A FALA NOSSA DE CADA DIA

Maria Emília Barcellos da Silva (UFRJ)

 

O saber vocabular de um grupo sociolingüístico e culturalmente definido manifesta-se no léxico da uma língua operada pelos falantes que por ela articulam o seu pensamento, as suas idéias. O conhecimento partilhado que povoa a consciência do falante dá testemunho dos valores, das crenças, dos costumes, dos modismos que viabilizam a convivência dos usuários de tal ou qual elenco vocabular, configurando, assim uma verdadeira janela através da qual o indivíduo divisa e revela o seu em-torno e a forma como recorta o seu universo vivencial. É pela via lexical, ainda, que se expressam as designações que rotulam, não raro de forma surpreendente, as mudanças decretadas pelos caminhos e descaminhos da humanidade, ao mesmo tempo em que se compõe o cenário em que se desenrola tanto a realidade circundante quanto os fatos culturais que teceram a sua história.

A mobilidade lexical, característica das línguas vivas, concorre para que as palavras e as expressões decorrentes dessa movência constante surjam, desapareçam, percam, ganhem ou ampliem significações, de sorte a promoverem o encontro marcado do falante com a realidade mundo biossocial que o acolhe, confirmando a assertiva de que o homem e o mundo se encontram no signo.

As mudanças lingüísticas em diferentes níveis, em especial as concernentes ao léxico, não se configuram como fenômenos causadores de espanto ou de estranheza: elas são, em tudo, análogas às transformações históricas que traçam seus cursos dentro de certa previsibilidade que só surpreenderá ou escandalizará o desconhecedor das artes de conviver - a imutabilidade quer da história, quer da palavra que a expressa, descreve e realiza, esta sim seria um fato a se estranhar.

Antônio Houaiss (1983: 20), aludindo ao incremento vocabular das línguas que servem a comunidades ativas, informou que, sob a égide de Augusto Comte (1798-1857), há pouco mais de 140 anos, portanto, todas as ciências, artes, técnicas e profissões então existentes podiam ser designadas com um elenco de 240 palavras; estudos da UNESCO, em 1963, apontavam que a mesma tarefa só seria levada a efeito com um acervo de 24 mil entre palavras e locuções. E mais: “cerca de 90% dos 400 mil vocábulos das línguas de cultura foram forjados de meados dos século XIX para cá”.

Dar conta desse vigoroso e ágil desenvolvimento cultural tem-se convertido no grande desafio dos dicionaristas e lexicográfos da atualidade, principalmente se se considerar que “a língua não é apenas aquilo que está feito por meio da sua técnica, mas também é aquilo que, mediante essa mesma técnica, se pode fazer; não é só passado e presente, mas possui uma dimensão de futuro” (Coseriu, 1980: 125).

As unidades lexicais instrumentam os atos comunicativos, no tanto em que os interlocutores necessitam se fazer entender mutuamente: para o bom êxito desse propósito, os falantes se lançam ao uso de unidades lexicais para, com elas, enunciarem seus pensamentos por meio de entidades vocabulares, as quais, nem sempre, estiveram ou estão disponíveis para o seu uso, impondo-se, então a urgência de criá-las ou evocá-las no fragor do ato expressivo. É freqüente constatar-se que línguas flexivas, como o português, são pródigas em propiciar ao falante itens não-dicionarizados ainda que plenos de força significativa, como, por ex., o emprego dos adjetivos “investigativo”, “participativo”, “deslocável”, freqüentes nas conversas do dia a dia e na imprensa escrita e falada; essa constatação confirma a convicção de que a existência de um termo é atestada pelo seu uso e aceitação; o dicionário atua em outro nível de legitimação do vocábulo, não raro chegando mais tarde, ou quando o termo já foi homologado pelo uso ou quando não freqüenta os ritos de falar.

