SOBRE O CONCEITO DE CRÍTICA TEXTUAL

Leodegário A. de Azevedo Filho (UERJ e UFRJ)

 

Crítica Textual é, essencialmente, a atividade filológica de um grupo mais amplos de atividades definido como Ecdótica.

Na verdade, a Ecdótica trata de todo o processo de preparação e realização da edição de um texto, inclusive por meio de processos mecânicos, que incluem também a preparação desse material para a publicação.

Nesta palestra, o que nos ocupará será apenas essa parte preparatória para uma edição crítica, que é diferente da mecânica, da diplomática, da semidiplomática etc., tratando de cada uma das etapas desse trabalho.


 

Sabe-se que há quatro tipos de edição: edição mecânica, edição diplomática, edição diplomático-interpretativa e edição crítica, por nós já estudados no livro Base teórica de crítica textual.

Como disciplina integrante da Ecdótica, no que se refere à técnica de editar um texto, a crítica textual – também chamada crítica verbal –, seria dessa ciência o seu núcleo essencial ou especificamente filológico, voltado para o estabelecimento de um texto e não para a totalidade dos problemas que envolvem a técnica e a arte editorial. Sendo assim, entre Crítica Textual e Ecdótica, logo se pode indicar uma relação de inclusão.

Com efeito, do ponto de vista da lógica simbólica, não se trata de uma relação de identidade – como alguns supõem – e muito menos de uma relação de exclusão ou mesmo de simples intersecção. Trata-se, efetivamente, de uma relação de inclusão, pois tudo o que é crítica textual se integra na Ecdótica, mas o campo de ação desta última vai além da crítica textual propriamente dita.

Dos períodos grego, alexandrino e romano aos nossos dias, bem ou mal sustentando-se na idade Média, a Crítica Textual chega ao Renascimento, passando pelo Maneirismo e pelo Barroco, em sua marcha para o Neo-classicismo, Romantismo, Realismo, Parnasianismo e Simbolismo, até chegar ao método renovador de lachmann, de que foram dissidentes D. Quentin, ainda que parcialmente, e Bédier, este último já em nítida posição divergente. Na verdade, em Lachmann e em Bédier é que se encontram os dois pontos de partida da Crítica Textual de nossos dias, por isso mesmo divida em duas grandes correntes modernas: a neolachmanniana dos críticos alemães e italianos e a neobedieriana dos críticos franceses. Tanto numa como noutra, a edição crítica é tida como operação inteiramente indispensável à perfeita compreensão de um texto, com segura base filológica, pois a Filologia é a ciência que se volta,deliberadamente, para a análise e compreensão dos textos, no caso recorrendo a critérios que melhor possam aproximar um texto à última vontade consciente de seu autor.

São etapas de uma edição: a) Recensio; b) Collatio; c) Eliminatio codicum descriptorum; d) Classificação estemática da tradição manuscrita, se houver, e da tradição impressa (textos não eliminados após a examinatio); e) Interpretatio; f) Emendatio; g) Constitutio textus, ápos a Interpretatio e a Selectio; h) Apresentação crítica do texto reconstituído; e i) Aparato crítico de variantes.

Segundo a metodologia decorrente da teoria neolachmaniano, a recensio (levantamento de todo os dados relacionados com o texto a ser editado) é o primeiro momento de uma edição crítica, tendo como finalidade, com base na collatio, o exame atento das relações de parentesco ou relações estemáticas dos códices existentes para a eliminatio dos que sejam, comprovadamente simples cópias sem valor autônomo, a não ser que tenham alguma utilidade para o estabelecimento crítico do texto.

A emendatio, depois de competente interpretatio, é a etapa seguinte e deve obedecer a determinados princípios, pois não se emenda o que não for comprovadamente erro (daí a importância da interpretatio). E também da teoria dos erros, como demonstra Paul Maas. Erro ou deslize evidente, além de gritante contra-senso, decorrente de ultracorreção.

Quando se corrige um texto com base na lição majoritária dos manuscritos encadeados num stemma codicum, fala-se em emmendatio ope codicum, centrada no princípio do predomínio numérico das variantes e no cálculo estatístico das probabilidades. Ao contrário da emendatio ope conjectura (divinatio), que se fundamenta em hipóteses e que vai depender, muitas vezes, do simples intuição do editor em face das condições lingüísticas e culturais da época em que o texto foi produzido, a emedatio ope codicum, é claro, tem maior aceitação científica.

