A AQUISIÇÃO DO SUJEITO PRONOMINAL
EM CONTEXTO DE MUDANÇA:
DADOS DE UM FALANTE DO INGLÊS
APRENDENDO O PORTUGUÊS COMO L2

Ernani Machado Garrão Neto (UFRJ)

Introdução

A análise aqui proposta tem por finalidade observar a propriedade de realização/não-realização fonética do sujeito pronominal no processo de aquisição do português como L2 por um falante adulto do inglês. Consideraremos nesse estudo a hipótese de Duarte (1995), segundo a qual o português do Brasil (doravante PB) tem passado por um processo de mudança em que se verificam alterações na representação do sujeito de referência definida, que tem status de pronome. Tais alterações implicam a sua não-omissão categórica em contextos comuns às línguas [+] pro-drop como o espanhol e o italiano, o que nos leva a crer que o PB esteja perdendo, gradualmente, a capacidade de omitir fonologicamente o sujeito em certos ambientes sintáticos.

Mas o que se espera de um falante adulto do inglês (língua [-] pro-drop) aprendendo o português (língua [+] pro-drop) no Brasil? Considerando-se que o processo de aprendizagem de L1 se dá com base em um número limitado de dados (pobreza de estímulo) e em evidência positiva, dados robustos (Lightfoot, 1991: 10), pode-se dizer que o mesmo dispositivo eliciador que dispara a aquisição de L1 está presente em L2 (Duarte, 1997) ? Há como se prever se há ou não interferência ou transferência de valores de L1 para L2?

Tais questionamentos serão retomados ao longo deste breve ensaio e servirão como base para as reflexões que se pretende fazer sobre o processo de aquisição de um sistema variável envolvendo uma propriedade do parâmetro do sujeito nulo.

Metodologia

Trata-se de um estudo de caso baseado em dados de produção lingüística, levantados a partir de uma entrevista gravada de 60 (sessenta) minutos, realizada com um falante adulto do inglês, seguindo-se os procedimentos adotados na constituição de banco de dados de língua falada de orientação sociolingüística (Labov, 1972).

Perfil sociocultural do informante

O sujeito desta pesquisa é natural dos EUA, do estado de Missouri, tem 21 anos e é do sexo feminino. Depois de estudar português nos EUA por um ano, veio para o Brasil e, ao realizar um teste de proficiência na PUC-Rio, foi matriculado no Curso de Português para Estrangeiros daquela Instituição, onde foi classificado no nível dois para iniciantes. Entretanto, ao longo da entrevista, nosso informante mostrou-se razoavelmente seguro e demonstrou ter bastante domínio do sistema de flexão da língua-alvo (o português). Sendo assim, consideraremos que o referido falante encontra-se em fase de transição entre o estágio intermediário e o estágio final de aquisição.

Hipótese

Esta análise observa a aquisição do PB como segunda língua por um falante adulto do inglês. O que está em foco é a propriedade de realização/não-realização fonética do sujeito que é selecionada de maneiras opostas nas duas línguas, já que o PB ainda admite sentenças em que o sujeito não é pronunciado, enquanto o inglês não possui esta característica (língua [-] pro-drop).

Estará sendo considerada a hipótese de Duarte (1995) segundo a qual o PB estaria passando por um processo de mudança na representação do sujeito pronominal pois, mesmo em alguns contextos em que a sua recuperação é possível, o que levaria os falantes de línguas [+] pro-drop ao não-preenchimento, os dados indicam a opção pela forma plena. Assim sendo, como se comportaria um falante adulto do inglês, língua genuinamente [-] pro-drop, adquirindo um fenômeno sintático variável do PB ?

Segundo Duarte (1997), em estudo sobre o português de contato do Xingu (aquisição do português como L2), um falante adquirindo uma segunda língua irá apresentar um número alto de estruturas [+] pro-drop no período que antecede à aquisição de estruturas flexionais da língua-alvo, para então, num segundo momento, refletir o percentual de sujeitos nulos do sistema que está sendo adquirido. Desse modo, espera-se que um falante seja capaz de reconhecer e adquirir um sistema variável a partir do input a que tem acesso. Essa hipótese encontra amparo no trabalho de Guilfoyle (1984), segundo o qual a ausência de “tense”, responsável pela atribuição de caso nominativo, licencia o sujeito nulo.

