COMPREENDENDO O COMPREENDER DAS CRIANÇAS
A RESPEITO DA LÍNGUA ESCRITA
UM MERGULHO NO COTIDIANO DAS SÉRIES INICIAIS

Ângela Vieira de Alcântara (UERJ)
Jacqueline de Fátima dos Santos Morais
(UERJ)
Cócis Alexandre dos Santos Balbino
(UFF)

 

Charles Dickens, referindo-se às mudanças revolucionárias ocorridas na França do século XVIII, afirmava: “É o melhor dos tempos; é o pior dos tempos!” Tal expressão nos remete à perplexidade com a qual o grande escritor inglês visualizou um momento único da História. O século das luzes trouxe à sociedade um novo olhar sobre a política e sobre o poder vigente, conseqüentemente sobre si mesma; um olhar construído sob nova perspectiva. Embutidos neste olhar perplexo encontram-se as contradições e a complexidade vividas pelos homens e mulheres em um mundo que, sob certos aspectos, jamais voltaria a ser o mesmo. Um mundo por onde caminharam Voltaire, Montesquieu e Rousseau.

Mas, acaso tivesse Dickens vivido duzentos anos antes, teria ele cunhado a mesma expressão, ou pelo menos semelhante, para referenciar-se a um mundo passando por um período de profundas transformações? Ao recuarmos nosso olhar por duzentos anos, vimos que se não devemos nos valer daquelas mesmas palavras, podemos ao menos estabelecer um paralelo com a visão perplexa de Dickens. A complexidade dos acontecimentos passados no século XVI influenciaram sobremaneira as gerações seguintes, a ponto de tornar possível que importantes filósofos marcassem um século com sua luminosidade. A chamada “crise de paradigmas”, inaugurada no século XVI por Nicolau Copérnico, com sua proposição do sistema heliocêntrico em oposição ao geocêntrico, este último formulado ainda na Antigüidade Clássica por Cláudio Ptolomeu, e pilar da tradição aristotélica (hegemônica até então), nos fez entrar num tempo marcadamente impregnado pelo valor dos avanços científico-tecnológicos, e paradoxalmente afetado pela miséria e pela exclusão. Grandes nomes como o próprio Copérnico, Galileu Galilei, Johannes Kepler, René Descartes, Martinho Lutero, com suas teorias, revolucionaram a maneira de se considerar o mundo físico e a esfera espiritual, que vistos sob novos pontos de vista, sob ótica inovadora, originaram uma nova concepção de homem e universo. Mas pari passu ao surgimento destas teorias, a vida do século XVI seguia, para o homem simples, destituído de nobreza, praticamente sem alterações. As monarquias absolutistas européias só seriam frontalmente contestadas, duzentos anos mais tarde, no século XVIII. E juntamente com a euforia e esperança trazidas pelas descobertas de terras alhures, vieram a colonização, a escravidão e o massacre de populações com padrões culturais diferentes dos padrões hegemônicos.

Apesar de quase cinco séculos separarem-nos do século XVI, as tensões que encontrávamos neste já distante período não estão longe de serem as mesmas com as quais hoje nos deparamos. Vivemos novamente - se é que, em algum momento nestes quinhentos anos, tenhamos deixado de vivê-la - uma crise de paradigmas, a crise trazida pela modernidade. Vivemos sob a égide do mito da ciência - naquele momento, ainda embrionária - como salvadora da razão e da humanidade. E como no século XVI, vemos que as profundas transformações proporcionadas pela ciência assimilada como tecnologia, não resultaram em significativa melhora das condições de vida para a grande maioria da população mundial. Pelo contrário, significaram o acirramento das desigualdades sociais e econômicas. Ainda se morre de fome e de sede no mundo, de sarampo e de tétano, em disputas por terras e por inflamadas lutas étnico-religiosas. Agora, como antes, os mais pobres, aqueles que estão em desvantagem do ponto de vista econômico, e, portanto, em relação ao poder político, morrem mais e cada vez mais cedo. As nações colonizadas a partir das descobertas, das Grandes Navegações do século XVI, são os atuais pólos de carência, aqueles que estão na periferia do mundo: África, América Latina, alguns países do Oriente Médio e da Ásia. Segundo Betto os dados da FAO nos informam que somos seis bilhões de pessoas no planeta, das quais metade vive na faixa da pobreza, e oitocentos milhões vivem com fome crônica (2000:32).

