LIVROS NÓS TEMOS... MAS CADÊ OS LEITORES?
Simone Xavier de Lima (UNIABEU)
simonelima@educacional.com.br
CARTAZ PARA UMA FEIRA DO LIVRO
Os verdadeiros analfabetos
são os que aprenderam a le
e não lêem.(Mário Quintana)
O pensamento aparentemente radical do poeta talvez nos assuste por sua objetividade. Saber ler e não fazê-lo é pecado passível de dura punição: é estar alienado do mundo, tal qual o analfabeto que, limitado por seu desconhecimento de letras, palavras e contextos, não consegue inteirar-se por completo no mundo que o cerca, por lhe faltar uma visão letrada.
Pesquisas recentes mostram, porém, que o número de analfabetos tem diminuído. E o número de lançamentos, publicações e vendas de livros, aumentado. A despeito disso, nosso país continua com baixos índices de leitores. Que razões sustentam e explicam a existência deste hiato?
Se os leitores estão ausentes, motivos existem para esta ausência. Sobre isso trata esta comunicação. O presente trabalho busca provocar algumas reflexões sobre leitores, leitura, acesso a livros e políticas de incentivo à leitura. Nossa proposta é que, num tom de conversa entre professores que se angustiam e desejam ser capazes de realmente incentivar alunos leitores, a gente permita que o tema nos incomode, nos questione, nos impulsione a pensar sobre nossas práticas enquanto profissionais e também enquanto leitores.
Os que aprenderam a ler ... e não lêem
Se se fala tanto do prazer da leitura e que ler é viajar ao encontro de mundos de fantasia e plena felicidade, causa-nos estranheza o fato de haver os que aprenderam a ler e não lêem. Uma vez conquistado pelo poder encantatório das letras é possível retroceder e abandonar o prazer da atividade de leitura ocultando-se no silencioso mundo da não-leitura? Em caso afirmativo, que motivos estariam envolvidos nesta ação?
Segundo Thomas e Moorman (Apud Cramer, 2001: 21),
O estudante que pode ler, mas opta por não ler, é provavelmente o problema mais crucial com que se defrontam hoje nossas instituições de ensino. Não é o analfabetismo que estamos combatendo, mas a “aliteratura”.
O problema citado pelos autores e já anunciado por Quintana, coloca-se diante de nós com volumosidade e ares de ser irresolúvel. Combater o analfabetismo seria uma tarefa relativamente simples, passível de realização. Entretanto, a questão é: como lutar contra a “aliteratura”, isto é, esta crise de negação ao objeto livro e a qualquer esforço no sentido de desenvolver práticas voltadas para o ensino e a prática de leitura na escola?
Embora colocados como termos distintos, talvez a aliteratura tenha seu início justamente na alfabetização, ou nas deficiências do processo de alfabetização, o que nos faz ampliar a discussão e pensar sobre a qualidade de formação destes que aprenderam a ler e não lêem. Se pensarmos em leitores com a simples capacidade de decodificar símbolos e caracteres, é certo que este tipo de leitura não será suficiente para a compreensão do que se lê; assim, será mais simples aceitar a denominação de analfabeto do que insistir em leituras que não serão produtivas, por não apresentarem consistência, significância ou solidez. São apenas leituras; vazias e ingênuas leituras.
A verdade é que ser alfabetizado não garante ao indivíduo o domínio da leitura. Pode até lhe assegurar a decodificação de pequenas frases e até mesmo textos, mas não lhe dá a capacidade de interpretação e inferência, por exemplo. Pensemos em um adulto, pedreiro, com mais de quarenta anos de idade que, finalmente, se alfabetiza. Infelizmente, talvez a escola lhe prepare para ler desarrazoados textos de cartilhas, onde estes ou aqueles fonemas sejam privilegiados, mas não o instrumentalize para ler uma notícia de jornal sobre, por exemplo, o aumento do salário mínimo, as últimas novidades no campo da construção civil, ou a trajetória de seu time do coração no campeonato estadual. Alfabetizou-se e não consegue ler e entender um texto, ou seja, recebeu um instrumento mas dele não se apoderou; o mundo à sua volta continua às escuras e sua simplória leitura não lhe garante a possibilidade de plena participação social.
