Sumário

Capítulo III

Alguns aspectos do vocabulário eteriano

Capítulo IV

 

 1. Num conhecido estudo sobre o vocabulário da Peregrinatio Aetheriae, depois de se referir ao pouco que resta para dizer sobre o texto eteriano após a obra capital de Löfstedt (1936), Ernout aponta novos rumos ao pesquisador, e ele próprio dá o exemplo com o seu artigo:

Peut-être qu’en groupant les faits d’une manière un peu différente nous arriverons pourtant à faire ressortir davantage les traits caractéristiques de cette langue, et surtout de ce vocabulaire (Ernout, 1954, p. 199).

Lamentavelmente nem todo pesquisador tem possibilidades de ler a obra do mestre sueco, até hoje no original alemão, mas a bibliografia sobre a Peregrinatio, cada vez mais rica, prova que esse diário de viagem continua a oferecer um campo inesgotável de estudos. Como nosso intuito é precisamente ressaltar os traços característicos do latim da Peregrinatio, procuraremos justificar no vocabulário os elementos básicos referidos no capítulo anterior.

O Lexicon Aetheriae de Van Oorde, de que Ernout também se utilizou, nos facilita uma visão geral daquele vocabulário e uma análise de freqüência vocabular, que, ressalvadas as inconveniências de um procedimento meramente estatístico, tem seu valor para apontar objetivamente certas tendências da autora. Como oferece um levantamento exaustivo, o número de ocorrências e exemplificações, essa obra utilíssima se tornou de consulta obrigatória. Mas é um ponto de partida. É preciso, com a indispensável leitura do texto, estudar esse vocabulário “por dentro” como fizeram entre outros – com orientações diferentes – Ernout, Christine Mohrmann e, mais recentemente, Vermeer e Bastiaensen, na linha semasiológica da escola de Nimegue.

É nosso desejo voltar a esse assunto num velho plano – talvez pretensioso demais para nossos recursos – de estudar o latim dos “itinera hierosolimitana”.

Neste capítulo, porém, bamos limitar-nos a alguns aspectos do vocabulário da Peregrinatio Aetheriae dentro dos objetivos de nosso trabalho: examinar o latim dessa obra em face das discussões, que persistem, sobre latim clássico, vulgar e latim cristão.


 

2. Ao caracterizar o vocabulário do latim vulgar, os tratadistas costumam focalizar alguns fenômenos que os distinguem do clássico. É claro que tais fenômenos se aplicam ao latim, e não apenas ao latim vulgar. O que se pretende é frisar certas tendências que se vão generalizando na língua corrente, numa tentativa de ressaltar alguns traços relevantes na tradicional oposição clássico/vulgar.

Coseriu, por exemplo, reduz tais fenômenos fundamentalmente a dois: seleção e inovação. Na seleção a língua falada procede de duas maneiras:

a) considera menos matizes, menos sutilezas em prejuízo de outros, que abandona;

b) prefere palavras mais expressivas, de maior eficácia afetiva: jargões, imagens, formas irônicas e metafóricas; “todos sinónimos estilísticos, aunque no conceptuales” (Coseriu, 1956, p. 65).

Na inovação, a língua falada, sempre movida por impulso expressivo, procura recriar, renovar o léxico seja com os processos que a língua oferece (e no latim é particularmente importante em exame formal, semântico e estilístico da sufixação) – neologismos; seja pela incorporação de palavras estrangeiras – empréstimos formais; seja pela atribuição de novas acepções a palavras do fundo tradicional da língua – empréstimos semânticos. Trata-se aqui de um “enriquecimento semântico sem inovação formal”, realizado “par transfusion de sens”, na feliz expressão de Marouzeau (1949, p. 141).

Desses empréstimos os mais importantes são os helenismos. Parece desnecessário comprovar a familiaridade dos romanos com o grego. O léxico atesta fartamente empréstimos antigos, que se fizeram por via oral e popular, e empréstimos mais recentes que vieram por via escrita, e, estes sim, revelam mais os traços do elemento importado ao trazer as marcas do cuidado da transcrição erudita.

Marouzeau lembra que enquanto

la langue savante transcrit correctament kratē@r (crater), la langue populaire fait sur l’accusatif un nominatif cratera (ibidem, p. 129).

É o mesmo caso de ebdomada, ae (do acusativo grego hebdomáda) e absida (apsida), -ae (do acusativo grego apsída), atestados na Peregrinatio:

27,2: “singuli autem dies singularum ebdomadarum aguntur sic”.

28,1: “hi, qui faciunt ebdomadas...”

45,2: “alia die de quadragesimis id est qua inchoantur octo ebdomadae”.

46,5: ”retro in absida post altarium ponitur cathedra episcopo”.

Aquele impulso expressivo se manifesta na sabida e ressabida preferência da língua oral por derivados sufixais, formações prefixais, locuções e perífrases. Ao sintetismo do latim clássico é costume opor-se, com razão, o analitismo do latim vulgar, tendência que se generalizou no latim tardio e teve mais ampla receptividade no latim dos cristãos.

