Circulação da ciência
a responsabilidade textual

Darcilia Marindir Pinto Simões
(UERJ/PUC-SP/SUESC)

 

RESUMO

 

Pautada num dos objetivos deste evento que é ampliar os estudos das áreas de Lingüística e Letras aplicados à edição de textos e considerando minha experiência de treze anos à frente do projeto de extensão Publicações Dialogarts, decidi aproveitar a oportunidade para falar sobre a responsabilidade da produção de textos que se destinem a fazer circular as descobertas técnicas e científicas.

Nessa comunicação procuramos focalizar questões relacionadas à adequação do texto aos seus fins, observando em especial a seleção vocabular, o respeito ao uso padrão, à área e subárea em que se insere o tema e o compromisso com a ampla veiculação lingüística e a difusão da língua nacional.

Entendo que a divulgação científica, hoje ampliada e facilitada pela Internet, precisa ser a cada dia mais cuidada, em benefício não só da circulação de informações precisas, mas também da divulgação de textos que sirvam de modelo para os iniciantes, no que tange à expressão de teorias e produtos em língua nacional.

Minha experiência na análise de originais para publicação nos diversos Conselhos Editoriais e Consultivos de que participo tem possibilitado reunirem-se dados relativos à redação que chegam a preocupar. A inserção não-parcimoniosa de expressões do uso popular nos textos técnico-científicos, em última análise interfere na confiabilidade do que lá está dito.

Assim sendo, essa comunicação visa promover uma reflexão e estimular algumas atitudes quanto à produção e à aceitação de originais para divulgação científica.


 

Do objetivo da comunicação

Pautada num dos objetivos deste evento que é ampliar os estudos das áreas de Lingüística e Letras aplicados à edição de textos e considerando minha experiência de treze anos à frente do projeto de extensão Publicações Dialogarts, decidi aproveitar a oportunidade para falar sobre a responsabilidade da produção de textos que se destinem a fazer circular as descobertas técnicas e científicas.

É indiscutível a dificuldade de circulação da produção acadêmica, a despeito da evolução dos processos com o avanço cibernético. O projeto Publicações Dialogarts enfrentou problemas nos últimos anos noventa e teve de optar pela publicação em meio digital, publicações virtuais. Esse procedimento garantiu o atingimento do objetivo de publicar, porém, aumentou a demanda de artigos e, por conseguinte, o trabalho da equipe de produção: bolsistas de extensão e de estágio interno complementar.

Esse acréscimo de trabalho decorre, em especial, da necessidade de revisão gramatical dos textos recebidos. O projeto não opera com revisão técnica, senão com apreciação por Conselho Consultivo. No entanto, mesmo aprovados pelo mérito, os textos nem sempre estão totalmente prontos para editoração.

As bolsas obtidas em duas rubricas atendem a objetivos distintos: as de extensão (EXT) atuam na editoração eletrônica; enquanto a bolsa de estágio interno (EIC) se destina à revisão gramatical dos originais.

Contrariamente ao que possa parecer, a editoração dos textos acadêmicos exige um trabalho de revisão gramatical muito sério e criterioso, além de ascético. Por serem produzidos por mestres e doutores (em sua maioria), supõe-se que os textos cheguem prontos para publicação. Infelizmente não! Há casos em que é preciso entrar em contato com o autor para que seja realizada a alteração gramatical em prol da legibilidade.

Nesta comunicação procurei focalizar questões relacionadas à adequação do texto aos seus fins (observando em especial a seleção vocabular, o respeito ao uso padrão), à área e subárea em que se insere o tema e o compromisso com a ampla veiculação lingüística e a difusão da língua nacional. Isso porque, além da questão levantada em torno dos estrangeirismos (cf. Projeto de Aldo Rebello), é preciso observar a incorporação de formas não-padrão nos artigos acadêmicos em especial, uma vez que estes, além de veicularem descobertas científicas e técnicas, divulgam a língua nacional em uso específico (jargão técnico) inserido no contexto formal do uso padrão. No entanto, a liberdade ilimitada que ora caracteriza nossa sociedade é documentável também no uso acadêmico da língua nacional (salvo exceções), e dessa liberdade decorrem problemas no ensino.