As pesquisas mostram que os índices de alfabetização no Brasil têm crescido gradativamente, embora ainda deixem um quantitativo superior a um milhão de jovens – em sua maioria negros, nordestinos e pobres – excluídos deste processo[1]. Poucos, porém, destes novos leitores vão além da alfabetização e se debruçam com qualidade e consciência discursiva sobre livros e leituras. E isso faz do problema uma roda-viva, pois a experiência comprova que quanto mais lemos, mais aprendemos a ler; é no exercício prático da leitura que se aprende e amplia o domínio desta ação. Ou seja, se não leio com uma certa freqüência, nunca perceberei a importância do ato de ler, estarei cada vez menos preocupado com a construção de uma prática de leitura e, sem perceber, vou me afastando de livros, das letras, do sabor que há em páginas cheias de textos, de boas oportunidades, acessos e chances, da vida, enfim. Sem o permanente contato com a leitura, ser-nos-ão imperceptíveis os diferentes tipos de texto e conseqüentes fruições que eles distintamente nos oferecem. Perderemos o bravo prazer de explorar textos e descobrir-lhes os segredos; todo material escrito nos parecerá tão-somente um material escrito, inerte, que jaz ali por descuido de alguém.
Os problemas relacionados à questão da leitura no Brasil vêm, já há algum tempo, sendo tema de muitos debates, colóquios, conferências e discussões. Queremos formar um país de leitores, que descubram a cada livro o prazer que somente uma boa leitura pode proporcionar, já que ler, como preconizado por alguns de nossos atletas, também é um exercício. Campanhas e projetos a cada ano têm sido apresentados à sociedade como um esforço por parte dos governantes em realmente cumprir a sua missão de incentivo à leitura. Entretanto, a despeito de tantos esforços, ainda temos poucos leitores em nosso Brasil e a leitura tem ocupado um espaço cada vez menor no cotidiano de nossa sociedade.
Observando, porém, os balanços de final de ano feitos pelas principais editoras do país, encontramos um dado intrigante frente à situação de poucos leitores que vimos discutido até aqui: elas comemoram o aumento de vendas e publicações em relação ao ano anterior, tendo sido o ano passado considerado de médio para bom em se tratando de vendas e lançamentos. Está bem: livros nós temos... Mas cadê os leitores? Quem compra tantos livros e para quem ou para quê?
Sim, nós temos mais livros. Mas
por que não temos também mais leitores?
Cremos que haveria uma coerência lógica em que, se aumentando vendas e lançamentos, também se aumentasse o índice de leitores. Abrimos um breve leque de opções para buscar uma compreensão deste hiato entre o aumento de um dado e o declínio de outro.
Dinheiro
É, livro ainda é bem caro. Com um salário mínimo na faixa de trezentos e cinqüenta reais, não é uma proposta tão atraente investir dez por cento da renda mensal em um livro que vai abrir as portas do imaginário e da fantasia. Se o trabalhador fizer esta escolha, poderá passar o restante do mês sob o peso de uma realidade que lhe obrigue a cortar gastos em áreas como saúde, moradia e alimentação.
É bem verdade que, nesse sentido, tem crescido o investimento por parte do governo, que tem se revelado um grande comprador de livros. Cerca de 25% dos livros produzidos não chegam às livrarias, por serem comprados diretamente pelo governo, para serem distribuídos a alunos de escolas públicas, essencialmente. Mas ainda há muito o que fazer.
Sonho com o leitor que não seja rotulado como leitor graças à benevolência do governo, mas que se descubra como tal por meios próprios e se aposse dos seus direitos imprescritíveis de leitor (Pennac, 1993: 139-167), sendo capaz de, ele mesmo, escolher seus livros e leituras, com base em seus próprios critérios, gostos e curiosidades.
Disposição para a leitura
Também falta disposição ante a possibilidade da leitura de um livro inteiro. Meu Deus! Só nomear a expressão “livro inteiro” já nos dá um cansaço aflitivo!
