a edição de textos como preservação
da cultura e da história de um povo

José Pereira da Silva (UERJ)

 

Desde sua origem, a Filologia (que então se confundia com a Crítica Textual) se dedica a preservar a cultura dos povos através de suas línguas, editando, interpretando e explicando textos literários e filosóficos ou preparando edições e interpretações de textos importantes como a Bíblia.

Nessa tarefa da edição de textos, a Filologia é disciplina auxiliar de todas as ciências e tecnologias, pois é através dela que as idéias dos grandes intelectuais (artistas ou técnicos) são preservadas em sua forma mais próxima possível da vontade de seus autores, sejam escrivães (como Pêro Vaz de Caminha), naturalistas (como Alexandre Rodrigues Ferreira), poetas (como Camões ou Gregório de Matos), filósofos, historiadores, políticos, oradores etc.

A Crítica Textual, aplicada à edição de textos históricos, científicos e literários, é uma das atividades filológicas de maior impacto na preservação da cultura dos povos através da preparação desses documentos para a divulgação impressa, digital ou virtual.

 

INTRODUÇÃO

“A tarefa básica dos filólogos consiste em salvar os textos da destruição material”, segundo Lausberg, que poderá ser realizada de três modos: através do magistério, em que o filólogo-docente repete a informação repetidamente até que seus discentes a guardem na memória; através da crítica textual, em que o filólogo-editor vigia para que o teor original dos textos seja preservado ou restabelecido, e através da busca de documentos inteiramente perdidos. (Cf. Lausberg, 1981: 21-22)

“A tarefa central dos filólogos consiste na conservação do sentido que se deve dar ao teor do texto”, continua Lausberg (p. 22), visto que as alterações sociais, culturais, lingüísticas, econômicas e numerosas outras produzem certas dificuldades na interpretação do verdadeiro sentido dos textos mais antigos, motivo pelo qual o filólogo é convocado para prestar os seus serviços.

Cabe ao filólogo brasileiro, a preservação da cultura nacional e clássica através da língua, com prioridade na atividade de crítica de textos.

Alguns trabalhos já realizados e outros em realização serão divulgados, tais como: as Questoens Apologeticas... do Pe. Manoel da Penha do Rosário (Rosário, 1995), que defende o direito de cristianizar os índios em suas línguas; o Roteiro da Viagem... do Pe. José Monteiro de Noronha, que inicia a Historiografia Geográfica da Amazônia (Silva, 1997); os Autos da Devassa (Samet, 1994), que relatam a prisão dos Letrados do Rio de Janeiro; a Viagem Filosófica... de Alexandre Rodrigues Ferreira, com os relatos da única expedição científica do Brasil, no período colonial e a Obra Poética de Gregório de Matos etc., que traz os mais cruciais problemas da crítica textual e literária brasileira.

 

A PRESERVAÇÃO DA CULTURA PELOS FILÓLOGOS

Heinrich Lausberg foi muito feliz na síntese que fez em seu livro Lingüística Românica quando descreveu em poucos parágrafos a tarefa social dos filólogos no texto que abaixo transcrevemos.

Verificamos, às vezes, que as bibliotecas que mais se preocupam por preservar documentos extremamente raros costumam guardá-los a sete chaves, em cofres ou seções a que só alguns privilegiados têm acesso.

Atuantes de uma sociedade que precisa conhecer sua cultura e sua história, os filólogos buscam esses documentos e preparam diversos tipos de edições (mecânicas, diplomáticas, diplomático-interpretativas, críticas etc.) com o objetivo de impedir o seu desaparecimento completo (como ocorreu com o quarto tomo do códice de Gregório de Matos da Coleção Celso Cunha) ou sua deteriorização inevitável provocada pelos maus tratos do tempo.

Ultimamente, graças aos recursos da tecnologia da comunicação e da informática, tais textos podem ser reproduzidos e disponibilizados até virtualmente, de modo que já não se torna necessário o deslocamento do filólogo, que tinha de viajar dezenas, centenas e milhares de quilômetros para verificar in loco sua fonte de pesquisa.

A tarefa social dos filólogos refere-se, de facto, aos textos de uso repetido: os filólogos são encarregados de vigiar a tradição litúrgica e também literária da comunidade. A tarefa de vigiar realiza-se em três campos concêntricos: [tarefa básica, tarefa central e integração]. (Cf. Lausberg, 1981: 21)


 

TAREFA BÁSICA DOS FILÓLOGOS
SALVAR OS TEXTOS DA DESTRUIÇÃO

“A tarefa básica dos filólogos consiste em salvar os textos da destruição material.  Esta salvaguarda pode-se exercer de várias maneiras”. (Ibidem)

Sabemos que nem tudo que o homem pensa e faz está rescrito, pois o agrafismo na cultura da humanidade sempre foi e ainda é muito grande.

