PROPOSTA DE PUBLICAÇÃO
DE UM GUIA DE LEITURA PARA A OBRA DE CÍCERO
DE HARUSPICUM RESPONSIS

Luís Carlos Lima Carpinetti (UFJF)

 

Estamos trazendo ao público reunido neste evento a proposta inovadora de publicar um guia de leitura com múltiplas chaves e instrumentos para possibilitar a leitura e a compreensão do texto de Cícero De haruspicum responsis, com a exploração de temas, de gêneros e de uma série de chaves e recursos de descrição lingüística, além da tradução. A obra é uma peça do gênero judiciário e traz, dentre seus temas, a questão política e religiosa. Além da tradução, daremos nesta publicação o vocabulário utilizado no discurso, bem como uma descrição das relações sintáticas correspondentes, a que denominamos desfrasamento. A publicação permitirá uma análise mais crítica, pois a apresentação mais abundante de instrumentos deixará exposto ao leitor o percurso que fizemos para chegar à tradução. Esse trabalho tem sido executado em parceria com o Prof. Mário Henrique Meireles de Aquino. Nesta minha intervenção, discorrerei sobre os aspectos temáticos e genéricos do texto e também sobre os aspectos lingüísticos, implicados na tradução e tratados no vocabulário e na técnica do desfrasamento.


 

GUIA DE LEITURA
PARA O DE HARUSPICUM RESPONSIS

A obra De haruspicum responsis (As respostas dos arúspices), do orador latino Marco Túlio Cícero, bem como tantos outros textos da Antigüidade clássica e tardia, são, de modo geral, publicados como resultado de um trabalho de estabelecimento de texto, o qual inclui várias etapas de elaboração, acompanhados de uma apresentação de temas e questões do texto, gêneros e estilo, dados sobre a família dos manuscritos que serviram de fonte de pesquisa para o estabelecimento do texto, e a tradução do autor. Assim podemos verificar nas edições Belles-Lettres.

Nossa proposta pretende apresentar a abordagem de questões temáticas e formais do texto De haruspicum responsis e propor uma tradução parta este texto, bem como fornecer outros instrumentos que permitam ao leitor circular melhor dentro do texto latino, com a apresentação de instrumentos como o vocabulário e o desfrasamento, elaborados sistematicamente de acordo com as opções adotadas na elaboração da tradução.

Neste caso, a edição atenderia a um leitor experimentado no trato com a língua latina. Mas serviria sobretudo a um leitor que se encontre em um patamar intermediário de aprendizagem da língua latina para que consiga compreender o texto com o auxílio desses instrumentos e apreender as estruturas, o sentido do texto e possa também criticar as opções adotadas na tradução, uma vez que a edição deixará expostos os elementos que nortearam as escolhas de tradução, uma vez que os instrumentos de desfrasamento e vocabulário poderão facilitar a localização para tais operações de análise por parte do leitor.

Neste caso, o guia de leitura para a obra De haruspicum responsis terá múltiplas utilizações. Poderá servir a quem queira apenas ler a tradução, quem busque conhecer o texto latino também, poderá servir ao estudante de nível intermediário de aquisição de conhecimentos de latim, poderá servir como manual de sala de aula em níveis mais avançados.

Falaremos separadamente de cada um dos instrumentos de abordagem do texto que pretendemos utilizar e apresentar na edição do livro que chamaremos de guia de leitura para a obra De haruspicum responsis.

 

Partes do guia de leitura

O guia de leitura que pretendemos publicar terá um estudo introdutório, texto latino e tradução, desfrasamento e vocabulário.

 

Estudo introdutório

O estudo introdutório servirá para dar conta de todas as questões que o texto comporta, tanto as questões temáticas como a política, a religião, a história dos personagens, quanto às questões formais como gênero, estilo e estudo do vocabulário relacionado aos campos semânticos, além de informações sobre a gênese do texto.