 

Do texto acadêmico e a língua padrão

Estudantes de graduação estão sempre discutindo a abonação de certas formas que, apesar de rejeitadas pelos professores com que interagem, encontram-se registradas em texto técnico, sem qualquer ressalva, mostrando-se como formas de uso corrente na língua padrão. Facilmente serão encontradas formas como:


 

 

A nível de

Em vez de em nível de

Acessar

Substituindo ativar, estimular, acionar, etc.

Colocar

No lugar de dizer, enunciar, pronunciar, proferir, exprimir, enunciar ou declarar por escrito; exclamar, bradar, ensinar, preceituar, asseverar, afirmar, contar, narrar, referir, recitar, declamar, indicar, mostrar, denotar, etc.

Com certeza

Equivalendo a talvez, certamente, absolutamente, por certo, etc. (Deixando incerto o seu valor semântico.)

De repente

Substituindo conectivos de diversa ordem. (Deixando incerto o seu valor semântico.)

Deletar

Em vez de apagar, extinguir, desmanchar, fazer desaparecer; suprimir, etc.

Detonar

No sentido de deflagrar, eclodir, iniciar, etc.

Enquanto

Em lugar de como e de durante. (Deixando incerto o seu valor semântico.)

Locuções verbais gerundiais

Substituindo o futuro do presente. (Imprimindo imprecisão temporal ao que se diz.)

Tipo assim.

Em lugar de como, por exemplo, à guisa de ilustração, etc.

Abuso do sufixo –izar

Forma nova

Forma preexistente

Inicializar

Iniciar

Protocolizar

Protocolar

Complementarizar

Complementar

Proporcionalizar

Proporcionar

Esses são uns poucos exemplos de formas ou usos extravagantes da língua presentes em artigos acadêmicos.

Ainda que seja indiscutível a mudança ou evolução lingüística, é também irrefutável que a língua tem dinâmica própria para tal. Em contraponto, a educação lingüística se ocupa da permanência das formas com vistas a garantir a interação, muito especialmente no plano sincrônico. No entanto e a despeito disso, é possível documentar em textos acadêmicos de autoridade (escritos por autores reconhecidos no âmbito acadêmico) certa permissividade que colide com a meta do ensino da norma gramatical. Não se trata de conservadorismo, mas de preocupação com o texto exemplar. O estudante precisa de modelos a seguir. Portanto, a leitura freqüente de textos eivados de coloquialismos ou mesmo de criações neológicas desnecessárias serve como fermento da insegurança lingüística de uns e do relaxamento verbal de outros.

 

Da variação lingüística
e uso padrão sem preconceito

A variação lingüística é um fato. A extensão continental do Brasil também. Mas nem a variação da língua nem a extensão geográfica autorizam ou estimulam o descompromisso com o domínio da variedade padrão. Isto porque é esta a forma média da língua nacional que se presta não só a neutralizar as diferenças, mas principalmente a garantir a interação verbal em todo o país.

A questão do preconceito lingüístico é usada muitas vezes como argumento para essa “flexibilização” (forma que ganhou curso em 1996 – [Aurélio, s.u.]) verbal no âmbito acadêmico. No entanto, a interação relaxada e simplificada nas classes do ensino superior já ocorre desde os anos setenta, permitindo assim uma aproximação maior entre docentes e discentes. Todavia, essa prática não significa uma abolição do uso formal da língua, tampouco autorização para expressão escrita acadêmica em registro coloquial.

Veja-se o que diz Evanildo Bechara[1]:

...que o aluno saiba escolher as modalidades adequadas a falar com gíria, a falar popularmente, a saber entender um colega que veio do Norte ou que veio do Sul, com os seus falares locais, e que saiba também, nos momentos solenes, usar essa língua exemplar, que é o patrimônio da nossa cultura e que é o grande baluarte que esta Academia defende.

