LINGUAGEM E NEUROSE

Afrânio da Silva Garcia (UERJ)

 

Relações entre linguagem e neurose

O estudo tanto das neuroses quanto das psicoses parece comprovar que, definitivamente, ambas constituem processos lingüísticos. Parece-nos que a gênese de ambas consiste numa determinada frase ou expressão que, inconscientemente, em maior ou menor grau, passa a determinar o comportamento do indivíduo.

Lacan enfatiza o fato, já exposto por Freud, mas não suficientemente enfatizado, de que o inconsciente de um indivíduo é constituído não apenas pelo seu id (sua mente animal, irracional, por assim dizer) como também por vastas porções do seu superego (sua mente social, aquilo que lhe foi introjetado como norma, como aceitável, pela família e pela comunidade). Isso explicaria a importância da linguagem para determinados comportamentos humanos neuróticos, obsessivos ou psicóticos. Citaremos em seguida alguns exemplos:

A) Uma pessoa extremamente gorda pode ter como origem do seu problema uma insatisfação sexual ou sentimental (as revistas femininas e a própria realidade das conversas das mulheres cansam de confirmar essa hipótese), através da formulação de uma frase mental (mais ou menos) inconsciente do tipo: “Já que eu não como (não tenho relações sexuais suficientes ou com a pessoa que eu desejo), eu como (comida)”.

B) Uma outra pessoa extremamente gorda pode ter formulado uma frase mental diferente, baseada numa história de vida diferente, por ter passado privações num período anterior de sua vida, do tipo: “Já que eu não podia comer bastante e bem no passado, eu vou comer o que quiser e em grande quantidade agora”.

C) Uma pessoa que foi forçada muito precocemente a fazer suas necessidades em horários rigorosamente estabelecidos pode tornar-se, segundo Karl Abraham, um atrasado compulsivo, ao formular uma frase mental do tipo: “Já que eu fui forçado a fazer minhas necessidades na hora certa, agora eu vou fazer tudo na hora errada”.

D) Uma pessoa que foi muito maltratada na infância, com pais impiedosos e cruéis, pode tornar-se um marginal, ao formular uma frase mental do tipo: “Já que eu fui tratado cruelmente pelos outros, eu vou tratá-los com a mesma crueldade”.

E) A elaboração de uma frase mental pode explicar mesmo certas parafilias (taras). Quem nos garante que a necrofilia (desejo sexual pelos mortos) não teria como origem uma frase mental do tipo: “Meu pai, minha mãe, meus irmãos, meus vizinho me odeiam e abusam de mim; não há nenhuma pessoa viva que me queira.” Então, como a mente humana sempre procura uma solução, como dizia Freud, mesmo que essa solução seja pavorosa, estaria plantado o germe do desvio patológico.

 

Os processos oníricos de Freud

para Freud, os mesmos processos lingüísticos que dão origem às neuroses e às psicoses, dão origem também aos nossos sonhos do dia-a-dia. Em “A interpretação dos sonhos”, sua obra fundamental, ele afirma que a linguagem dos sonhos tem que representar desejos socialmente ou pessoalmente condenáveis de uma forma artificiosa para escapar ao mecanismo de censura da nossa mente consciente (algo semelhante ao que nossos autores faziam no tempo da ditadura militar). É importante notar que os processos oníricos, além de servirem para elaborar sonhos e gerar neuroses e psicoses, são também muito usados na criação artística, na mitologia e na propaganda.Os principais mecanismos de estruturação da linguagem dos sonhos ou processos oníricos serão estudados a seguir.

 

ASSOCIAÇÕES SEMÂNTICAS

Para escapar à análise da censura, é muito comum o substituir-se um determinado elemento por um sinônimo, um antônimo, uma metáfora ou uma metonímia, ou por um elemento que está de alguma forma associado semanticamente ao primeiro elemento. Vejamos alguns exemplos:

A) O órgão sexual masculino é normalmente representado ora por objetos pontiagudos, como punhais, espadas, lanças etc.; ora por objetos cilíndricos, como cobras, postes, toras etc.; ora por objetos duros, como paus, ferros etc.; ora por seres com uma cabeça que pode ser coberta, como heróis com capas, frades com capuz etc.