A partir do que observamos na leitura da peça de oratória De haruspicum responsis, podemos verificar que, neste texto, nosso autor se debruça sobre um número incontável de fatos e situações, em uma época de grande agitação política e social, acirrada luta pelo poder, convulsão social e conjurações. A habilidade de Cícero segue sendo, como em várias outras ocasiões, a de articular discursos e concepções sociais e filosóficas com as situações que lhe são apresentadas, diante das quais lhe cabe, via de regra, o papel de defensor da permanência das instituições republicanas. No caso desta arenga judiciária, o foco recai sobre sua casa, lugar da sacralidade e refúgio do cidadão e sobre seu aspecto sagrado. Cícero responde às invectivas de Clódio com uma réplica diferenciada em seu foco, mas de natureza igualmente religiosa: a das relações incestuosas de Clódio, suas ligações espúrias em sua vida pregressa e os inúmeros crimes cometidos que atentam contra a República e contra a religião do povo romano. Desta forma, reage às invectivas, convoca a religiosidade do povo romano em seus cultos e em suas práticas divinatórias, restabelece seu posto, defende suas idéias e, tendo construído uma peça de oratória com múltiplos alvos, constrói também um discurso intensamente dramático, tanto quanto dramática foi sua militância política, em um contexto de profundas mudanças bem como de fecundas idéias e projetos no campo político, qualificando esse período como um marco importante na história romana.

Quanto ao tema da política, caberá tratar da situação em que foi pronunciado, da posição de Cícero, que o pronuncia, com relação à situação em que se encontram as instituições republicanas diante da ascensão do regime imperial com a figura de César e seus aliados, dentre eles, Clódio, a quem Cícero dirige a sua invectiva. Caberá discorrer sobre o tema da religião e sua importância na vida da sociedade romana, com o culto aos antepassados e às tradições, justamente quando o personagem-alvo da invectiva carrega a fama de sacrílego, já desde os primeiros anos de sua carreira política.

Como o discurso contém referências a importantes personagens da época, caberá traçar o perfil de cada um deles, as relações que estes mantêm com o regime republicano, com a figura do orador e com os fatos que lhes são atribuídos no texto. Este assunto é domínio da prosopografia.

Ainda é muito importante considerar o gênero retórico em questão, a defensabilidade da causa, a representação da figura do juiz e do advogado, as implicações da diatribe desse discurso, os elementos do vitupério, dentre outros.

O estudo do vocabulário repartido em campos semânticos pode ser muito interessante para informar sobre as relações entre temas e o vocabulário e o estilo do discurso. O estudo do estilo implica a imbricação do estudo do vocabulário e das questões de gênero, bem como a globalidade das questões temáticas.

Importa também informar a história da transmissão desse texto e apresentar o que a tradição leu e aprendeu com esse texto, sua presença eventual em outras obras que lhe são posteriores. Sempre que possível, faremos referência às leituras que já se fizeram do texto De haruspicum responsis e em que direção foi feita tal leitura. A fim de criar um determinado itinerário que a leitura de tal texto antigo percorreu no decorrer dos séculos, sob os olhares diferentes trazidos por cada nova idade, por homens e situações sempre novos. Exemplo: a obra As Confissões de Santo Agostinho é clássica na construção de um relato autobiográfico em que o narrador em primeira pessoa expõe de forma nua e crua o seu percurso pessoal de homem educado na cultura clássica e de homem convertido à religião cristã. Tal empresa literária influenciou enormemente a mentalidade de muitos cristãos, bem como de outros, não necessariamente cristãos, mas que se apropriaram da forma pessoal de narrar a própria experiência. Ao se ler, então, uma obra como As Confissões, será oportuno, além de comentar o marco que essa obra representou, apresentar a série de textos gerados em tom e forma similares ao do autor de As Confissões.

Desse modo, o estudo introdutório deverá informar ao leitor a maior parte das relações temáticas e formais ao leitor, de modo que se situe o texto dentro de seu contexto e que se possa entender de quais assuntos fala o texto.

 

Texto latino e tradução

Pretendemos utilizar o texto estabelecido por Pierre Wuillemier pelas Edições Belles-Lettres.

É preciso considerar que o texto De haruspicum responsis, de Cícero, que selecionamos como objeto de leituras já foi, com toda certeza, lido diversas vezes, desde que foi publicado pela primeira vez, milênios antes do período da duração de nossas vidas. Confessamos que já nos sentimos desencorajados diante de caminhos já tantas vezes trilhados, pisando sobre chão já batido por muitos que o palmilharam e que, portanto, poderia não nos restar, por isso, nenhuma possibilidade nova diante desse texto. Isto é, em parte, verdade e, em parte, ilusão. Verdade, porque todo texto contém uma determinada formulação que é comum a uma gama de convenções e sistematizações à qual é difícil escapar e que tende a gerar leituras muito parecidas, grosso modo, muito próximas do que se entende como senso comum. Estas convenções e sistematizações são a garantia de que haverá, no ato da comunicação escrita, parâmetros para a compreensão bastante aproximada dos pensamentos e idéias que o autor concebeu no ato da produção escrita. Ilusão, porque a linguagem humana é carregada de imprecisões, equívocos, preconceitos, tabus, ideologias, sentimentos, toda uma gama de elementos movediços sobre os quais não é fácil assentar interpretações muito seguras e precisas; nesse caso, é tarefa hoje da ciência trabalhar para criar limites e conceitos aptos a criarem horizontes de compreensão que permitam a recuperação do sentido das coisas no ato da representação delas no discurso.