Os ouvintes ou leitores desta comunicação hão de convir que a educação lingüística é a ampliação dos horizontes verbais dos estudantes, por conseguinte, ao lado de uma fala mais informal em classe deve acontecer o convívio com a escrita formal, com vistas a não só familiarizar o estudante com o modelo, mas principalmente instrumentalizá-lo para usos futuros.

As mudanças no cenário da escola nacional oriundas da Lei 5692/71 (Lei Passarinho) propiciaram a convivência de classes sociais distintas no mesmo espaço escolar. Disso decorreu a crise no ensino da língua, uma vez que correntes didáticas e psicológicas começaram a discutir o problema do ensino da língua padrão para sujeitos de origens tão variadas e díspares. Tais correntes instalaram paulatinamente um caos na escola, pois os professores deveriam operar com a fala original dos alunos ao mesmo tempo que lhes deveriam transmitir o modelo padrão da língua nacional. Questões relacionadas às diferenças individuais coloridas em tom mais forte em função da luta pela redemocratização, pela cidadania, pelos direitos humanos e etc. acabaram por desorientar a escola, sobretudo quanto ao ensino da língua nacional, e o resultado é o que hoje temos: estudantes que chegam semi-alfabetizados na escola superior.

Dessa situação emerge a urgência da melhoria da qualidade do ensino da língua e isso depende fundamentalmente do acesso à leitura de textos construídos conforme a norma padrão, para que a imersão no uso formal da língua escrita enriqueça o repertório e o domínio verbo-estrutural dos estudantes.

 

Da revisão de textos e rigores de correção

A preparação de originais para publicação tem sido uma excelente experiência-termômetro da situação da língua padrão no Brasil. O Projeto Publicações Dialogarts, em sua face de Estágio Interno Complementar tem convivido com a insegurança verbal no uso padrão por parte de autores dos artigos remetidos e de bolsistas-revisores. Aqueles, em função ora da pressa da produção ora do convívio com formas não-padrão em textos acadêmicos com que alimentam suas pesquisas, produzem textos que, se submetidos aos rigores empregados na correção de redações de vestibulares por exemplo, não obteriam boa classificação ou seriam reprovados. Veja-se aí a incoerência de tratamento da escrita acadêmica: do neófito (vestibulando) exige-se a língua padrão escorreita e do estudioso titulado (mestres e doutores) exige-se apenas a novidade técnico-científica.

É preciso rever posições. Bordões políticos sobre preconceitos, exclusões, etc. não podem ser pilares de uma escola inútil, que não prepara os sujeitos para uma prática social eficiente. Essa prática exige domínio da língua que organiza uma nação, a língua dos documentos, a língua padrão. Independentemente de qual metodologia se use, o produto final esperado é um sujeito dotado de polivalência verbal, o dito “poliglota em sua própria língua”, capaz de interagir com falantes dos mais variados usos, sejam regionais sejam sociais. No entanto, a Lei 5692/71 formou um significativo grupo de indigentes lingüísticos, em decorrência da não-preparação docente para enfrentar e interagir com a clientela plural trazida pela democratização das vagas na escola pública, além da multiplicação de dispositivos técnico-pedagógicos e legais coibidores da ação docente no que tange à correção dos produtos discentes. Corrigir tornou-se ato criminoso, objeto de constrangimento, de desrespeito à individualidade entre outras coisas. Assim, o sujeito sai da escola sem a necessária disciplina lingüística, do que resultam quase sempre inabilidade e impropriedade na expressão verbal em situações mais formais.