 

3. Daí que, considerando agora o aspecto formal, achamos não ser sem importância comprovar na Peregrinatio Aetheriae o largo uso desses processos, especialmente daquele que no latim tem particular interesse – a sufixação. Digamos, desde logo, que em relação a neologismos a obra oferece poucos exemplos de “únicas atestações”, como assinalam certos dicionários: come (7,7), persubire (3,4), perdiscoperire (16,6), pergirare (19,9), perintrare (19,7), periunctus (4,1), archiotepa/archiotipa (19,6 – 19,6 – 19,15), sublinteatus (37,1), camsare (campsare) (10,8), antes só atestado em Ênio. Mas, uma análise da freqüência e do emprego de certos sufixos pode revelar-nos até que ponto a língua de Etéria se enraíza na mais autêntica tradição latina ou se mostra inovadora.

 

3.1 Começando pelos sufixos nominais, trataremos primeiro dos diminutivos, que na obra ocorrem com os sufixos –(c)ulus, -(c)ellus, -innus, -olus.

Diz-se que o latim vulgar manifesta sensível preferência por diminutivos. É que à idéia de “tamanho menor” se associam freqüentemente outras, como a de “carinho”, “afeto”, “desprezo”. Entende-se, pois, que se possa explorar um sentido pejorativo de comicidade, de ridículo ou um sentido melhorativo de afeto, carinho etc., matizes estilísticos que não escaparam à argúcia de Marouzeau (1945, p. 117-118). Ernout põe muitas reservas à opinião corrente “qui veut que les diminutifs soient de la langue vulgaire” (Ernout, 1952, p. 82-85, especialmente a nota 2 da p. 82).

Na Peregrinatio são pouquíssimos os diminutivos e nem sempre têm esse sentido, como, aliás, se verificou na língua corrente, em que o desgaste do valor expressivo acabou por tornar o derivado sinônimo do primitivo. Aliás, o Appendix Probi aí está como documentação desse esvaziamento semântico: “auris non oricla”, “iuuencus non iuuenclus”, “fax non facla”, “neptis non nepticla”, “anus non anucla”, “mergus non mergulus” (Cf. Maurer, 1959, p. 234).

Vejamo-los, com indicação das ocorrências:

Anulus (2) que Blaise registra annulus (falsa analogia com annus?). É um diminutivo apenas formal, significa anel. As duas ocorrências estão em 37,3.

Arbuscula (1) diminutivo de arbor (6) – “statim sancti monachi pro diligentia sua arbusculas ponunt et pomariola instituunt uel orationes” (3,6) – arbusculas, “pequenas árvores”.

Asellus (1) “peruenimus ad radicem montis Nabau, qui erat ualde excelsus, ita tamen ut pars eius maxima sedendo in asellis possit subiri” (11,4) – asellis = asinis. Aliás, asinus não ocorre no texto.

Cancellus: 13 ocorrências das quais 3 no singular e 10 no plural. Ernout-Meillet informam que o singular é tardio. Diminutivo de cancri, -orum, “balaustrada”, “cerca”, não parece ter sempre sentido diminutivo, como, aliás, já se verificava desde Cícero, em que cancelli tende a substituir cancri, talvez pela homonímia com cancer, -cri.

Colliculus (6) diminutivo de collis (2), tem às vezes seu valor diminutivo intensificado por modicus ou pelo pós-clássico permodicus (cf. 2,6 e 8,3), já de si intensivo em conseqüência do prefixo per-.

Domumcella (1) – por domuncula, diminutivo de domus (19) atestado a partir da época imperial: “Ite interim nunc unusquisque ad domumcellas uestras” (36,5). Concordo com Pétré que traduz: “Allez-vous-en un moment maintenant chacun dans vos demeures...”, sem valor diminutivo.

Frustellum (1) – por frustillum, diminutivo de frustum, que não ocorre no texto: “aliquotiens et de argento et heramento modica frustella ibi inuenit” (14,2). O valor diminutivo está intensificado por modica. Traduzo: “muitas vezes (alguém) aí encontra pedacinhos (fragmentos) de prata e de bronze”.

Loculus (1) diminutivo de locus (251) no sentido de “espaço geográfico”, “lugar”, significa “relicário”, “estojo”, sentido que não é privativo de Etéria: “stant in giro mensa diacones et affertur loculus argenteus deauratus, in quo est lignum sanctum crucis”. (37,2).

Monticulus (2) diminutivo de mons (90). Um dos exemplos “monticulus non satis grandis” (13,3) é curioso e significa “uma pequena elevação” que Etéria compara a um túmulo grande: “In eo ergo uico, qui est in media planitie positus, in medio loco est monticulus non satis grandis, sed factus sicut solent esse tumbae, sed grandes”.

Pisinnus: 3 ocorrências das quais 2 como substantivo (“criança”) e 1 como adjetivo (=paruus). Velha palavra da linguagem infantil. Lembre-se que o Appendix Probi corrige: “Pisinnus non pusillus”.

Pomariolum (1) cf. pomarium (2) e pomarius (2). Ernout-Meillet dão como tardio. No texto (3,6) significa “pomarezinhos) (“petit vergers”).