B) O órgão sexual feminino, por sua vez, pode ser representado por cavidades, como uma caverna (daí talvez a caverna dos tesouros, tão freqüente na literatura infantil), um porão, um buraco etc.; qualquer tipo de entrada, como uma porta, uma fechadura etc.; fontes de água, como rios, lagos, poços etc.; coisas que se abrem, como uma flor, uma janela, asas etc.

C) Problemas podem ser representados como um lugar escuro, apertado ou sem saída como um calabouço, um túnel (a famosa metáfora da luz no fim do túnel deriva do mesmo processo), paredes que se aproximam, sufocação etc.; por um caminho, subida ou descida sem fim; pelo sonho clássico de estar nu num ambiente em que todos estão vestidos (sonho de inadequação social); ou pelo outro sonho clássico de estar paralisado diante de um perigo.

 

ASSOCIAÇÕES FONÉTICAS

Muitas vezes, o jogo que a mente faz para iludir a censura centra-se no som das palavras, retirando ou acrescentando sons, ou ainda substituindo uma palavra por outra de som similar, ou por um homófono, como podemos verificar nos seguintes exemplos:

D) Uma analista de nome Eunice (pseudônimo) que tratava de uma criança autista, que normalmente se comportava muito bem, ficou espantada quando, no dia do aniversário da analista, a paciente começou a se comportar mal, fazendo bagunça e gritando repetidamente “Eu!”. Ao final da sessão, a analista perguntou quem era “Eu!”, ao que a paciente respondeu: “Eu é você!”, ou seja, a menininha estava, à sua maneira, mostrando sua alegria com o aniversário da analista, repetindo seu nome de uma forma truncada.

E) Um homem casado apaixona-se por uma mulher casada, de nome Dalva. Ele sonha que acorda de manhã cedinho para ver o alvorecer e fica olhando embevecido para a estrela da manhã (estrela d’alva).

F) Associações fonéticas também são muito usadas na poesia: teadoro Teodora; que fica e passa, que pacifica etc.; e nos trocadilhos populares, muitas vezes de cunho erótico: se eu lavo, não cozinho, se eu cozinho, eu não lavo; arraiá do Toco Cru Pegando Fogo etc.

 

ASSOCIAÇÕES SINTÁTICAS

Normalmente reservadas para conteúdos altamente condenáveis, como tendências homossexuais ou taras, consiste no acréscimo ou retirada, ou troca de lugar, de um dos elementos da frase, de modo a ocultar seu real sentido, como podemos constatar nos exemplos abaixo:

G) Um homem que não admite suas tendências homossexuais com seu melhor amigo sonha que eles dois saem com duas mulheres maravilhosas para transar e passam a noite inteira com elas numa verdadeira orgia. Se retirarmos da descrição do sonho as expressões em negrito, saberemos o motivo oculto por que ele acordou tão contente nesta manhã.

H) Um homossexual idoso, que perdeu grande parte da sua libido, vai se tornando cada vez mais bondoso, dando comida e roupas para os necessitados. De novo, se retirarmos a expressão em negrito do texto, veremos que ele continua, ainda que na imaginação e através de um recurso lingüístico, a exercer sua sexualidade.

 

DESLOCAMENTO

Uma estratégia muito eficaz de enganar o mecanismo de censura da mente consciente, consiste em colocar na posição de destaque aquilo que não tem importância e deslocar para um papel pouco importante aquilo que é essencial para a estruturação do sonho. Muito pouco utilizado durante a vigília, embora alguns propagandistas façam uso deste recurso. Vejamos os exemplos abaixo:

I) Um homem deseja a filha do porteiro. Ele sonha que ele e o porteiro saem para tomar umas cervejas, falam de futebol, riem, se divertem, conversam sobre vários assuntos e, num determinado momento, o porteiro lhe dá a foto da filha para que ele veja como ela está bonita de caipira. O homem devolve a foto para o porteiro e eles continuam a se divertir até fechar o bar. O homem acorda feliz.