Se antes o modelo de sociedade, mesmo não podendo ser chamado de capitalista, produzia acúmulo de riquezas, gerando grandes processos de exclusão, hoje o modelo hegemônico não produz algo muito diferente. Vimos valores de cunho utilitarista sendo priorizados naquele momento, assim como hoje os vemos e sentimos. Secundarizados, ontem e hoje, podemos enumerar os valores de sempre: o respeito pelas diferenças, a convivência pacífica entre os povos, a dignidade nas condições de vida dos mais pobres.

Andamos hoje, além de por entre escombros produzidos pela sociedade do consumo, imersos e dominados pelo tempo da rapidez e pelo volume de informação. Somos atingidos diariamente pelas luzes e cores dos múltiplos outdoors, pelas formas das propagandas veiculadas através da mídia, pelos anúncios que nos informam das últimas novidades do mercado: produtos, todos, sem exceção, imprescindíveis a nossa vida cotidiana moderna. Todas as imagens produzidas pela sociedade moderna despertam em nós desejos. Conseguem criar um apelo: a que nossos olhos se abram sem restrições, a fim de que o sonho de uma sociedade de consumo seja plenamente fundado. Mas ainda é tempo de nos perguntamos: a que preço? Roitman nos alerta a respeito do perigo da perda de consistência de alguns valores que conseqüentemente podem nos levar a não ver os miseráveis, ou do risco dos miseráveis se tornarem transparentes aos nossos olhos, “formando uma verdadeira casta de milhões de intocáveis dos quais há que evitar - com asco e indiferença -- o cheiro, o olhar e a palavra”. (2000:9)

Diante deste cenário pouco animador, composto pelos estilhaços que a barbárie moderna atira ao chão, como nos diria Walter Benjamin, um cenário ávido, incessante de informações e, exatamente por tudo isso, contraditório, vem se juntar ao primeiro e também nos alcança. Sentimos que também nossas pesquisas acabam impregnadas deste tempo de urgências e perigos. Somos tomados por todas essas questões, questões que pela urgência, exigem rapidez e respostas.

Mergulhadas em toda essa teia, complexa e multifacetada, as nossas muitas preocupações circundam e alcançam, especialmente, os temas que hoje mais insistentemente têm acompanhado nossas investigações: os processo ligados à apropriação da língua escrita e aqueles ligados à formação de professores. Apesar de já considerável publicação no Brasil, estas duas áreas ainda enfrentam grandes desafios, tanto do ponto de vista teórico, quanto do ponto de vista metodológico. Como pensar em políticas públicas que possam melhorar como os professores aprendem e como estes ensinam, se concomitantemente não se pensar em políticas de reversão dos baixos índices de escolaridade da população, sobretudo da população distante das grandes cidades? Como garantir escolaridade pública e de qualidade a todos, quando o modelo anunciado pelos governos tem sido o modelo privatista, no qual o setor público (e nele as escolas públicas) é apontado como incompetente e ineficiente?

Afirmar a escola pública como um modelo a ser ainda defendido não significa legitimar todas as práticas produzidas em seu interior, mas significa, sobretudo, discuti-las para, quem sabe, afirmar que é preciso cuidar para que o bebê não seja jogado fora junto com a água do banho. O setor privado não é um modelo alternativo para as camadas populares. Na verdade, a essência da iniciativa privada é a busca pelo lucro, quando fundada nas relações comerciais predominantes no modo de produção capitalista. O modelo privado é defendido por quem tem interesse em lucrar com ele. E o lucro, a história nos tem ensinado, não tem sido distribuído com justiça.

Nossas investigações, portanto, ao focarem o lugar da escola pública e os processos ligados à aprendizagem da língua escrita vividos no interior deste espaço por seus atores, buscam, na verdade, reafirmar o espaço público enquanto lugar de legitimidade, lugar, como nos diz Bourdieu (1998) dos chamados trabalhadores sociais, aqueles que constituem a mão esquerda do estado.