Surculus (1) diminutivo de surus, -i (“ramo”, “galho”, “estaca”) que não ocorre no texto. O exemplo está em 8,3.

Terrola (1) – por terrula, “bas-latin”, segundo Ernout-Meillet, está igualmente intensificado por modica: “um pedacinho de terra” (3,6).

De passagem diremos que ocorrem na Peregrinatio outros recursos expressionais de diminutivo, como, por exemplo, o eufemismo “ecclesia non grandis” (3,3), “ecclesia pisinna” (10,9), “locus... non satis grandis” (3,3).

Substantivos em –io, -tio, -sio, genitivo –onis: (h)abitatio, actio, affectio, allocutio, aratio (que Van Oorde não registra porque adotou a leitura oratio de Geyer em 3,6), benedictio, commemoratio, compositio, dilectio, dispositio, lectio, mansio, oblatio, operatio, oratio, passio, ponderatio, possessio, praedicatio, processio, profectio, pronuntiatio, ratio, reprehensio, repromissio, resurrectio, regio, religio, salutatio, sorbitio, temptatio, visio.

Etéria oferece com relação aos “nomina actionis” em –tio, um excelente exemplo da vitória do latim na luta em busca da expressão do abstrato, vitória definitivamente assegurada com os escritores cristãos. Trata-se de “vestra affectio”, fórmula de tratamento atestada sete vezes, pela qual a peregrina se dirige às suas “dominae sorores” ou “venerabiles sorores”.

Poderíamos dizer simplesmente que se trata de uma metonímia: a designação de uma pessoa por uma de suas qualidades mais representativas. Preciosíssima metonímia, quando se pensa na primitiva indigência de uma língua de pastores que chega a exprimir as mais agudas idéias do pensamento abstrato. Em “vestra affectio” vê-se claramente a origem latina das fórmulas de tratamento românicas “Sua Santidade”, “Sa Sainteté” etc. (Marouzeau, 1949, p. 123-124)

Com esses nomes convém confrontar os substantivos em –tus, -sus, genitivo -us, derivados de verbos, confronto para o qual Marouzeau já chamou a atenção (ibidem, p. 42-44 e 48-56) ao estudar o comportamento dos autores em face de oposições como as que a Peregrinatio nos oferece em actus/actio, affectus/affectio. Essa oposição, que favorecia as palavras em –tus diante de dificuldades que o final –tio oferecia à métrica datílica, vai-se firmando através da história do latim. No período clássico formaliza-se a distinção: os nomes em –tio se constroem com genitivo objetivo e os nomes em –tus com genitivo subjetivo. Confusões freqüentes com a 2ª declinação tornavam os nomes em –tus um tanto instáveis dentro do sistema nominal e, pois, ameaçados pelos concorrentes em –tio.

Mas, além das razões métricas é preciso não esquecer uma de ordem semântica que explica a manutenção das formas em –tus, sua aceitação na alta poesia e na prosa clássica e na pós-clássica: originários, ambos os grupos, de radicais verbais, vão-se diferenciando no uso – os nomes em –tio cada vez mais vão-se prestando para a expressão do abstrato, enquanto os nomes em –tus convêm mais à expressão do concreto.

Sénéque distingue encore actus = 1’état de sujet agissant (De otio, 1,4 “in actu esse”), de actio = le fait de faire quelque chose (ibid, 4,2, “actio rerum”) (ibidem, p. 52).

Com a generalização do emprego, fixa-se e enriquece-se um tipo de declinação flutuante, a chamada 4ª declinação.

Entendemos que os falantes não atentariam sempre para a sutil distinção entre concreto e abstrato, de modo que os nomes em –tio e –tus viriam a tornar-se sinônimos. Aliás, o próprio Marouzeau diz que

Nonius, dans son chapitre De indiscretis generibus, met en regard divers substantifs en –tus et en –tio, sans voir entre eux aucune différence de sens (ibidem, p. 52).

Ora, a partir daí o uso de uma ou de outra forma dependeria de razões muito pessoais. E a língua escrita tardia certamente haveria de refletir essa tradição.

Pois bem, na Peregrinatio é considerável o número de substantivos em –tus numa época em que a realidade oral da língua deveria ser muito diversa do rígido sistema nominal que a gramática clássica nos oferece.

Arrolamos a seguir os substantivos em –tus, -sus derivados de temas verbais que aparecem na Peregrinatio Aetheriae, e registramos entre parênteses os concorrentes em –tio, -sio que Gaffiot consigna: accessus (accesio), actus (actio), affectus affectio, ascensus (ascensio), cantus (cantio), comitatus, decursus (decursio), descensus (descensio), effectus (effectio), exercitus (exercitio), fletus, fluctus, iactus, gemitus, impetus (Blaise não registra impetus, mas consigna o adjetivo impetuosus), morsus, mugitus, nutus, obitus, ornatus (ornatio), passus, recessus (recessio), rugitus, uultus.