 

Da utilidade da Internet e da
responsabilidade com a difusão da língua

Um instrumento valioso no suprimento das falhas apontadas é a comunicação digital pela Internet. Um texto produzido aqui é posto em circulação em tempo recorde por todos os cantos do mundo. Por isso, o cuidado com a escritura se mostra mais importante. Desde a proteção da imagem do autor até a difusão da língua nacional, verifica-se a relevância do esmero na expressão verbal escrita acadêmica, em especial.

Entendo que a divulgação científica, hoje ampliada e facilitada pela Internet, precisa ser a cada dia mais cuidada, em benefício não só da circulação de informações precisas, mas também da divulgação de textos que sirvam de modelo para os iniciantes, no que tange à expressão de teorias e produtos em língua nacional.

 

A escola, o saber idiomático
e a confiabilidade do texto

Para referendar a posição de que a escola deve formar bons falantes, aqueles capazes de comunicar-se eficientemente, transcrevo trecho do mestre Evanildo Bechara[2]:

Ao saber expressivo ou competência textual corresponde o saber estruturar textos, em consonância ou com atenção aos fatores gerais do falar, isto é, o falante, o destinatário, o objeto e a situação, já que há formas que dizem respeito a esses fatores. Assim, por exemplo, há de se levar em conta como falar com os superiores hierárquicos, com os mais velhos, com as senhoras, com as pessoas de pouca instrução, com as crianças. Às vezes, há normas rígidas, ou quase rígidas, na estruturação formal de um texto, como, por exemplo, se se trata de um soneto ou poema, há de ter uma forma fixa de quatorze versos; de um ofício, de um requerimento, de um telegrama, ou de uma dissertação acadêmica.

Segundo o excerto, é indispensável o ajuste verbal ao contexto de comunicação, levando em conta: tema, objetivo – destinatário – momento e local da comunicação – relação social entre interlocutores, etc. Desse ajuste resultará a validação ou não do que está sendo comunicado.

Minha experiência na análise de originais para publicação nos diversos Conselhos Editoriais e Consultivos de que participo tem possibilitado reunirem-se dados relativos à redação que chegam a preocupar. A inserção não-parcimoniosa de expressões do uso popular nos textos técnico-científicos, em última análise interfere na confiabilidade do que lá está dito.

Em outras palavras: a validação ou confiabilidade de um texto é condicionada à autoridade de quem o assina ou profere. Ainda que possa parecer anacrônico, a aparência é elemento garantidor da validação de atos sociais. Da mesma maneira que se deve ajustar a vestimenta ao ato social, é indispensável ajustar o estilo verbal empregado ao ato de comunicação. Não se escreve uma carta familiar da mesma forma que se produz um requerimento.

No entanto, em função de equívocos político-pedagógicos, o ensino da língua nacional tem sido prejudicado, da mesma forma que vem sendo prejudicada a circulação do modelo formal da língua por meio de textos técnico-científicos, ou acadêmicos, em especial pela Internet.

Sob o álibi de que a língua é dinâmica, mutante, intelectuais vêm inserindo em seus textos formas não-chanceladas pela gramática da norma culta. Não que se queira promover uma ditadura lingüística, mas que não se promova uma anarquia verbal tal que desestimule o estudante de buscar assimilar a língua no uso formal, apoiando seu desinteresse na falta de um padrão que valide sua produção. Isto é: se cada um escreve como bem lhe apraz, para que perder tempo tentando assimilar a gramática da língua culta (ou padrão)?

Assim sendo, esta comunicação visa promover uma reflexão e estimular algumas atitudes quanto à produção e à aceitação de originais para divulgação científica, considerando não apenas o conteúdo, mas dedicando especial atenção à forma, uma vez que a difusão da ciência inclui a expansão do saber idiomático.[3]

 


 


[1] Trecho de Conferência proferida em 4/7/2000 na Academia Brasileira de Letras, dentro do ciclo de conferências "A Língua Portuguesa em Debate".

[2] “Norma culta e democratização do ensino”.. Disponível em           www.novomilenio.inf.br/idioma/20000704.htm

[3] Texto desprovido de referências bibliográficas.