Observe-se ainda que, na etapa da recensio (fechada ou aberta), a Crítica Textual moderna tem seguido alguns preceitos gerais, herdados da tradição clássica, embora todos apresentem históricas exceções. Indiquemos os principais: a) lectio antiquior potior; b) lectio difficilior potior; c) lectio plurium codicum potior; d) lectio melioris codicis potior; e) lectio brevior potior; e f) lectio quae alterius originem explicat potior. Tudo isso, é claro, na procura da melhor lição: lectio melior potior.

No que se refere a emendas conjecturais, desde logo diga-se que não devem ser feitas sem que se esgotem os recursos subsidiários oferecidos pela Diplomática, pela Codicologia, pela Paleografia, pela Escriptologia e pela Grafemática. Também a formação lingüística, filológica e teórico-literária do editor vai importar, aliada, naturalmente, ao critério do usus scribendi do autor e da época, além do permanente apelo aos princípios gerais da psicologia da cópia. Em síntese, os filólogos clássicos geralmente indicam cinco etapas para a crítica conjectural: a) interpungere, ou seja, pontuar adequadamente o texto; b) mutare, ou seja, corrigir a troca de letras, responsável pela troca de palavras sem, qualquer sentido no contexto frasal; c) transponere, dispor as palavras em outra ordem, mais coerente com o sentido do texto e com a língua e com o estilo do autor, corrigindo-se assim possíveis alterações de copistas inovadores ou invasores do texto alheio; d) delere, ou seja, apagar ou suprimir palavras que aparecem no texto por evidentes interpolações de copistas; e) supplere, ou seja, completar possíveis lacunas no texto, geralmente motivadas por pequenos saltos ou manifesto descuido de copistas ou até do próprio autor.

Tais princípios da emendatio, em seus dois momentos específicos de operar, estão ligados naturalmente à interpretatio. Na verdade não existe nenhum método de crítica textual que se possa aplicar a todos os autores, pois cada edição apresenta os seus problemas específicos. Algumas vezes, a lei objetiva (ou assim chamada) do predomínio numérico das variantes, baseada no cálculo das probabilidades, em casos de recensio fechada, terá que ceder espaço imediato ao critério da lectio difficilior e ao princípio do usus scribendi, do autor e da época, em casos de recensio aberta, pois cada época e cara autor sempre apresentam características próprias, tanto do ponto de vista da língua, como do ponto de vista do estilo. Assim, não raro, a selectio das variantes vai oferecer ao leitor um texto bem diverso do seu correspondente na tradição impressa corrompida.

Acrescente-se ainda que o objetivo maior de uma edição crítica consiste em restituir um texto, tanto quanto possível, à sua forma genuína. Em conseqüência disso o conhecimento da língua do autor e da época em que o texto foi escrito logo se transforma em exigência preliminar. No caso, será preciso eliminar o conjunto de alterações acumuladas durante o processo, por vezes longo, de sua transmissão. Portanto, editar criticamente um texto significa apresentá-lo ao leitor em sua forma possivelmente originária ou livre de impurezas. Em outras palavras: para que se tenha uma edição crítica, é fundamental observar-se que um texto, em sua transmissão, seja qual for o processo, está sempre sujeito a lacunas, saltos, lapsos de revisão ou de cópia, omissões, transposições, trocas de letras ou mesmo de palavras, inovações, interpolações, ultracorreções, em suma, erros de toda espécie, cabendo à Crítica Textual a análise de todas estas questões, sempre com o objetivo de restituir o texto à sua possível forma originária.

Note-se ainda, esclarecendo-se aqui as nomenclaturas utilizadas, que, por autógrafo (documento escrito pelo autor), se entende um texto que exprime a vontade de quem o escreveu. Mas esse texto pode ser copiado, chamando-se então apógrafo, em duas situações: sem a revisão do autor, ficando assim sujeito a erros de cópia, ou sob o controle direto do autor, à mão ou à máquina, chamando-se então idiógrafo. Portanto, original e autógrafo não são palavras necessariamente sinônimas, já que um texto pode ser original, mas não autógrafo, no caso de ter sido ditado pelo autor ou resultar de uma gravação. Além disso, quando um autor resume um texto por ele já escrito, tem-se o caso de um autógrafo, não há dúvida, mas de um autógrafo que não se confunde com o original. Em síntese, edição original é aquela que foi preparada rigorosamente de acordo com a vontade consciente do seu autor.

Entretanto, nem mesmo um original autógrafo exclui a possibilidade de erros, pois nele podem ocorrer falhas motivadas por descuido ou qualquer distração involuntária. Em tais casos, qualquer correção deve ser devidamente justificada pelo editor, sempre à luz da coerência e do sentido do texto, mas sem querer substituir a cultura do autor pela sua própria cultura. Por exemplo, mesmo num original autógrafo, será sempre legítima a retificação de datas históricas equivocadas ou de cálculos matemáticos mal feitos, como será legítima a correção de citações erradas, feitas de memória, mas tudo isso em forma de advertência ao leitor, pois o respeito ao texto alheio é, antes de tudo, uma questão ética.