Outro velho concorrente do sufixo –tio é –tura, de fartíssima documentação no latim. Mas o sufixo –tura geralmente se encontra em palavras de sentido técnico, daí a preferência da língua literária pelos derivados em –tio, preferência que, segundo Marouzeau, não deve ser interpretada como rejeição da forma supostamente vulgar com o sufixo –tura. É certo, porém, que muitos derivados em –ura /-tura /-sura são pan-românicos. Diz Maurer (1959, p. 264) que

inovação própria ao latim vulgar é a extensão do sufixo aos derivados de adjetivos, onde entra em concorrência com o sufixo –or.

E afirma que, raríssima no romeno, “em todo o Ocidente essa aplicação é comum, apresentando um aspecto genuinamente popular”. Na Peregrinatio há apenas dois exemplos: scriptura e sepultura. Este, aliás, empregado uma só vez em 12,2, é como martyrium, memoria e memoriale, um sinônimo dos antigos vocábulos sepulchrum e tumba, que também ocorrem na obra.

Com o sufixo –tat-, formador de substantivos femininos abstratos, o texto eteriano nos oferece: aetas (etas), ciuitas, facultas, humanitas, imbecillitas (inbecillitas), incommoditas, maiestas, necessitas, paruitas, solemnitas (solennitas), summitas, ueritas, uoluntas. Lembremos, de passagem, que ciuitas é o substituto de urbs, que não ocorre na obra.

A Peregrinatio apresenta um bom número de substantivos que aqui vamos agrupar em virtude de uma noção gramatical comum – o gênero neutro:

1) em –ium derivados de um radical verbal ou nominal: auxilium (augere), confinium (finis ou fines), desiderium (desidero, de sidus), ministerium (minister, Peregr. 25,8 com sentido de “objetos do culto”), gaudium (gaudere), (h)ospitium (hospes, Peregr. 25,7 com sentido de “alojamento ou residência dos peregrinos”; Pétré traduz por “logis”; Oorde sugere “domus”), ieiunium (ieiunus, -a, -um), prandium (prandere) e incendium (incendo, de in+cando, mesmo radical de cicindela); na Peregr. 5,7 vale por um nome próprio, “Fogo”, local em que, ante as murmurações dos filhos de Israel “o fogo do Senhor acendeu-se entre eles e devorou uma extremidade do acampamento” (cf. Números 11,1 e 3):

Nam ostenderunt nobis etiam et illum locum, qui appellatus est incendium, quia incensa est quedam pars castrorum, tunc qua orante sancto Moyse cessauit ignis.

 

2) em –arium, -are e –ale: altarium, pomarium, lucernarium, miliarium, lucernare, luminare e altare (leitura de Franceschini), memoriale (= memoria, “túmulo”); 

3) em –uum: biduum;

 4) em –culum e –crum: tabernaculum, coperculum, lauacrum. É interessantíssima a ocorrência da velha palavra lauacrum ao lado do cristianismo baptismus em 45,4, quando o texto reproduz as palavras do bispo ou da própria Etéria:

Si autem in aliquo accusatur, iubet illum foras exire dicens: “Emendet se et, cum emendauerit se, tunc accedet ad lauacrum”. Sic de uiris, sic de mulieribus requirens dicit. Si quis autem peregrinus est, nisi testimonia habuerit, qui eum nouerint, non tam facile accedet as baptismum;

 5) em –monium: testimonium, empregado em sentido concreto 

6) em –mentum: aeramentum, calciamentum (calce-, fundamentum, sacramentum, momentum (só em ad momentum). Note-se que não há nenhum exemplo de substantivos em –men.

Por motivos didáticos também agruparemos substantivos derivados que têm de comum o vínculo gramatical do gênero feminino:

1. em –tudo: consuetudo, magnitudo, multitudo, solitudo, atestado em 20,5, interpretado em Van Oorde com sentido concreto do loca deserta; 

2. em –tus (sufixo –tut-): salus, uirtus (um só exemplo no plural, uirtutes, com o sentido de mirabilia, miracula. Note- se que mirabilia está em 20,13. Etéria não emprega miracula, palavra do latim profano que os cristãos adotaram. Com o mesmo sentido Etéria usa duas vezes o neutro gesta (20,13), muito conhecido em latim no sentido de “feitos extraordinários”, “grandes façanhas”; 

3. em –ia, -entia: pluuia, memoria, misericordia, ecclesia, gratia, corrigia, familia; concupiscentia, diligentia, reuerentia, scientia; 

4. em –ies, -ities, -itia: dies, facies, planities, laetitia; 

5. em –ona, matrona; 

6. em –ina, cortina, (de cors, forma tardia de cohors) farina, disciplina; 

7. em –ela: candela, cicindela; 

8. helenismos em –issa: diaconissa, prophetissa.

Substantivos masculinos com o sufixo –or, -tor, -sor: confessor, cursor, deductor, memor, nitor, sapor.

