentr’eu vos vir, mia senhor,

sempre m’eu querria viver,

e atender e atender!

 

Pero já non posso guarir,

ca já cegan os olhos meus

por vos, e non me val i Deus

nen vos; mais por vos non mentir,

enquant’eu vo a, mia senhor, vir,

sempre m’eu querria viver,

e atender e atender!

 

E tenho que fazen mal-sen

quantos d’amor coitados son

de querer sa morte, se non

ouveron nunca d’amor ben

Com’eu faç! E, senhor, por én

sempre m’eu querria viver,

e atender e atender

A diferença entre esta e a cantiga anterior reside, basicamente, no caminho que cada um dos trovadores escolhem diante do impasse amoroso pressuposto pela cortesia. Nesta última, observamos o entusiasmo decorrente de uma visão otimista da paixão, que leva o trovador a optar na realidade por um “viver de amor”. Tudo leva-nos a crer que , se a “coita” se impõe pela vontade de Deus, pela excelência da mulher e pela própria natureza do amor cortês, que prevê a não correspondência amorosa enfatizando a renúncia, diante da inevitável perspectiva de um padecer sem fim, o poeta opta por outro destino, senão a loucura e a morte. Este amante, embora conheça a dimensão da “coita” e compreenda que muitos por isso morram, prefere “esperar e esperar”, enquanto a sua dama puder ver. Em outras palavras, o serviço prestado à senhor, a vassalagem amorosa, não lhe proporcionam desespero. Pelo contrário, do simples fato de a poder ver, o trovador engendra um contentamento tal, que o leva a valorizar a vida, com a qual poderá continuar servindo, e não a morte. Natália Correia considera, inclusive, que as 54 composições desse autor, englobando os três gêneros da lírica medieval, exteriorizam “uma vivência que exalta o corpo, valorizando o poder criador da sensualidade”, constituindo “no enquadramento dos desmaiados amores trovadorescos, uma hipérbole libertina, uma voz bocagiana destoando genialmente na catedral dos amores góticos” (CORREIA, 1978, p.123)

Concluindo, temos a certeza de que, cada vez que nos debruçamos sobre as cantigas de amor e as insólitas regras do código do amor cortês, mais nos impressiona a grandeza e a importância literária dessa produção, única na cultura ocidental. Nem poderia ser de outra forma, pois na Península Ibérica essa poesia constitui, oficialmente, a primeira manifestação lírica que focaliza o amor, fonte inesgotável de inspiração , um mistério indecifrável e incompreensível até mesmo para nós, às portas do século XXI.

BIBLIOGRAFIA

CORREIA, Natália (org.). Cantares dos trovadores galego-portugueses. 2ª ed. Seleção, introdução, notas e adaptação de Natália Correia. Lisboa : Estampa, 1978.

DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. 2ª ed. Lisboa : Estampa, 1994.

MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 24ª ed. São Paulo: Pensamento, 1988.

MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros et alii. A literatura portuguesa em perspectiva. Vol. 1. São Paulo: Atlas, 1992.

PLATÃO. O Banquete ou do Amor. 2ª ed. São Paulo : Difel, 1970.

SILVEIRA, Jorge Fernandes da (coord.). Antologia da poesia portuguesa – Linhas Mestras. Rio de Janeiro : UFRJ, [s.d.], tomo I.