Exemplo que nos preocupa primordialmente é o que procuramos registrar no Dicionário Brasileiro de Fraseologia, ainda inédito, considerando que as locuções, frases feitas, provérbios, anexins e apotegmas, assim como as parlendas, adivinhas e contos populares etc. somente aparecem em textos muito depois de sua divulgação e popularização oral.

Por isto, procurando facilitar o acesso do povo aos seus textos, o ensino da leitura e da escrita, assim como o estabelecimento das respectivas regras ou normas, é uma atividade intrínseca do filólogo:

Numa sociedade sem escrita o filólogo ocupa o lugar do professor que deve transmitir os textos à memória da nova geração desta sociedade. Também depois de a sociedade ter adoptado a escrita mantém-se este encargo do filólogo para intensificar de maneira aviventadora a tradição. (Idem, ibidem)

Considerando a preocupação principal do filólogo brasileiro, reduzido a umas poucas dezenas de profissionais efetivamente habilitados e umas poucas centenas de abnegados e dedicados colegas que os auxiliam, no ensino superior e nos centros de pesquisa, a atividade mais próxima do possível está ligada às diversas formas de editoração.

Depois da introdução da escrita o filólogo conserva os textos numa biblioteca pública e cuida de que se multipliquem por cópias. Daqui resulta a tarefa da crítica textual cuja função original consiste na vigilância sobre as cópias feitas na própria oficina da biblioteca. Mas o filólogo pode estender esta tarefa também às cópias produzidas nas oficinas de outras bibliotecas. Como a divulgação de um texto, conforme o cálculo das probabilidades, leva à variação flabeliforme do seu teor, a crítica textual esforçar-se-á em reconhecer este fenômeno para, assim, poder restabelecer o teor original do referido texto. (Idem, ibidem)

A edição do Roteiro da Viagem do Pe. Dr. José Monteiro de Noronha pelos rios Amazonas e Negro, por exemplo, resulta do confronto de quinze manuscritos e de duas edições impressas, além de diversos testemunhos externos e uma versão resumida. (Silva, 1997) mais detalhadamente comentado na tese de doutorado ainda inédita, A Amazônia no Século XVIII: Um roteiro de viagem”, defendida em 1992 na Faculdade de Letras da UFRJ.

Visto que também textos inteiros se podem perder, a tarefa conservatória do filólogo pode-se estender ao redescobrimento de textos perdidos mas conservados na memória de comunidades menos conhecidas (p. ex. no caso do descobrimento de romances espanhóis entre os judeus no Norte da África) ou em bibliotecas e depósitos (covas no Mar Morto, montões de entulho no Egipto). (Idem, p. 22)

Casos interessantes de redescobrimentos de grande importância para a recuperação de informações históricas pouco ou mal conhecidas são numerosos.

Absolutamente inédito e jamais referido em qualquer documento de que tenhamos notícia é o texto das “Questoens Apologeticas”, que traduz e sintetiza um documento maior, escrito em latim, pelo padre mercedário Manuel da Penha do Rosário. Redescoberto por José Ariel Castro, é o mais extenso e seguro documento que analisa criticamente o processo de imposição da língua portuguesa aos índios brasileiros (principalmente da Amazônia), visto ter sido escrito como peça de defesa diante da Inquisição num momento em que o Marquês de Pombal fazia o maior esforço para lusitanizar a região das novas conquistas realizadas além da linha do Tratado das Tordesilhas e justificar o princípio do iuris possidetis  (Cf. Silva, 1987, 1987b, 1994 e Rosário, 1995).

Não trataremos aqui da única possibilidade de restabelecimento do quarto tomo do códice de Gregório de Matos da Coleção Celso Cunha porque será tema de trabalho que apresentaremos no VI Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, na oportunidade em que pretendemos apresentar a edição do códice em versão digital, com transcrição diplomática e reprodução mecânica dos três primeiros e restauração do quarto tomo, com auxílio das informações contidas na edição preparada por James Amado.

 

TAREFA CENTRAL DOS FILÓLOGOS
CONSERVAR O SENTIDO DO TEXTO

O leitor comum, em contato com um texto antigo ou produzido num contexto cultural muito diferente do seu, não entenderá, naturalmente, muitos pontos que deverão ser ilustrados pelo editor, através de notas, glossários, mapas etc., dependendo do caso.