Quanto aos adjetivos, lembraremos de início que um bom número está relacionado a substantivos também ocorrentes no texto, o que poderá ocasionar considerações sobre a discutida questão da riqueza ou pobreza do vocabulário eteriano, que em relação aos nomes oferece uma proporção de três substantivos para um adjetivo, e poderá ensejar comentários estilísticos e semânticos sobre a adjetivação eminentemente denotativa, que não vai além da constatação objetiva, quando não é o termo técnico, obrigatório, esperado. Exemplos:

anima, animus/animosus; argentum/argenteus; aurum/ aureus; deauratus; biduum/biduanus; consuetudo/con-suetudinarius; dominus/dominicus; ecclesia/ecclesiasti-cus; fama/famosus; gratia/gratus; honor/honorabilis, honoratus; lapis/lapideus; lex/legitimus (=consuetudi-narius); lucernare, lucernarium/lucernaris; magnitudo/ magnus; marmor/marmoreus; peruitas/paruus; pascha/ paschalis; petra/petrinus; religio/religiosus; ratio/ratio-nabilis; salus/salutatio; summitas/summus; triduum/ triduanus.

Eis alguns derivados com sufixos de maior freqüência:

Adjetivos em –anus: medianus, cotidianus, triduanus, biduanus, subdiuanus, christianus, quintanus, romanus.

Adjetivos em –bilis: uenerabilis, admirabilis, affabilis, honorabilis, impossibilis (in-), rationabilis, terribilis.

Adjetivos em –osus (“sufixo genuinamente popular” (Maurer, 1959, p. 265)): arenosus, religiosus, animosus, curiosus, famosus, pretiosus.

Adjetivos em –eus (“sufixo, segundo Maurer, de “grande vitalidade em época antiga” (ibidem, p. 251): argenteus, aureus, cereus, lapideus, marmoreus, uitreus.

Adjetivos em –icus: ecclesiasticus, publicus, dominicus, clericus, modicus, permodicus, (h)olosericus.

Adjetivos em –arius: consuetudinarius, (h)ebdomada-rius, contrarius, necessarius, pomarius (Peregr. “hortum pomarium”).

Adjetivos em –alis: paschalis, orientalis, specialis (atestado a partir da época imperial, derivado de species que no sentido de “aspecto”, “aparência”, passou a designar a “espécie”, em oposição ao “gênero”, genus, -eris).

Adjetivos em –atus: deauratus, gemmatus, sublinteatus.

Adjetivos em –inus: matutinus, diuinus, petrinus, peregrinus.

Relacionados com os adjetivos estão os advérbios de modo formados com os sufixos –e, -o, -(i)ter. na Peregrinatio são freqüentes os advérbios com –e e (i)ter:

 -e: assidue, certe, graece, latine, lente, manifeste, maxime, mature, modice, publice, secure, siriste.

-ter: carnaliter, diligenter, frequenter, granditer, libenter, similiter, specialiter, spiritualiter.

 

3.2 Com relação aos verbos, os derivados ocorrentes na Peregrinatio não oferecem a mesma riqueza que os nominais. Destacamos o sufixo –sco que aparece em albescere, consuescere, illucescere, lucescere, proficisci, e o sufixo –izare, exemplificado apenas em baptizare (babtizare) e exorcizare, e, com a forma –idiare, em baptidiare.

Muito mais numerosos são os verbos formados por prefixação. São mais freqüentes os prefixos, ad, cum, de, e(ex), in, per, re: accedere, accipere, adaquare, adducere, advenire, afferre; collabi, collaudare, colligere, collocare, commanere, consecrare, conuenire, cooperire, corrumpere; decurrere, deducere, deferre, deputare; edocere, egredi, eicere, elaborare, excidere, excipere, exire; incumbere, incipere, incurrere, immorari; perdicere, perambulare, percurrere, perexire; recedere, recipere, referre, regredi, remanere, rescribere.

O prefixo servia especialmente para dar ao verbo simples um sentido novo: ire “ir”, exire, abire “sair”, “partir”, inire “entrar”. Com isto, é um dos meios de comunicar ao processo verbal diferentes aspectos: facere “fazer”, perficere “fazer até o fim”, “terminar”. A consciência da formação vocabular leva os especialistas a esse processo de metanálise pelo qual tentam depreender o sentido de uma palavra partindo dos elementos constitutivos. Mas os usuários da língua, especialmente quando a utilizam para os fins imediatos da comunicação oral, não têm presentes essas sutilezas. Então, paradoxalmente ao gosto pelas “formas cheias”, “esvaziam”-nas quando, perdida ou esquecida a função do prefixo, empregam indistintamente formas simples e prefixadas, ou, por um processo que alguns especialistas chamam de supercomposição (Väänänen, 1963, p. 100), recorrem a mais um prefixo. Väänänen diz que os verbos supercompostos proliferam na baixa latinidade. Na Peregrinatio há exemplos dessas formações: perexire, pertransire, peraccedere, perdescendere, perdiscoperire, persubire, reingredi.

Mas, a propósito da Peregrinatio seria precipitado generalizar essas considerações sobre o esvaziamento do sentido do prefixo, a pretexto de se identificarem na obra traços dessa característica do latim vulgar. É que em vários exemplos, sobretudo com o prefixo per-, a autora revela uma clara consciência da escolha do verbo simples ou do verbo com prefixo. Já havíamos anotado tal emprego quando verificamos que um autor de bem maiores recursos, Vermeer, compartilhava dessa opinião e a expôs finamente no primeiro capítulo de sua tese. Veja-se, por exemplo, este passo:

Dans son célèbre commentaire sur Égérie, Löfstedt semble croire que les composés de ce genre n’ont, chez elle, aucune nuance propre. Nous sommes, au contraire, convaincu et nous espérons pouvoir en donner plus loin des preuves nombreuses, que, sur se point aussi, Égérie a un sens inné de la langue et choisit en connaissance de cause le mot simple ou le composé. Spitzer partage cette opinion, bien que pour d’autres raisons (Vermeer, 1965, p. 23).