Talvez a indisposição seja decorrente da falta de prática de leitura. Não de hábito de leitura, já que hábito, além de ser o único e inalterado traje de monges e freiras que amam o silêncio, também pode significar aquilo que fazemos rotineiramente, sem prazer, volúpia ou bom-humor. É interessante que o dicionário registra ser o hábito “uma disposição adquirida pela repetição freqüente dum ato” (Ferreira, 2004:446 – Grifo nosso). Deve ser difícil adquirir disposição pela repetição freqüente de um ato, principalmente se este ato for a leitura.
Acredito que o poder encantatório dos livros e das letras está justamente no fato de que você pode conduzir a leitura tal qual conduz sua fome. Se hoje a fome é grande, talvez um lanche bem calórico – a despeito de dietas e regimes – num famoso fast-food resolva seu problema; em tempos de inapetência, limitar-se a uma sopinha antes de dormir é mais que satisfatório. Assim é com os livros. Posso devorá-los de uma só vez ou ir deglutindo paulatinamente, uma porção por vez, da maneira que melhor me satisfaça enquanto leitor. Tenho um hábito estranho, mas que me faz extremamente feliz como leitora: se o livro é bom, devoro suas páginas até pouco mais da metade. Quando a história começa a aproximar-se do fim, procuro me afastar um pouco, diminuindo consideravelmente o ritmo de leitura, para que não acabe rápido. Como um sundae que se toma bem lentamente, sorvendo cada parte que compõe aquela delícia, a fim de que se apure realmente o sabor e se delicie integramente com aquele prazer.
Difícil acesso
Acredito que também seja possível justificar o fato de os livros estarem em alta e os leitores em baixa pela dificuldade de acesso ao livro. Muitos brasileiros e brasileiras não têm o privilégio de ter livre acesso a leituras em boas bibliotecas, salas de leitura ou Internet. E não dá pra deixar passar: muitos têm este acesso e dele não usufruem – os piores analfabetos.
Sem a existência real de uma proximidade com o outro, este permanece, para mim, um mistério. Enquanto objeto ignoto, posso me proteger dele, julgando-o algo negativo, por isso misterioso; ou ainda ignorar sua existência, fechando-me para novos contatos e aprendizagens sobre ele. E a relação leitor-livro, embora possa ser cerceada por mistério e desejo de desvendar o desconhecido, não se estrutura à base do distanciamento. É preciso que estejam próximos, leitor e livro, como amantes que se permitem a iminência e o desvendamento mútuo nos alegres momentos de encontro.
Resistência
Ocorreu-me também a existência de certa resistência por parte de alguns alunos e suas famílias em relação à leitura. O menino que deseja ser físico não quer perder seu tempo lendo ficções, se o que lhe interessa é a compreensão e descoberta de fenômenos reais e bem palpáveis. Alguns justificam esta postura devido ao fato de que, em sua visão, a escola deve ensinar a ler e a escrever, e isso basta. Não precisa ficar estimulando a tal prática da leitura – uma vez que o aluno já sabe ler, se desejar, lerá e pronto.
Este posicionamento nos parece inadequado por colocar o saber lingüístico dissociado da prática comunicativa, quando na realidade ambos andam juntos. A leitura tem, como sabemos, uma função social, e esta é responsável por nos inserir no mundo, permitindo-nos, de fato ser parte dele, abrindo-nos à discussão, ao diálogo, ao posicionamento crítico e à emissão de opiniões. Resistir à leitura, sob quaisquer justificativas, é privar-se de ser cidadão; é negar a si mesmo o direito de se construir um sujeito atuante, que exerce de forma consciente a sua cidadania. À medida que se lê, conhecemos pensamentos diversos, diferentes dos nossos, que expandem nossa visão de mundo, ampliando a nossa forma de atuação na realidade em que vivemos.
Ops... Falha nossa!