Entretanto, vale lembrar que a análise que estamos propondo é baseada em um estudo de caso, ou seja, o corpus utilizado consiste de amostras de fala de um único informante, não contendo, portanto, uma quantidade satisfatória de dados, advinda de informantes de diferentes estágios de aquisição, para que se pudesse comprovar categoricamente a hipótese considerada, sendo assim, os possíveis resultados da pesquisa poderão, no máximo, indicar uma forte tendência que servirá de base para uma comprovação categórica posterior da hipótese, baseada em um universo maior de falantes.

A evidência negativa

O sujeito desta pesquisa vem sendo submetido, conscientemente, ao ensino formal do português e está, portanto, sujeito à correção e ao aperfeiçoamento constantes em sala de aula (evidência negativa) o que diferencia a aquisição de uma segunda língua do processo de aquisição de qualquer língua materna - número limitado de dados em evidência positiva (Lightfoot, 1991: 10).

A interferência/transferência na aquisição de L2

Não há como medirmos aqui o grau de interferência/transferência de L1 durante o processo de aquisição do português como L2, apesar de reconhecermos a sua relevância para uma melhor compreensão do fenômeno que está sendo observado. Entretanto, pode-se afirmar que não há no corpus nenhum dado que acene para algum tipo de interferência/transferência, que poderia estar estampada em sentenças com sujeitos expletivos preenchidos, por exemplo, mas não foi o caso.

Trata-se de um estudo de caso onde se observa, por uma única via, a aquisição do português como L2 por um falante nativo do inglês, ou seja, para que se pudesse ao menos indicar o papel da interferência/transferência de L1 em L2 teríamos de nos comprometer, do mesmo modo, a observar o processo de aquisição do inglês por um falante nativo do português nas mesmas condições, além de termos de acompanhar todo o processo desde o estágio inicial até o estágio final de aquisição das línguas-alvo.

O Sujeito PronominaL

Quando se diz que se pretende observar as categorias vazias de caráter pronominal, faz-se necessário explicitar por que motivo se está conferindo o adjetivo pronominal às mesmas. O que pretendemos é dizer que tais categorias têm comportamento de pronome (Duarte, 1995), ou seja, não precisam apresentar uma referência sintática explícita (pois esta pode estar no discurso) e, se ainda assim apresentarem, o elemento de referência (antecedente) deve estar fora de seu domínio de ligação.

Este trabalho irá se alinhar com a proposta de Duarte (1995) segundo a qual o PB estaria passando por um processo de mudança de um sistema [+] pro-drop para outro [-] pro-drop, devido ao enfraquecimento de seu paradigma flexional/pronominal que acaba por determinar a perda de sua uniformidade funcional. Para a autora, o PB só apresentaria sujeitos nulos de caráter pronominal, ou seja, do tipo pro, devido ao fato de AGR ser gerado como núcleo independente em todas as pessoas.

 

Os sujeitos de referência arbitrária

Os sujeitos de referência arbitrária não foram descartados da amostra, pois são, certamente, influenciados pelas mudanças na representação dos sujeitos de referência definida, já que podem ser representados por um pronome pleno ou por uma cv. São de referência arbitrária os indeterminados encontrados com as realizações plenas você, eles, nós etc como em (1) abaixo:

(1) Tinha um programa onde você pode votar.

Foram encontradas 13 ocorrências de sujeito de referência arbitrária (10,5% do corpus) sendo 12 com representação plena e apenas um com representação nula, este, encontrado em uma estrutura com sujeito correferente em terceira pessoa (2).

(2) ...quando vocêi conhece alguém em outro país proi quer aprender a língua deles.

A ausência de mais estruturas com sujeitos nulos de referência arbitrária pode estar relacionada ao domínio incompleto, ou ausente, de certas estruturas, como, por exemplo, àquelas em que o pronome se é usado como indeterminador do sujeito em sentenças do tipo: “fala-se muito sobre globalização hoje em dia”. Mas, apesar do baixo número de dados de sujeitos [+ arb], já se pode sentir a preferência pelo preenchimento na fala do aprendiz do português como L2, como reflexo de uma tendência de preenchimento que já vem sendo observada no PB (Duarte, 1995).

 

Os sujeitos de referência definida

Os sujeitos de referência definida são aqueles que apresentam um referente explícito no contexto. Entre estes, não foram considerados:

a) casos de sujeito nulo categórico:

- respostas afirmativas com sujeito nulo + verbo:

(3) (cv) Adoro.

(4) (cv) Gosto.

(5) (cv) Vou.

b) casos de sujeito pleno categórico:

- o sujeito é representado por um SN que não pode ser substituído nem por um pronome lexical e nem por uma categoria vazia, porque introduz um tópico novo sem correferentes.