De fato, ao lado de 11 ocorrências de subire para 27 de ascendere, na Peregrinatio (3,4) depois de se referir às dificuldades para chegar ao cume do Sinai, diz Etéria:

Cum ergo iubente Deo persubissemus in ipsa summitate et peruenissemus ad hostium ipsius ecclesiae...

em que persubire nessa única atestação parece ter o sentido de “chegar ao ponto mais alto”, em decorrência do valor intensivo de per-. Confronte-se, aliás, com o emprego, em situações muito parecidas, de perdescenso (também única ocorrência para 33 de descendere) em 4,7: “Ac sic ergo perdescenso monte Dei peruenimus ad rubum hora forsitan decima”. Entendemos, com Vermeer, que perdescendere significa “descer inteiramente”, tendo em vista que a descida do Sinai se fazia por etapas. O autor dá a mesma explicação a perexire em 4,5: “adhuc nobis superabant milia tria, ut perexiremus montes ipsos, quos ingressi fueramus”.

Muitos autores que têm estudado o léxico latino costumam chamar a atenção para o emprego do simples pelo composto e do composto pelo simples, fenômenos que não são privativos da língua corrente, porém nela se manifestam com muita freqüência devido a duas tendências que, embora opostas, caracterizam essa variante lingüística: por um lado, a vivacidade, o exagero; por outro, o menor esforço, o “quantum satis” (Cf. ibidem, p. 30).

Vermeer estudou vários empregos do “simplex pro composito” na Peregrinatio Aetheriae: parere (2,3) e apparere (12,6); mouere por remouere (21,2) e commouere (24,10); ponere por deponere (17,1)...

Os exemplos se multiplicariam. Para o que temos em vista neste trabalho, é importante frisarmos que até agora apontamos exemplos que documentam no latim eteriano simultaneamente a presença de fatos da língua literária tradicional e de fatos considerados da língua oral que se vão fixando na língua escrita tardia.

 

3.3 Quanto aos compostos, tipo de formação a que a língua era pouco afeita, a exemplificação é muito pobre: os conhecidos benedico e maledico, auroclauus, grecolatinus. Entre os compostos em –fico, de extraordinária aceitação no latim dos cristãos, somente aedificare! Com o radical de ago, o composto fumigare.

Com reservas, incluo entre os compostos as denominações cristãs dos dias da semana com o substantivo feria: secunda feria, tertia feria, quarta feria, quinta feria e sexta feria, de enorme freqüência na 2ª parte da obra. Arrolamos no capítulo V todas as ocorrências.

 

3.4 Os autores costumam chamar a atenção para o gosto da língua corrente pelas perífrases. De fato, não é um processo privativo dessa variante lingüística, mas, em verdade, a perífrase calha bem com a tendência da língua corrente para a expressão analítica. É uma das formas de verbosidade da língua falada, sobretudo da popular, sempre ávida de expressividade, da expressão exata, nem sempre fácil de aflorar na seqüência da conversa. Daí o seu acolhimento no chamado latim vulgar e sua continuidade no latim tardio.

Não que os clássicos desconhecessem o processo. Aí está no purista César a conhecidíssima iter facere; em Cícero (e também em Plauto, Terêncio, Sêneca etc.) a perífrase carum habere por amare. Às vezes até a perífrase revela uma dura luta do escritor em busca do termo próprio. Sirvam de exemplos as tentativas de Cícero, admirável criador de palavras, para lançar o neologismo apropriado ou para escolher o termo da língua comum que substitua o helenismo: notitia rerum, depois cognitio ou intelligentia para traduzir énnoia; societas mortalium, humana societas e depois communitas, consortio, consociatio para koinonía (Cf. Marouzeau, 1949, p. 139).

Mas aqui nos interessa especialmente a perífrase de cunho popular, que serve bem à expressão do concreto e que se realiza em geral com os verbos que estão ao alcance da mão, os pitorescamente chamados verbos “passe-partout” (Vermeer, 1965, p. 16), ou verbos “fac totum” de Hoffmann (1958, p. 246): facere, habere, esse.

Éteria, na sua conhecida tendência para recorrer à língua oral, e no seu gosto das fórmulas feitas exemplifica largamente o uso das perífrases.

Alguns exemplos:

a) com facere: oblationem facere, orationem facere, ualem facere, mansionem facere, statiuam facere, commemorationem facere, aquam facere, septimanas facere, (h)ebdomadas facere, biduum facere, iactum facere, responsum facere, triduum facere, triduanum facere;

 

b) com habere: choros habere, (h)abitationes habere, concupiscentiam habere, consuetudinem habere, desiderium habere, impetum habere, spem habere, iter habere;

 

c) com esse: iter esse, necesse esse.