Assim sendo, os textos antigos que ainda não foram lidos são absolutamente novos para o leitor que nunca os leu, grávido de todas as possibilidades sempre, a despeito da aparência de esgotado, pela data antiga em que foi, pela primeira vez, publicado.

 

Desfrasamento

Vamos inserir nessa publicação uma sessão com o desfrasamento integral dos 63 parágrafos do texto De haruspicum responsis. A técnica do desfrasamento contribui para a visualização, em esquematização gráfica, através de símbolos específicos para cada classificação sintática, das relações de coordenação e subordinação existente entre os elementos oracionais de um período composto e, como tal, é uma técnica muito útil para se estudar textos em prosa muito complexos, bem como em poesia, sendo, pois, um instrumento útil para manipular textos cuja incompreensão decorre da dificuldade de reconhecer as relações de coordenação e subordinação existentes nos textos em que uma ordenação diferenciada da que empregamos, em nosso uso moderno, gera tal dificuldade. Especialmente porque a linearidade do texto muitas vezes pode dificultar ao leitor moderno a identificação dessas relações de coordenação e subordinação. Constará uma apresentação dos símbolos utilizados na esquematização gráfica do desfrasamento.

A apresentação do texto na esquematização gráfica do desfrasamento passará por um processo que chamamos de adaptação. A adaptação tem a importante função de aproximar o texto latino de uma organização, concepção e ordenação mais típica da língua moderna. Apesar de forjar um texto fictício e inexistente, se considerarmos as transformações operadas no texto de origem, a adaptação pode ser um instrumento eficaz para alunos predispostos ou condicionados à situação intermediária entre a sua língua moderna e a língua em curso de aprendizagem (que os lingüistas chamam de interlíngua).

 

Vocabulário

Como instrumento para identificar as correspondências entre os termos do texto latino e as correspondências respectivas adotadas na tradução, o vocabulário permitirá uma circulação mais intensa no texto latino bem como uma avaliação crítica das opções adotadas pelo tradutor em seu trabalho.

Quanto ao vocabulário, cabe considerar que os textos latinos antigos adotam substantivos e verbos que hoje reconheceríamos como raízes ou radicais de substantivos e verbos que se alteraram quanto ao significado ou se deslocaram de algum modo, restringindo-se ou ampliando-se, a partir de suas acepções primitivas. O estudo do vocabulário torna-se interessante para buscar uma descrição destas modificações, ou então para levantar ocorrências, se não for possível descrever as modificações ocorridas no emprego do vocabulário. O vocabulário comporta a questão também da etimologia. Neste caso, buscar a etimologia das palavras latinas, apresenta como finalidade investir no lastreamento dos leitores na cultura da língua latina.

 

CONCLUSÃO

Trata-se de uma proposta inovadora no sentido do alargamento da apresentação de instrumentos de leitura para um texto antigo. Ao leitor moderno, o texto antigo vem com também com a descrição sintática do texto (desfrasamento) e com a lista de vocabulário, o que pode permitir melhor compreensão da tradução e circular no texto latino com mais fluência e compreensão, já orientado pelo tratamento das questões temáticas e formais do estudo introdutório.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAYET, J. La religion romaine. Paris: Payot, 1999.

CÍCERO, M.T. Discours. Tomo XIII, 2: Sur la réponse des haruspices. Paris: Les Belles-Lettres, 1966.

CANFORA, L. Júlio César: o ditador democrático. Trad. de Antônio da Silveira Mendonça. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

COMMELIN, P. Nova mitologia grega e romana. Trad. de Thomaz Lopes. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983.

COULANGES, F. A cidade antiga. Estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma. São Paulo: Hemus, 1975.

GIARDINA, A. O homem romano. Trad. de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1992.

MAFFII, M. Cicerone e il suo dramma político. Milão: Arnoldo Mondadori, 1933.

TAYLOR, L.R. Party politics in the age of Caesar. Berkeley: University of California Press, 1949.