J) Uma mulher sonha que está namorando o tio de seu marido, por quem ela não sente nenhuma atração. Pensando sobre o sonho, ela se lembra que na casa desse tio houve uma ocasião em que um jovem, de quem ela gostava, acabou se urinando numa brincadeira boba no banheiro.

 

TRANSFERÊNCIA

O processo de transferência, muito utilizado também no período de vigília, consiste em deslocar o agente ou o objeto da situação descrita, de modo a iludir o mecanismo de censura ou não deixar transparecer nossas reais emoções. Os exemplos abaixo mostram como se dá esse processo:

L) Um homem extremamente ciumento pode muito bem estar transferindo para sua esposa seus desejos de estar com outros homens.

M) Uma mulher virgem e extremamente desejosa de deixar de sê-lo fantasia que um empregado a deseja, quando, na verdade, é ela quem deseja o empregado (cf. a trama do filme Passagem para a Índia).

N) Muito comum na fofoca é o homem que transfere para a mulher seu interesse, dizendo: “Ela é doida por mim”, quando ele é que é apaixonado por ela.

 

INVERSÃO

Quando o desejo que cabe ao sonho expressar é por demais inaceitável, a mente do indivíduo se vale do processo de inversão, em que as coisas são expressas pelos seus contrários, como uma medida extrema para evitar a decodificação pela mente consciente. Podemos constatar como esse processo funciona pelos exemplos abaixo:

O) Um homem que deseja uma menina lourinha (um desejo extremamente condenável) pode sonhar que está sendo espancado por um preto velho e acordar feliz depois disso.

P) Uma mulher que deseja ser penetrada pelo filho de seu marido pode sonhar que está saindo de dentro da mãe dele.

 

FORMAS MISTAS

É muito comum o sonho aparentemente sem sentido, em que se misturam elementos pertencentes a vários objetos, lugares, pessoas etc. Na verdade, a forma mista é um tipo especial de relação sintática, em que elementos concretos díspares se combinam para formar um todo, cuja mensagem é expressar o desejo do sonhador, sem que este seja detectado pelo mecanismo de censura. Os exemplos abaixo servem para mostrar como elas são e qual sua função:

Q) O autor deste trabalho sonhou que estava indo num navio para Paris, onde encontrou com seu amigo maranhense Ribamar. Só que o porto de Paris era a Praça XV. Essa forma mista evidencia um tipo de situação, muito desejável para o autor, que tem a ver com a cidade de Paris (sonhada, pois o autor nunca lá esteve), com seu amigo Ribamar, com andar de navio (provavelmente a barca de Niterói) e a praça XV.

R) Numa outra vez, o autor sonhou que visitava sua mãe na casa da sua aluna subindo a escada da sua dentista, mas era conduzido a um tatame, por trás do qual uma porta levava a uma boate. De novo, algo muito desejável tem a ver com vários lugares e pessoas distintos: sua mãe, a casa de sua aluna, a escada da dentista, um tatame, uma boate.

 

A PROGRAMAÇÃO NEUROLINGÜÍSTICA

Partindo da mesma vinculação entre linguagem e neurose, mas sem o viés estritamente psicanalítico, Bandler & Grinder lançaram as bases da programação neurolingüística, na qual eles propõem que muitos dos sofrimento e das limitações humanos provêm de um erro de programação da nossa mente, à maneira do que ocorre com os computadores. Seríamos programados defeituosamente para o fracasso, para o sofrimento, para a inércia etc. e, da mesma forma que os computadores, deveríamos ser reprogramados, para sermos mais felizes, ajustados e eficientes. Os três principais defeitos de programação de nossa mente são, de acordo com Bandler & Grinder, a generalização, a eliminação ou redução, e a distorção, que explicaremos a seguir.