Buscamos neste trabalho, imersos, nós e nossas investigações, em um tempo de incerteza e provocações, pensar o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita. Não é tarefa fácil. O ensino da língua escrita também parece viver, assim como a sociedade, uma crise. Apesar de fazer parte de todo planejamento escolar, de todo projeto institucional, de toda proposta pedagógica de todas as escolas que conhecemos, parece que temos formado muito pouco leitores no interior das escolas. Nos resta perguntar: se o ensino da lecto-escritura é uma tarefa tipicamente escolar, embora tenha seus prolongamentos fora dos muros da escola, como tem sido possível que um número significativo de crianças não consiga, dentro deste espaço institucional, se apropriar deste objeto de conhecimento? É preciso pensarmos que a escola tem sido o lugar historicamente definido como o locus privilegiado para a aprendizagem da língua. Então, nos perguntamos mais uma vez, como podemos explicar o fato de que a concretização desta vocação, a do ensino da língua, não aconteça de maneira eficaz? Como compreender, além disso, que as crianças que compõem o chamado quadro “daqueles que aparentemente não aprendem”, daqueles que supostamente tem dificuldades de aprendizagem, possuam cor e classe social definidas: são crianças, em sua grande maioria, oriundas das camadas mais pobres da população? Muito dificilmente vemos crianças de camadas médias e altas sendo apontadas como deficientes, como renitentes, multi-repetentes, como lentas para aprender, como possuidoras de dificuldades para escrever. Porque isso ocorre? Para buscar respostas a estas e outras questões que tem percorrido nossas pesquisas, ou pelo menos buscar pistas que nos possibilitem ver e compreender o que vivem nossas crianças e suas professoras, temos buscado o cotidiano das escolas, como lugar do acontecimento, da investigação, da pesquisa.

Entendemos, como Ferraço, ser o cotidiano da escola

um espaço/tempo de produções, enredamentos de saberes, imaginações, táticas, criações de memórias, projetos, artimanhas, representações e significações..., onde estabelecemos redes de relações com os que lá estão (2001:93).

Assim, buscar entender os processos que têm contribuído com o sucesso e o fracasso das crianças na apropriação da leitura e da escrita, especialmente daquelas crianças vindas das camadas populares, é buscar entender o cotidiano do ensino da leitura e da escrita nas escolas destas crianças. Deste modo vamos falar, ou melhor, escrever, do lugar de quem vive neste lugar de bifurcações e encruzilhadas, onde se misturam dores e alegrias, descobertas e retrocessos, angústias e prazeres. Sim. É deste lugar chamado cotidiano da escola fundamental, palco de lutas e desafios, onde professoras e educandos, pesquisadores, ainda defensores da escola pública vivem suas esperanças e expectativas, que vamos falar. É deste lugar que trazemos histórias para serem compartilhadas. Histórias coletivas. Histórias de professoras. Histórias de alunos e alunas.

As histórias não representam uma visão reducionista da realidade, onde a escola e seus professores são vistos ora personificando o bem completo, ora o mal absoluto. As histórias vividas/ouvidas no cotidiano das escolas investigadas nos colocam afastados de uma visão maniqueísta da educação. Não vemos nestes casos, a instituição de ensino como lugar de reprodução de forças conservadoras apenas, o que ocorreu, de certo modo, sob a influência de uma produção teórica reprodutivista, especialmente baseada em textos antigos de autores como Bourdier e Passeron. Queremos, ao contrário disto, afirmar a potência dos professores e alunos, que em seus fazeres diários deixam visíveis que a escola é também um locus de processos de resistência, luta, de enfrentamento, de criação de novas possibilidades. É assim que se constitui o cotidiano da escola: lugar de tensões e contradições.

O recentemente aprovado Plano Nacional de Educação nos dá a dimensão das tensões pelas quais o ensino fundamental vem passando. Em seu Diagnóstico, o chamado PNE informa que, em 1998, havia mais de 35 milhões de matrículas no ensino fundamental, número superior à população cuja faixa etária está localizada entre 7 e 14 anos. Os 35 milhões de matrículas representam 116% da população brasileira nesta faixa etária. Isso significa que há muitas crianças matriculadas cuja idade está fora desta faixa, normalmente acima. De fato, quase ¼ do total de matrículas do ensino fundamental (24% para ser mais exato) é referente a uma população de idade maior que 14 anos. Ao se proceder à análise por região, verificamos que aquela que menos apresenta crianças de faixa etária superior à desejada para o ensino fundamental é a região sul, com 15%, seguida da região sudeste, com 20%; depois aparecem empatadas as regiões norte e centro-oeste, com 25%, e por último, a região nordeste, com 30% de matrículas de crianças acima de 14 anos.