E não se pode esquecer do pouco sucesso obtido por nós, professores, e por nossas escolas. Sim, nossas escolas. Lembre-se de que a crítica de Quintana aos piores analfabetos é sugerida num cartaz para uma feira de livros, teoricamente um lugar onde se encontram leitores ávidos, onde se estimula a prática de leituras, tal qual a escola. O fato de não conseguirmos conquistar leitores desde o início do processo de alfabetização tem dificultado bastante a situação.
É muito difícil transformar o menino em leitor ativo, se para ele a atividade de leitura só serve para: 1) juntar letras e identificar sentenças e 2) identificar o significado de cada palavra empregada, a fim de que se descubra a mensagem do texto. O máximo que se consegue com estas (in-)utilidades é a formação de um leitor passivo, limitado quando à frente do texto, que dele se sente obrigado a retirar informações básicas, nem sempre facilmente identificadas. A interpretação que este tipo de leitor faz do texto é inconsistente, pode ser até ilógica. Irracionalmente, o que ele julga importante é encontrar uma interpretação. Torna-se um bom ledor, mas incapaz leitor, conformado com o mínimo de formalidade que um texto lhes forneça. Neste tipo de leitura, não há ousadia ou cumplicidade entre leitor e autor; há um leitor solitário que busca, desesperadamente compreender o que o autor quis dizer, porque para ele isso encerra os porquês do texto.
Considerações finais
Que não há tantos leitores como gostaríamos, já sabemos. Dizer que vários motivos podem explicar este fato, também já não nos traz novidade. O problema é concreto, mas não precisamos nos acostumar a conviver com ele, como se fosse algo imutável. Uma prática simples que poderia nos ajudar a ultrapassar os limites passivos do leitor que temos formado seria a abertura ao diálogo e à interação entre professor e aluno em relação ao texto lido. Essa troca é propícia ao avançar do aluno, visto que “é durante a interação que o leitor mais inexperiente compreende o texto: não é durante a leitura silenciosa, nem durante a leitura em voz alta, mas durante a conversa sobre aspectos relevantes do texto” (Kleiman, 2002). [2]
Se queremos que nosso país seja um lugar em que cresça não só o número de livros editados e vendidos, mas também o número de leitores que sabem ler – e o façam –, é preciso que haja um investimento na quantidade e na qualidade daqueles que já aprenderam a ler e não lêem. Já no comecinho de 2007 o Ministério da Educação e Cultura anunciou a publicação de vários materiais para incentivo à leitura. Sua proposta é instrumentalizar o professor e as escolas a fim de incentivar-lhes a criar seus próprios projetos de incentivo à leitura. Boa tentativa. Tomara que inspire outras tantas, para que, além da opção que normalmente preferimos – a de criticar os rasos incentivos do governo –, consigamos, ainda que aos poucos, mas com consistência, qualidade e consciência, realizar o sonho que todos nós, professores, acalentamos ao longo de nossa jornada educacional: formar leitores que sabem ler e o fazem porque descobriram que ler não é só prazer; é também inserção, crescimento, diálogo e descobertas.
Trabalhar no sentido de formar alunos leitores é difícil, cansativo e requer muita disposição, humor, amor, criatividade, habilidades e persistência. Mas traz uma garantia: a de que a tarefa escolar não será em vão; antes contribuirá para que se forme uma geração de leitores maduros, que amam ler e sabem a importância deste ato, pensando menos em falta de dinheiro, de tempo, de recursos e de disposição e mais nos benefícios que a leitura pode proporcionar.
Neste caminhar, não há receitas prontas. É no construir diário, dentro ou fora de cada sala de aula, com professores apaixonados pela leitura, que surgem e surgirão idéias, discussões, reflexões e novas práticas. As minhas e as suas ações é que darão novo rumo a esta história.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CRAMER, Eugene H. Incentivando o amor pela leitura. Porto Alegre: Artmed, 2001.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. Curitiba: Posigraf, 2004.
JOUVE, V. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002.
KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. Campinas: Pontes, 2002.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 2000.
PENNAC, Daniel. Como um romance. São Paulo: Rocco, 1993.
QUINTANA, Mário. Caderno H. Porto Alegre: Globo, 1973.