 

3.5 Quanto aos helenismos, fartamente atestados, é de óbvia importância o seu estudo no latim eteriano, não tivesse sido o grego a língua da primitiva pregação cristã, e não fosse a língua dominante, “ao menos na celebração do culto” (adverte Ernout), nos lugares por onde Etéria peregrinou. Aliás, ela mesma nos dá esse testemunho, quando fala do sermão do bispo aos neófitos e fiéis sobre o batismo, na oitava da Páscoa, sermão feito em grego e traduzido em siríaco e em latim:

Peregr., 47, 3-4. Et quoniam in ea prouincia pars populi et grece et siriste nouit, pars etiam alia per se grece, aliqua etiam pars tantum siriste, itaque quoniam episcopus, licet siriste nouerit, tamen semper grece loquitur et nunquam siriste: itaque ergo stat semper presbyter, qui episcopo grece dicente siriste interpretatur, ut omnes audiant [ut omnes audiant] quae exponuntur. 4. Lectiones etiam, quecumque in ecclesia leguntur, quia necesse est grece legi, semper stat, qui siriste interpretatur propter populum, ut semper discant. Sane quicumque hic latini sunt, id est qui nec siriste nec grece nouerunt, ne contristentur, et ipsis exponitur eis, quia sunt alii fratres et sorores grecolatini, qui latine exponunt eis.

Sobre helenismos há um bom material estudado por Ernout no artigo “Les mots grecs dans la Peregrinatio Aetheriae” (Cf. Ernout, 1952), de que nos valeremos especialmente aqui. Ernout distingue duas categorias:

la première comprenant les termes “ laïques”, dont certains sont entrés depuis longtemps en latin et y ont acquis droit de cité; la second se composant des mots du vocabulaire chrétien, introduits à des dates plus ou moins récentes: cette catégorie est de beaucoup la plus importante.

Entre os termos “laicos” há empréstimos antigos, já conhecidos antes do período imperial: coclea, oleum, oliua, camelus, camso, epistola, hora, petra, spelunca, balsamum, cathedra, gyrus, sabbatum, sericus, sycomorus.

E há empréstimos mais recentes: absida, cata, holosericus, metropolis, musiuum, thebeus, tumba, typus.

Entre os cristianismos podemos, com Ernout, arrolar: angelus, antiphona, apostolus, archidiaconus, baptizo (babtizo, baptidio), baptismus, baptista (Johannes Baptista), basilica (ecclesia), canon, catechumenus, christianus, clerus, clericus, diaconus, diaconissa, ecclesia, ecclesiasticus, (h)eremus, epiphania, episcopus, evangelium, eulogia, exorcizo, (h)ebdomada, (h)ebdomadarius, hymnus, idolum, laicus, martyr, martyrium (com o sentido de “martírio” e de “local do martírio” ou “local consagrado ao mártir”), manna (hebraísmo introduzido no latim pelo grego), misterium, monachus, monasterium, neofitus, pascha, paschalis, patriarcha, pentecoste, presbyter, propheta, prophetissa, psalmus, simbolum (sym-), thimiaterium.

Quanto aos empréstimos de sentido, que Ernout chama “calques sémantiques”, o eminente latinista arrola no latim eteriano: carnaliter, spiritualiter, communio, communico, concupiscentia, conpetens (=baptismi candidatus), corpus (esse in corpore), cortina, dominus, dominicus, dominae (=kyríai), feria, fides (=a fé cristã), fideles, filius e filia (no sentido espiritual), frater, soror, gentes, gratia (Dei), gratiae (gratias agere), memoria, memoriale, oblatio, offero (“oferecer a Deus), patior, passio, praedico, procedo, processio, repromissio, resurrectio, sacramentum, saeculares (“leigos”), sanctus, consecro (“consagrar uma igreja”), scriptura, septimana, septimana maior, spiritus, uirgines (= parthenae), uirtutes (=miracula).

Ernout no início do artigo, com a intenção de separá-los das duas categorias referidas, chamou atenção para dois outros tipos de helenismos:

a) os nomes que Etéria explica ou traduz, certamente porque os sentia como estranhos, pouco familiares: aputactita, ascitis, cathecisis, come, encenia ou enceniae, eortae, licinicon, monazontes, parthenae;

 

b) meras transcrições “qu’on ne saurait considérer comme des emprunts”: archiotepa (-tipa), genesis, mesopotamenus, siriste, bem como alguns nomes próprios (Anastasis, Eleona, Imbomon). Dos nomes próprios, especialmente geográficos, que a autora transcreveu como ouviu – “sans pouvoir adapter leur forme à leur fonction gramaticale” – falaremos na morfologia.

Ernout não estuda os nomes próprios. Aliás, Van Oorde também não os arrolou e assim justifica essa exclusão:

Nomina propria utpote parum ad Latinitatem Aetherianam spectantia operi meo inserenda non putaui. Accedit quod fere omnia externa sunt quodque uiri clarissimi, qui nouum Lexicon Latinitatis medii aevi componendum moderantur, operis sociis praeceperunt ne nomina propria curarent (Oorde, 1963, p. 15).