Estes números nos mostram que há um grave quadro de repetência nas escolas públicas brasileiras, haja visto que em 1998, o ensino privado absorvia apenas 9,5% das matrículas (Plano Nacional de Educação, In: DIDONET, 2000: 62). A análise por regiões nos indica que as regiões mais pobres do país possuem os maiores índices de repetência, confirmando o que dissemos acima: as crianças que compõem o quadro de quem aparentemente não aprende são aquelas provenientes das camadas mais pobres da população. Mas num país de profundas desigualdades como o nosso, esbarramos com esta realidade sem precisar sair do estado em que vivemos. As periferias das cidades mais ricas, as favelas cariocas, os bairros operários, as regiões agrícolas, enfim, nos quatro cantos do país, nos deparamos com comunidades que contam com altos índices de repetência em suas escolas.

Podemos traduzir a repetência como sendo a incapacidade de a escola pública seduzir seu público a aprender? Acreditamos que essa afirmação não revela a complexidade da situação nas escolas públicas. A realidade precisa ser mais bem vista. Ou vista de outra maneira. Um olhar simplificador e apressado poderia afirmar que a escola brasileira não consegue seduzir ¼ de seus alunos e alunas ao aprendizado, no momento exato em que este aprendizado deveria se concretizar. Mas queremos reafirmar: esse olhar é simplificador. Acreditando que “cada um lê com os olhos que tem, e interpreta a partir de onde os pés pisam”, somos convidados por Leonardo Boff (1997:9) a ler com nossos olhos o cotidiano deste espaço educativo, sabendo que os olhares são os possíveis, posto que cada ponto de vista é, segundo ainda Boff, somente a vista de um ponto, nos permitindo o exercício de olhar e convidar a cada um a compartilhar conosco tempo e atenção, para também olhar.

Sim, há problemas nas práticas pedagógicas, na infra-estrutura escolar, na formação de professores, nos conteúdos ministrados. Mas, a inegável disparidade de condições econômicas entre os cidadãos que compõem a sociedade brasileira, reflete-se cada vez mais na educação que as crianças e jovens brasileiros vêm recebendo. Enquanto os pais de crianças de classe média-alta, projetando o futuro de seus filhos em consonância com as demandas do mercado, vêm colocando-os na escola com cada vez menos idade; enquanto essas crianças são alfabetizadas e aprendem língua estrangeira, matemática e até música num ambiente lúdico e altamente informatizado, os filhos de pais das classes populares muitas vezes sequer encontram escolas onde seus filhos possam estudar. Ou professores que os atendam nas escolas pretendidas. Há falta de material escolar, de merenda, de mesas e carteiras; há falta de escolas em boas condições, há falta de investimento no setor público. Nestas condições, o aprendizado entre os pequenos cidadãos de classes sociais diferentes se dá, a exemplo do que já ocorre no contexto da sociedade, de forma profundamente desigual. Não queremos aqui afirmar que nada há que ser feito pois o destino desigual já está marcado. Queremos dizer o contrário disto: que é preciso enfrentar o problema e encontrar soluções mais criativas e produtivas do que as que vêm sendo implementadas como as chamadas “amigos da escola”, “adote um aluno”, “bolsa escola”. Todas paliativas.

Nossos trajetos, singulares e comuns em certa medida, como pesquisadoras e pesquisador da escola básica, estiveram sempre envolvidos com questões ligadas ao ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita. Uma de nossas investigações tem a finalidade de avançar na construção de referenciais que permitam aos professores e professoras compreender como se dá o complexo processo de alfabetização em crianças. Outra, entendendo o espaço cotidiano da escola como lugar de visibilidades e invisibilidades, procura trazer à discussão o que temos visto e o que temos deixado de ver a partir das práticas pedagógicas vividas dentro da escola. E a terceira investigação, busca compreender como se dá à construção do mito em torno da valorização da escolaridade como garantia de ascensão e permanência no mercado de trabalho. Estas investigações, ainda que com aspectos diferenciados, possuem traços e dilemas em consonância. Um deles é que queremos ver o acesso à escolaridade garantido para todos, de maneira democrática, com igualdade de condições para todos. Queremos que o direito à educação não seja visto simplesmente como uma demanda do mercado, mas como um direito individual, e, sobretudo, coletivo.