A tarefa central dos filólogos consiste na conservação do sentido que se deve dar ao teor do texto.  Pressupõe-se o facto de que o sentido dos textos não se evidencia no mero teor do texto. Enquanto os textos de uso único[1] têm um sentido quase sempre inequivocamente fixado pela situação em que se produzem (sendo assim a situação um elemento adicional de interpretação), os textos de uso repetido[2] mantêm uma ligação menos pronunciada com a respectiva situação. É de importância especial o facto de que o conjunto da situação se pode modificar por alterações culturais (industrialização) ou lingüísticas (p. ex. desuso de palavras que antes eram correntes). Com a situação modificada confronta-se o teor do texto de uso repetido que, graças ao cuidado dos filólogos, não foi alterado. Na situação modificada a comunidade poderia entender mal ou de maneira nenhuma este texto. Os filólogos têm a tarefa de conservar também o sentido antigo do texto por eles conservado. Por isso têm de servir de intermediários entre o texto e a comunidade: têm de se tornar intérpretes do texto que já não se compreende ou se entende mal. Esta tarefa dos filólogos chama-se ‘interpretação’. (Idem, p. 22).

 

INTEGRAÇÃO DOS TEXTOS

A integração dos textos se faz através de organização de bibliotecas especializadas, publicações seriadas especializadas, coleções etc., onde o filólogo costuma atuar como organizador ou editor, ilustrando o trabalho com anotações, glossários etc.

As duas tarefas dos filólogos citadas não só se referem a um texto único, mas também a múltiplos textos. Esta multiplicidade implica, como terceira tarefa do filólogo, a integração dos textos em conexões mais amplas. [...]

A observação do princípio cronológico leva à história da literatura que é, por sua vez, parte da história da cultura e da história geral.

A tarefa básica e a tarefa central realizadas numa variedade de obras levam a experiências filológicas cuja colecção e interpretação é assunto de uma fenomenologia literária que se chama ‘teoria geral da literatura’. (Ibidem).

A preocupação com a edição dos textos antigos e modernos de um povo é um índice seguro de seu profundo sentido de cultura e de patriotismo, pois a memória se preserva nos textos que se perpetuam através das diversas formas de edição.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LAUSBERG, Heinrich. Lingüística românica. Tradução de Marion Ehrhardt e Maria Luísa Schemann. [Lisboa]: Calouste Gulbenkian, [1981].

ROSÁRIO, Manuel da Penha do, Pe. Língua e inquisição no Brasil de Pombal (1773). Introdução e notas de José Pereira da Silva. Rio de Janeiro: UERJ, 1995.

SILVA, José Pereira da Silva. A Amazônia no século XVIII: Um roteiro de viagem. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 1992.

––––––. A imposição da língua portuguesa aos índios. As Questoens Apologeticas do Pe. Manuel da Penha do Rosário. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 148(355):164-177 e 230-281, abr./jun.1987.

––––––. Língua vulgar versus língua portuguesa: a defesa do Pe. Manuel da Penha do Rosário contra a imposição da língua portuguesa aos índios por meio de missionários e párocos (1773). Anais da Biblioteca Nacional, 1994, Vol. 113(1993), p. 7-62.

––––––. Questoens apologeticas: edição crítica. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 1987.

––––––. Roteiro da viagem do Pe. Dr. José Monteiro de Noronha pelos rios Amazonas e Negro. O primeiro tratado de Geografia da Amazônia escrito por um brasileiro. Ilustrações de Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1997.

SAMET, Henrique et alii (Coord.). Autos da devassa: Prisão dos letrados do Rio de Janeiro (1794). Estabelecimento do texto, atualização ortográfica e revisão técnica por José Pereira da Silva. Niterói: APERJ; Rio de Janeiro: UERJ, 1994.


 


 

[1] “O discurso (seja de uso único, seja de uso repetido) pode-se também qualificar de [...] ‘texto’(‘tecido’)... (Lausberg, 1981: 20-21). Quando o discurso, considerado pelo falante como concluso, tiver tido o êxito da persuasão ou quando tiver fracassado em conseqüência do êxito da parte contrária, o discurso passa a ser um facto detalhado da história e perde toda a função actual. Um tal discurso consumível é um discurso de uso único (pragmático)”. (Idem, p. 19-20).

[2] O texto de uso repetido corresponde ao um “discurso de uso repetido (literário) e representa, fenomenologicamente, aquilo que, liberto da sua ligação ao ritmo litúrgico do tempo, se chama poesia ou (bela) literatura. O uso repetido pressupõe a conservação do discurso na memória de, pelo menos, uma pessoa (geralmente de toda uma escola de cantores ou também do conjunto da comunidade celebrante) ou através da escrita.  Assim nasce a tradição literária.” (Lausberg, 1981: 20).