(6) Meu pai também fala espanhol.

*Ele também fala espanhol.

*(cv) também fala espanhol.

c) construções do tipo “(eu) acho” e “(eu) sei”, quando usadas somente como marcadores do discurso.

d) uso de expressões fixas:

(7) Eu vou (referência ao slogan do Rock in RioIII).

e) construções com sujeito topicalizado:

(8) Minha amigona lá no São Paulo, ela faz faculdade...

f) coordenadas não-iniciais com sujeitos correferentes:

(9) Meu paii era um funcionário aqui, elei fala português.

(10) Eui vi muito, mas (cv)i não aprender tudo sobre cada país.

 

A análise: resultados

Foram levantadas 111 ocorrências de sujeitos de referência definida, das quais 81 (73 %) de sujeitos plenos e 30 (27 %) de sujeitos nulos. Verificada a distribuição dos dados pelas pessoas do discurso temos o seguinte: não foram encontrados dados de 2ª pessoa; entre os dados de sujeito de 1ª pessoa, que representam 72,5% do total do corpus, encontramos 90 ocorrências para a 1ª pessoa do singular e apenas 5 para a 1ª do plural; no que tange à 3ª pessoa há 13 dados para o singular e 3 para o plural. Entre os dados de 1ª pessoa do singular há 71,2% de sujeitos plenos e para a 3ª pessoa do singular 84,6% de sujeitos plenos, o que demonstra que a 3ª pessoa, na fala de nosso informante, apresenta, ao contrário do que vem sendo observado no PB (pesquisas recentes mostram que o maior percentual de sujeitos nulos ocorre nesta pessoa do discurso), menor resistência à variante inovadora.

 

Tabela 1 (ocorrência de sujeitos nulos nas duas pessoas do discurso encontradas na amostra)

Pessoa

Nulo Total / %

1ªsingular

26 90 (28,8)

3ª singular

02 13 (15,4)

1ª plural

01 05 (20,0)

3ª plural

01 03 (33,0)

 

A alta ocorrência de dados de 1ª pessoa do singular é, certamente, resultado da auto-referência natural em entrevistas do tipo da que fora realizada para esta análise. O índice de 28,5% de dados de sujeito nulo de 1ª pessoa (singular e plural) é baixíssimo para uma língua de sujeito nulo como o PB o que, ao menos insinua que o falante em questão esteja refletindo o percentual de sujeitos nulos encontrado para a mesma pessoa do discurso em PB.

Já o índice de 19% de sujeitos nulos de 3ª pessoa (singular e plural) indica um percentual surpreendente, já que corresponde ao inverso dos números encontrados para esta pessoa do discurso em pesquisas recentes, já citadas, para o PB. Porém, há que se reiterar que este percentual poderia ser maior se considerássemos o fato de a opção do falante, apesar de este não ter sido estimulado sempre neste sentido, ter sido pela auto-referência e pela utilização de indeterminados de 3ª pessoa (que foram computados e considerados em separado), isso tudo fora o fato de termos tido que desconsiderar as coordenadas não-iniciais com sujeitos correferentes que, em muitos casos, também eram de 3ª pessoa.

Observemos agora a tabela abaixo:

Tabela 2

Percentual de sujeitos nulos de ref. def. no PB encontrado em análises recentes

Duarte (1993)

Duarte (1995)

26 %

29 %

(textos escritos para o teatro)

(entrevista com uiversitários)

 

Conforme nos mostra a tabela 2 Duarte (1993) encontrou 26% de ocorrências de sujeito nulo, um índice muito baixo para uma língua de sujeito nulo. Em 1995 a mesma autora encontrou 29% de ocorrências de sujeito nulo, o que ainda não corresponde ao percentual encontrado em línguas genuinamente pro-drop, como o espanhol e o italiano. Os resultados de Duarte aproximam-se dos de Tarallo que, em 1983, encontrou apenas 20,6% de sujeitos nulos em uma amostra de língua oral. Considerando-se os resultados encontrados neste breve ensaio (27% de sujeitos nulos), como podemos interpretar o comportamento da variável sujeito, em relação à hipótese considerada para a aquisição de L2 ?