Mas esse direto precisa de novas práticas. Práticas que incorporem os usos e funções que a população vem historicamente em seu cotidiano, desenvolvendo. Quais são as formas de utilização que a leitura e a escrita encontra na vida da população? As práticas pedagógicas têm levado em consideração essas formas? O que temos constado em nossas pesquisas é que a resposta tem sido predominantemente não. Majoritariamente temos encontrado práticas tradicionais de ensino da língua nas escolas e o uso das cartilhas como objeto de leitura nas salas de aula. A cartilha tem se constituído como objeto da classe predominante nas salas, não raras vezes único. Sabemos que o uso freqüente de cartilhas no período alfabetizador não é um fenômeno apenas brasileiro. Com maior ou menor freqüência, este “material para ensinar a ler” tem sido utilizado em boa parte dos países com que temos tido contato. Mas é no Brasil que temos visto uma maior dependência deste tipo de material, e mais, com o apoio do próprio governo que se utiliza de volumosa soma para compra de títulos para as escolas.

É ela, a cartilha - o livro didático em sua versão para as classes de alfabetização - que serve de suposto texto, na verdade pretexto, para o ensino de fragmentos da língua escrita: sons, sílabas, palavras, frases, conjuntos de textos em pequenos textos, tudo regado a atividades sem sentido, mecânicas, destituídas de sabor e de vida. Por isso nos perguntamos: para que servem? As atividades que têm por base a lógica da cartilha confundem ler com oralizar, e esperam que treinando a pronúncia de sons em repetidas atividades, a criança acabe por desenvolver uma leitura compreensiva do escrito.

Os textos utilizados nesta lógica pela escola, apelam, não poucas vezes, para a construção de situações visivelmente irreais. A justificativa não poderia ser menos verdadeira: atender o apelo infantil por fantasia. Ora, poderíamos nos perguntar, onde haveria fantasia nos textos das cartilhas? Os “textos” presentes nos livros didáticos são, em geral, amontoados de frases cuja estrutura não se afasta muito do exemplo que temos abaixo. Retirado de uma conhecida cartilha, este suposto texto em nada se diferencia de outros tantos fartamente encontrados em outros livros didáticos. Como é possível desejar ler textos cujo pretexto único é, tão somente, a decodificação mecânica de fonemas? Como é possível tendo por base práticas como estas, desenvolver o tão proclamado gosto pela leitura nos alunos? Vejamos o exemplo de um texto retirado do livro didático. Ele nos dá a dimensão de que longe de representarem linguagem escrita, textos como estes mostram uma concepção estereotipada de linguagem e de língua:

 

O jacaré, a jibóia e o bode

 

O jacaré bebe café.

A jibóia bebe cajuada.

E o bode?

O bode joga dado e bebe água de coco.

 

Se formos pensar na construção histórica deste objeto chamado cartilha, fetiche do processo ensino-aprendizado da lecto-escritura, tem ela sua origem nos silabários do século XIX, sendo posterior ao surgimento das metodologias de alfabetização que, segundo José Juvêncio Barbosa (1990) remontam a antigüidade. Começar a ensinar a ler e escrever por letras isoladas, ensinando seus sons primeiro para só depois ensinar as sílabas, palavras e frases, nesta ordem, e somente nesta ordem, tem sua origem há 2000 anos atrás. Nada mais antigo e nada mais atual no cotidiano das escolas do que ensinar desta forma, crendo num esquema somatório que afirma que é pela soma de elementos menores, supostamente mais simples e fáceis, os fonemas e as sílabas, que o sujeito aprende a língua. Este modelo de ensino coloca a decisão do que é simples ou complexo nas mãos do adulto. É o seu ponto de vista que define o que deve ser ensinado e quando deve ser ensinado. O ponto de vista da criança, seus modos de pensar e construir conhecimento não são levados em conta.

Poderíamos discutir aqui quais as conseqüências de um trabalho alfabetizador voltado para a apropriação de um modelo textual tão pobre, e se de fato o texto acartilhado pode ser considerado texto. Mas por não ser este o propósito de nossa apresentação, deixaremos para desenvolver este tema numa posterior oportunidade.