Além dos possíveis erros do próprio autor, há as variantes por ele mesmo introduzidas no texto durante a sua revisão manuscrita ou à máquina. Com efeito, é sabido que aquele que escreve corrige e emenda o próprio texto, em geral várias vezes, com o propósito de aperfeiçoá-lo. E tal fato é de extrema importância não apenas para a crítica de base estilística, mas também para a crítica genética, já que esta última permite surpreender o autor no ato mesmo de compor. Como exemplo, citemos o confronto crítico de originais do livro Cobra Norato com as várias edições dessa obra feita por Raul Bopp, trabalho que ainda não se fez. No caso, vai saltar aos olhos a extensa constelação de variantes do próprio autor, todas revestidas de grande interesse ecdótico e estilístico, pois vêem datadas. E de grande interesse, também para a crítica genética.

Na hipótese de ter o mesmo texto passado por várias redações, a partir de um rascunho inicial não inutilizado pelo autor, tem-se a chamada redação múltipla. No caso, quando há indicação de datas, a tarefa é mais simples, pois a última cópia datada naturalmente vai prevalecer sobre as anteriores. Difícil é quando não se pode determinar uma seqüência cronológica precisa, ou mesmo relativa. Nesse sentido, pode até ocorrer o caso de que a verdadeira e última vontade do autor tenha sido a de não publicar o texto, razão porque a edição póstuma de um manuscrito é sempre um delicado problema. Com efeito, quem pode assegurar que esteja, num determinado manuscrito autógrafo, a última vontade consciente do autor? Algumas vezes, a versão encontrada é ainda a primitiva – ou um simples rascunho – tendo sido interrompido o processo de elaboração do texto com a morte do autor. Por isso mesmo, a publicação póstuma de qualquer manuscrito autógrafo deve ser feita com muita cautela, para que não se comprometa o próprio nome do escritor. Muitas vezes, o melhor é não publicar o texto, sobretudo quando se trata evidente rascunho inicial, ou então publicá-lo com muitas ressalvas. Seja como for, o trabalho de crítica genética, que se volta para as variantes do autor, ou para o processo de elaboração de um texto, não se confunde com as atividades específicas da crítica reconstitutiva, sempre voltada para o estudo das variantes textuais colhidas em manuscritos apógrafos ou em várias edições sucessivas da mesma obra. Por exemplo, no caso específico da lírica de Camões, que não dispõe de um autógrafo sequer, a crítica textual só pode basear-se nos manuscritos apógrafos que foram conservados em "livros de mão" da época, pois tais cancioneiros, em geral miscelânicos, é que deram origem – sabe deus como! – às duas edições póstumas, impressas no século XVI: Rhythmas (1595) e Rimas (1598), ambas corrompidas, a segunda mais que a primeira. Isso nos mostra que, em nossos dias, se torna inteiramente indispensável retornar à tradição manuscrita dos cancioneiros da época, onde a lírica camoniana ficou dispersa e fragmentada, como base de qualquer edição interpretativa ou crítica, segundo pensamos.

E assim chegamos ao conceito de edição crítica. Em geral, tal tipo de edição se volta para obras com tradição textual divergente ou múltipla, como é o caso da lírica de Camões. Se as edições mecânicas e as edições diplomáticas se destinam mais a especialistas que ao grande público, as edições diplomático-interpretativas e críticas têm um público mais amplo, embora nem sempre especializado. Nos manuscritos da época camoniana, além das dificuldades paleográficas e codicológicas sempre neles existentes, as freqüente falta de pontuação, os erros de cópia, as lacunas, as inovações e interpolações, as corruptelas, as abreviaturas e a própria grafia, com separação de partes de um só vocábulo ou junção de vocábulos diferentes num só conglomerado verbal, entre vários outros elementos, como as relações entre grafemas e fonemas, dificultam enormemente a leitura do texto, gerando confusões até em pessoas especializadas. De tudo isso e de muito mais trata uma edição crítica, a partir de normas de transcrição textual previamente estabelecidas.

Em conclusão, a despeito de todo o cuidado e de todo o rigor filológico empregados na elaboração de uma edição crítica, não há edições críticas perfeitas. Mas é a perfeição o seu objetivo maior, incansavelmente procurado pelo editor, sem atingi-lo nunca. E vem daí o fascínio dessa atividade humanística, pois a busca da perfeição, ainda que inatingível, ou atingível apenas em termos relativos, em tal atividade humanística, é que nos pode verdadeiramente enriquecer.

 

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