Arrolou-os, porém, Hélène Pétré na sua edição do Itinerarium Aetheriae, p. 277-280: Alexandria (3, 8-9, 6), Anastasis (24, 1-24, 3-24, 4 etc.) Antiochia (17, 3-18, 1), Egyptus (3, 8-5, 9-7, 1, etc) Eleona (25, 11-30, 2-30, 3, etc), Eufrates (Euphrates) (18, 2-18, 3), Hisauria (Isauria) (22, 2-23, 1), Martyrium (27, 3-30, 6-30, 2 etc.), Moyses (2, 2-3, 5-3, 6 etc.), Ponpeiopolis (23,1), Tharso (22, 1-22, 2-23, 1-23, 6) etc...

O levantamento de Ernout mereceria alguns reparos e um confronto com a classificação de cristianismos da escola holandesa. Adotamo-lo, porém, pela validade do conjunto e porque satisfaz ao objetivo deste capítulo.

 

4. Até aqui tratamos especialmente de palavras lexicográficas. Das palavras gramaticais preferimos falar no capítulo seguinte.

Um outro enfoque do léxico eteriano poderá dar-nos uma visão menos fragmentária e, afinal, nos apontar a preferência da autora por “classicismos” ou “vulgarismos”. Entendemos que é preciso considerar a tradição escrita em que os especialistas têm arrolado elementos populares (tanto nos autores profanos, quanto nos cristãos), sem, contudo, perder de vista a continuidade românica.

Volto, então, aos preliminares que Coseriu estabeleceu ao tratar do vocabulário latino-vulgar (Coseriu, 1956p. 54-63).

Com efeito, num total aproximado de 1300 palavras, encontram-se na Peregrinatio Aetheriae:

a) Palavras que pertencem tanto ao latim literário, quanto ao latim corrente do período imperial, época em que é mais considerável a freqüência de vulgarismos nos textos. Enquadram-se tais palavras nas “isoglosas latinas generales”, responsáveis pela unidade românica, as quais socialmente pertencem a todas as classes e cronologicamente são atestadas na língua corrente em todo o período latino: aqua, homo, filius, filia, audire, pater, mater, bonus, altus, magnus, uidere, cantare, cantus, caelum, corpus, terra, dormire, de, in, contra, locus, habere, credere, facere, manus, annus, mons, uallis, mulier, mare, dicere, hora, per, oculus, fons etc.

 

b) Palavras igualmente conhecidas de todo o latim, as quais, porém, na época imperial já se distribuem em dois grupos: um preferentemente da língua literária, outro da língua corrente.

Aqui é interessantíssimo o comportamento de Etéria. Às vezes, uma indiscutível preferência pela forma clássica; às vezes, pela forma vulgar; às vezes o emprego de ambas as formas. Nos exemplos em que realmente se trate de sinônimos intermutáveis, entendemos ser lícito pensar num período de transição, de norma flutuante, em que os elementos populares vão mais fundamente penetrando na língua escrita. Etéria ora segue a tradição escolar, ora acolhe os elementos da língua corrente, nessa época largamente difundidos pela pregação cristã. Assim, poderíamos distinguir no léxico eteriano umas formas preferentemente clássicas outras clássico-vulgares, ou mesmo vulgares. Para ressaltar a oposição (ou, talvez melhor, a preferência) assinalamos com freqüência zero a forma não empregada por Etéria:

aequor, pelagus

tellus

ager

lorum

pulcher

magnus

ualidus

alius

omnis

edere (esse)

potare

ferre

domus

 

fluere

ianua

lápis

ignis

flere

caput

etc

(0)

(0)

(2)

(0)

(13)

(4)

(0)

(47)

(194)

(0)

(2)

(4)

(17)

 

(2)

(0)

(11)

(4)

(0)

(10)

 

mare (17)

terra (27)

campus (8)

corrigia (2) (em duas transcrições bíblicas)

formosus, bellus (0)

grandis (21)

fortis (2)

alter  (4)

totus (52)

manducare (13), comedere (0)

bibere (2)

portare (2)

casa (0), mansio (23, das quais 16 no sentido de diversorium), hospitium (1)

currere (2)

fores (0)m porta (13), ostium (10)

petra (5)

focus (0)

plorare (2)

testa (0)

 

 

c) Palavras que não estão nos autores clássicos. Trata-se de inovações da língua corrente ou de empréstimos posteriores à época clássica, ou mesmo de velhas palavras populares ou dialetais, que a língua clássica não acolheu, pertencentes à língua corrente: pisinnus (3) (duas vezes como substantivo e uma como adjetivo), da linguagem infantil; cf. latim clássico par-uus, que na Peregrinatio ocorre uma só vez no plural e com o sentido de pauci; septimana (20) ao lado de hebdomas (3); cortina (1) no sentido do clássico aulaeum, não atestado na Peregrinatio.

Neste grupo se destaca a contribuição cristã, o terceiro elemento referido no capítulo II, através de grande número de helenismos formais, de neologismos e de empréstimos de sentido, como já vimos.