Segundo a hipótese de Duarte (1997), um falante no estágio final de aquisição de uma segunda língua reflete o input a que está sujeito. Sendo assim, esperava-se que o informante, que apresentou uma fluência oral de um aprendiz em transição do estágio intermediário para o estágio final, estivesse refletindo o percentual de sujeitos nulos encontrado no PB, ou que ao menos estivesse perto disso. Os resultados encontrados foram surpreendentes. O percentual de sujeitos nulos encontrados na amostra considerada (27 %) está muito próximo ao encontrado por Duarte, 1995 (29%) na fala de brasileiros de nível universitário.

Quando analisamos as pessoas do discurso, já não ocorre um casamento tão perfeito com os dados encontrados por Duarte (cf. op. cit.). Os índices de sujeitos nulos encontrados pela autora em duas análises distintas estão na tabela 3 abaixo:

 

Tabela 3 (o percentual inclui singular e plural)

Pessoa

Duarte, 1993 (oral)

Duarte, 1995 (oral)

8%

20%

42 %

28%

 

Na presente análise foram encontradas 28,5% de ocorrências de sujeito nulo de 1ª pessoa e 19% de ocorrências de sujeito nulo de 3ª pessoa (ambas incluem singular e plural). Não foram encontrados dados com sujeito de 2ª pessoa, fosse direta (tu) ou indireta (você, vocês) e nem dados com o sujeito representado pela forma a gente, pois a falante preferiu optar pelo pronome nós (há apenas um caso de sujeito nulo para a 1ª pessoa do plural).

A ausência de dados de segunda pessoa e da forma a gente pode ser explicada pelo fato de o sujeito desta análise não estar ainda totalmente familiarizado com tais estruturas.

 

Conclusão

Com base nos resultados encontrados, podemos concluir que há fortes indícios de que um aprendiz de L2 realmente reflete o input que recebe, no estágio final de aquisição (após a aquisição de flexão). Nosso informante, que tem como L1 o inglês e apresenta estruturas típicas desta fase do processo de aprendizagem do português (flexiona corretamente todos os verbos regulares para a 1ª e 3ª pessoas) apresentou em sua amostra de fala um índice de 27 % de sujeitos nulos, enquanto o índice encontrado para o PB por Duarte (1995 - entrevistas com falantes de nível universitário) é de 29 %. Resultados muito próximos que acenam para a confirmação da hipótese considerada.

Quanto ao grau de transferência/interferência entre os dois sistemas (L1 e L2), como já havia sido dito, não houve como medirmos, pois teríamos de dispor de um corpus que refletisse todos os estágios da aquisição do sujeito que estamos considerando, além de um outro, que nos abastecesse com informações sobre o processo inverso, ou seja, um falante do português aprendendo o inglês como L2, nas mesmas condições do falante aqui considerado, pois só assim poderíamos ter uma idéia do papel da transferência/interferência durante o processo de aquisição de L2, o que, de todo modo, não era o objetivo deste trabalho.

No que tange à aquisição de estruturas variáveis, podemos afirmar que se trata de um processo perfeitamente possível, já que pudemos observar um falante nativo do inglês (língua [-] pro-drop) produzindo estruturas genuinamente pertencentes às línguas [+] pro-drop, como a frase cv estávamos andando na rua e...” , ainda assim, demonstrando um percentual de ocorrências de sujeitos nulos muito próximo ao encontrado no próprio sistema que se estava adquirindo (o PB). Mesmo assim, é preciso que seja reiterado que os resultados aqui encontrados demonstram um forte indício, não uma confirmação da hipótese que, certamente, poderá ser melhor testada em futuras pesquisas com maior alcance explanatório e, conseqüentemente, com maior número de informantes.

 

Referências Bibliográficas

DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia.. Do pronome nulo ao pronome pleno: a trajetória do sujeito no português do Brasil. In I. Roberts & M. A . Kato (orgs.) Português Brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas : UNICAMP, 1993.

-------. A perda do princípio “Evite Pronome” no português brasileiro. Tese de doutorado apresentada à Universidade Estadual de Campinas, 1995.

-------. A aquisição do sujeito pronominal no português de contato. In: RONCARATI & MOLLICA (Org.). Variação e aquisição. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1997.

LIGHTFOOT, D. How to set Parameters. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1991.

PHINNEY, Marianne. The pro-drop parameter in Second Language Acquisition. Parameter Setting, ed. By Thomas Roeper & Edwin Williams. Dordrecht: Reidel, 1987.

TARALLO, Fernando. Relativization Strategies in Brazilian Portuguese. Tese de doutorado, University of Pennsylvania, 1983.

LABOV, William. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia : University of Pennsylvania Press, 1972.