Muito tem-se debatido e publicado acerca das possíveis relações entre a aprendizagem da lecto-escritura e o desenvolvimento das chamadas habilidades percepto-motoras. Tendo como paradigma que para uma boa aprendizagem da leitura e da escrita nas séries iniciais, fatores tais como discriminação auditiva, coordenação motora, percepção visual ou desenvolvimento da lateralidade são determinantes, vemos surgirem nas práticas pedagógicas, seja da Educação Infantil, seja da Classe de Alfabetização, e até mesmo em séries posteriores a estas, o chamado período preparatório. Ou seja, supostamente para aprender a ler e escrever é preciso que a criança realize atividades onde não haja leitura e escrita. Hoje pesquisas mostram que essa aprendizagem é uma conseqüência de múltiplos e complexos processos cognitivos que os sujeitos vivem, e não meramente motores, como querem alguns.

Que concepções de ensino e aprendizagem carrega a escolha de certas atividades, e não de outras, nas aulas das séries iniciais? O que sabem os e as docentes sobre um processo que julgam estar contribuindo com seu aprimoramento, o processo de apropriação da língua escrita?

É no intuito de pensar sobre essas perguntas, sem a pretensão de dar conta da questão, que trazemos fragmentos de cenas vividas com professores e alunos das séries iniciais, buscando nestas cenas cotidianas pistas que nos revelem como as crianças compreendem a escrita e a leitura, e como, por outro lado, docentes compreendem o que se passa com seus educandos. É o cotidiano o lugar privilegiado de nossas investigações. É nele que mergulhamos. É com ele que nos alimentamos.

Trabalhamos, convidados por Guinzburg, na perspectiva de arqueólogos itinerantes procurando um objeto mais precioso, escondido de olhos descuidados. Nossa metodologia de investigação buscou nas ações e situações cotidianas de alunos e alunas, no que se mostra sempre igual, o diferente.

Queremos esclarecer que nosso objetivo ao realizar essa pesquisa foi poder melhor pensar como se dá, no interior da escola, o processo de alfabetização das crianças das camadas populares, e como a escola pode contribuir ou potencializar o fracasso ou o sucesso escolar. Pesquisar as práticas dos agentes que lidam com a criança em fase de alfabetização e suas concepções de alfabetização foi, e é, fundamental para podermos pensar em construir uma escola realmente de qualidade.

Pensar sobre alfabetização não é tarefa apenas de quem, no interior da sala de aula, propõe tarefas de leitura e escrita. Somos todos, de certo modo, alfabetizadores, se aceitarmos o que nos diz Paulo Freire, estamos ensinando a ler quando ensinamos a compreender o mundo. Então são alfabetizadores: merendeiras, serventes, diretoras, professores de música, de artes, de Educação Física. E é preciso lembrar que na escola, nenhum sujeito pode estar isolado, o que nos dá pistas para pensar na importância de cada um para a formação do sujeito/leitor do mundo e da palavra que está no mundo.

A maioria dos professores acredita que o desenvolvimento percepto-motor é pré-requisito para a aprendizagem da lecto-escritura, apesar de farta literatura mostrar que alunos sem coordenação motora porque paralisados, sem discriminação visual porque cegos, sem discriminação auditiva porque surdos ou sem lateralidade desenvolvida porque tetraplégicos, podem aprender a decifrar a magia das letras e palavras que os textos escritos possuem.

Para analisarmos o que significa a crença em “trabalhinho de coordenação como lugar de preparar para a alfabetização é preciso ter em conta que meninos e meninas não se acham mergulhados em um mundo ágrafo, mas vivem em uma sociedade na qual muitas formas de escrita são criadas, modificadas e passam a circular. Meninos e meninas esbarram-se em seu cotidiano com variados objetos de leitura, múltiplos em conteúdos e formas, tomando-os como objeto de reflexão, como não poderia deixar de ser, posto que a curiosidade na criança é força que impulsiona para a vida e para a descoberta. É pensando sobre esses objetos textuais que meninos e meninas de todas as raças e credos, cores e cultura, elaboram o que Emília Ferreiro (1985) chamou de hipóteses, isto é, explicações para si sobre como funciona a escrita, num movimento de confirmar e pôr em jogo as hipóteses já elaboradas; de confrontar as hipóteses suas com as de seus colegas, e de assim irem se aproximando das formas e usos que este sistema de representação possui em seu tempo e lugar. As crianças, assim, criam e recriam formas de ler e entender o escrito pois que estão em processo de criar e recriar-se, de ler e reler-se. E tudo isso ocorre, é preciso que tenhamos clareza, para além do ensinado na escola, para além do aprendido com as professoras.