 

GENERALIZAÇÃO

A generalização é o processo pelo qual o indivíduo, após sofrer uma experiência traumática, ou uma série delas, ou ainda por meio da propaganda, passa a generalizar essa experiência e seus efeitos progressivamente para todos os campos da sua existência. Cabe ao analista ou psicoterapeuta fazê-lo, também progressivamente, individualizar este episódio da sua vida e verificar que outras experiências, outros caminhos se encontram abertos. Por exemplo, se um paciente vier com uma generalização do tipo: “Ninguém gosta de mim” ou “Todo mundo me despreza”, o terapeuta deve contestar sempre: “Mas será que ninguém, realmente ninguém gosta de você?” ou “Será que não há ninguém que o aprecie, nem sua mãe ou esposa?”, até que o paciente se conscientize do seu erro de programação e se reprograme.

 

REDUÇÃO OU ELIMINAÇÃO

O processo de redução ou eliminação consiste em suprimir toda e qualquer informação ou experiência, exceto aquela que elegemos como fundamental. Gradativamente, o indivíduo passa a enxergar o mundo por uma única premissa, o que é causa de grandes sofrimentos e inadequações. De novo, é dever do terapeuta tentar mostrar que existem inúmeras outras opções, pois como afirmam Bandler & Grinder, com grande sabedoria e profundidade: neurose é acreditar que só existe um único caminho, uma única opção. Assim sendo, se uma pessoa afirma, com extremada convicção, sentenças do tipo: Eu só serei feliz com Fulano ou Eu só sei fazer esse tipo de trabalho, o terapeuta deve incentivá-lo e estimulá-lo, inquirindo: Mas porque não com Beltrano? Ele é tão simpático/bonito/gosta tanto de você etc. ou Você já tentou fazer este outro trabalho? É muito fácil e dá muito dinheiro/prestígio/prazer etc. Pouco a pouco, as fronteiras da razão irão expandindo os horizontes do paciente e libertando-o de suas terríveis limitações.

 

DISTORÇÃO

Talvez o pior dos defeitos de programação, a distorção faz com que a pessoa simplesmente não tome conhecimento de qualquer evidência que contrarie o modelo neurótico que ela tem de si mesma e do mundo e, quando forçado a isso, dá um jeito de adequar toda e qualquer evidência que lhe venha do mundo exterior a esse modelo neurótico. Desse modo, um racista verá sempre seus infortúnios como sendo fruto de alguma tramóia armada por algum judeu, negro, amarelo etc., e quando vir alguma realização magnífica de um desses “seres inferiores”, dirá, torcendo o nariz: “Mas ele (Freud, Marx, Nat King Cole, Eddy Murphy etc) não é realmente judeu, negro etc.” Um caso citado pelos próprios Bandler & Grinder diz respeito a um homem que achava que “ninguém o amava, todos queriam se aproveitar dele” e que tinha uma esposa que o amava acima de todas as coisas. Quando o terapeuta lhe perguntou: “E sua esposa? Ela não o ama, não lhe trata bem, com devoção”, ele respondeu: “Ela também só quer se aproveitar de mim”, ao que o terapeuta insistiu: “Como assim?”, e o paciente respondeu: “Ela só está interessada no meu dinheiro”, ao que o terapeuta, insistente, redargüiu: “Mas se você vive do seguro social e sua esposa é uma mulher jovem e bonita? Se fosse só pelo dinheiro, praticamente qualquer outro que ela arranjasse a deixaria em melhor situação do que você. Você não acha que ela gosta de você ao menos um pouquinho?” Somente então o paciente condescendeu: “É, ela gosta um pouquinho de mim.

 

CONCLUSÃO

Como pudemos verificar, as relações entre a linguagem e o comportamento neurótico e psicótico são, na verdade, muito estreitas. Apenas arranhamos essas relações, mas sua importância é extrema e mereceria maior empenho tanto por parte dos estudiosos de letras quanto dos estudiosos de psicologia e ciências afins. Espero que este trabalho seja um salutar aliado na valorização desse tipo de pesquisa.