Nossas investigações têm mostrado que os alunos em seu cotidiano, desde muito cedo, levantam hipóteses sobre os diferentes portadores de textos que encontram em circulação no ambiente escolar, não o fazendo apenas com aqueles oferecidos (ou impostos) na sala de aula, os que possuem legitimidade conferida pelo currículo, os que são considerados “os mais adequados” ao mundo do leitor iniciante. São os mais adequados, em geral, apenas cartilhas e exercícios mimeografados, pobres exemplos de língua escrita, queremos reafirmar.

Mas há quem busque quebrar com a lógica escolar dominante. É como brilhantemente um aluno diante do seu desenho feito, após uma contação de história nos revelou através de sua pergunta: “posso desenhar agora de verdade?” Diante da perplexidade da professora que pergunta: “Por que? Até agora você desenhou de mentira?” a sua resposta nos interroga e instiga: “Não, é que agora eu vou desenhar o que quero de verdade.”

Hoje sabemos, através de trabalhos como os de Ana Luisa Bustamante Smolka, que a aprendizagem é uma conseqüência de múltiplos e complexos processos cognitivos que os sujeitos vivem, e não processos meramente motores, como querem e defendem alguns. Aprende-se a ler e a escrever porque se pensa sobre esse objeto de conhecimento e não porque se realizam tarefas como correr, pular, recortar ou cantar. E mais: aprende-se a ler e escrever não porque copia-se mecanicamente, em inúmeras vezes, o determinado pela professora. Aprende-se porque cada um investe seu tempo, esforço e desejo em determinado objeto que deseja melhor conhecer. E inicia com este objeto um jogo de pensamento. Mas que jogo é esse? É um jogo que envolve advinhas. Envolve procurar e achar, mas também não encontrar e perder. Ou perder-se. Um jogo que tem o comando do cérebro e não, como se acredita tão firmemente, o comando do olho, da mão ou do ouvido. Um jogo que precisa ter sentido para quem quer nele se envolver. Um jogo que é determinado pelo próprio jogador, e não por um outro externo a ele, quer seja a professora, quer seja o livro didático. Neste jogo de aprendizagem da leitura e da escrita, quem dita as normas é o aluno. E são estas normas pessoais que estão sempre em revisão, reelaboração, releitura como conseqüência de múltiplas interações e interlocuções a que os sujeitos-aprendizes estão imersos.

Em uma concepção onde é o sujeito quem está no centro do jogo da aprendizagem, cujo prêmio se converte na apropriação da leitura e da escrita, a ação do professor acaba por mudar de direção. Professores e professoras são convidados a realizarem um esforço teórico-prático no sentido de que os mitos que ainda percorrem a aprendizagem desse sistema de representação alfabético, sejam desfeitos. Para isso é preciso que cada professor se veja como profissional que busca um olhar mais complexo sobre os fenômenos da aprendizagem. É necessário que cada professor e professora torne-se pesquisador de sua própria prática, buscando múltiplos referenciais que lhes permitam ir em direção a novas formas de ver e fazer educação.

Não podemos esquecer que as concepções de ensino não foram formuladas apenas por professores, ou apenas no campo da pedagogia. Ao contrário. Vários profissionais se aproximaram, ao longo do tempo e da história, dos professores contribuindo com essa visão distorcida do que seja aprender a ler e escrever.

Talvez uma das pistas seja buscar identificar nos alunos apontados pelos docentes como “os mais fracos”, “os nulos”, “os que não aprendem”, os que “tem dificuldades de aprendizagem”, “os que precisam das aulas de reforço”, que saberes (Esteban, 1992) possuem esses alunos e alunas sobre o objeto de conhecimento que é a escrita.

E se assim pudermos compreender o compreender destas crianças talvez possamos caminhar por entre estas redes que vão se estabelecendo entre os saberes que são trazidos por eles, os saberes que são incorporados e ressignificados, e ainda aqueles saberes “ocultos”, fruto das experiências e da memória acumulada. Assim, compreendendo o compreender do outro, promover espaços de discussão coletiva, onde professores e professoras, junto aos demais funcionários, não-docentes, mas igualmente educadores, possam dialogar e realizar um planejamento que contemple esses saberes todos, e, portanto, a complexidade e a pluralidade do cotidiano de uma escola, de cada escola, desta escola, mais coletiva, mais solidária, mais habitada por cada um na sua diferença e potencialidade

 

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