Pelo exposto, reitera-se o fato de que o falante, cuja existência é confirmada pela inserção no seu tempo e no seu espaço, amplia consideravelmente o seu inventário vernacular para dar conta do seu em-torno e do seu estar-no-mundo, sob pena de, se assim não fizer, ser exilado dos jogos de convivência que têm, na palavra, o seu penhor e a sua fonte de produção, tornar-se, enfim, um estrangeiro na sua própria pátria.

A ampliação vocabular a que ora se alude cumpre diferentes estratégias de produção: vai desde as criações ex-nihilo (decorrentes de equívocos e falhas de entendimento) até os processos reconhecidos ou como intrínsecos ou como extrínsecos.

Como exemplo das criações derivadas de equívocos ou de falhas de entendimento, citam-se as unidades fraseológicas do tipo "mal e porcamente", “a trancos e barrancos” e “de cabo a rabo”, respectivamente resultantes do entendimento desviante ocasionado por proximidades fonéticas, que alteraram as expressões "mal e parcamente", "a troncos e barrancos” e de “Cabo a Rabat” - esta última, referente aos pontos demarcadores de distâncias, então, consideradas extremas.

Como exemplos de formação intrínsecos, citam-se aquelas palavras ou expressões oriundas do próprio sistema, em especial as obtidas por derivação, por composição e por recursos atinentes à redução, sigla, onomatopéia, duplicação ou reduplicação silábica, recomposição e palavras-valise ou cruzamento vocabulares.

Os exemplos extrínsecos são os importados de outras línguas que se aclimatam total ou parcialmente no sistema importador ou, ainda, pairam, sobre ele, aparentemente imunes aos seus recursos derivacionais ou flexionais, ex.: gol, que ignora a recomendação do “bom falar” de que se evite pluralizar “ol”, mantendo fechada a vogal.

Para dar consistência de prova ao que se diz, exemplificam-se as criações intrínsecas com termos obtidos por (a) derivação: “sacoleiro”, “baixaria”, “desconvocar”, “terceirizar”, “amasso”; (b) composição: “afro-americano”, “chocólatra”, “caça-fantasma”; (c) sigla: UFRJ, UERJ, IPTU; (d) redução: “fono” - por fonoaudiólogo_, “jabá” - por jabaculê, “apê” - por apartamento; “lipo” - por lipoaspiração; (e) reduplicação: “agarra-agarra”, “fuça-fuça”; (f) recomposição: “telecurso”, “lipoescultura”; (g) palavra-valise: “cantriz”, “showmício”.

A condição de importador de tecnologia e de modismos de um povo atua como fator estimulante das criações vocabulares de uma língua receptora de designações exógenas, verdadeiros rótulos dos itens estrangeiros a consumir. Aqui, o exemplo mais do que esperado pertence ao universo da eletrônica, especialmente o da informática, em que os termos de origem inglesa incorporaram-se total ou parcialmente na fala brasileira, não raro plenamente adaptados aos jogos gramaticais do português, como se vê em “escanear”. Faz-se oportuno resgatar a origem latina do vocábulo "deletar" > deletare, que, reconhecidamente, foi vitalizado pela Informática, mas estava potencializado na língua.

No entanto nem só com formas inéditas se estrutura o elenco neológico de uma língua. Em certas situações, confere-se uma acepção nova a uma palavra já conhecida, a qual, mediante processos de metaforização e de metonimização, tem o seu campo significativo ampliado de sorte a ser empregada, com produtividade, em outros contextos situacionais. A gíria, pródiga nesse fazer, dá corpo a expressões renovadas, como acontece com “abobrinha” (por bobagem, algo sem nexo); “animal”(para excelente, exímio, craque); “arrastão” (para ataque rápido praticado, em geral, com propósito de assalto); “arrebentar” (para sair-se bem, obter sucesso); “barraco”(por confusão, quiproquó); “mala”(por pessoa incômoda, desagradável). Bem recentemente, o elenco gírico mais uma vez foi balançado por termos que estão na boca de todos: "preparada" não mais significa "a pessoa que se aprimorou em conhecimentos", mas sim a partner potencial de uma empreitada legal, cuja ilegalidade é flagrante.

Algumas vezes novas acepções suplantam significações originais, como aconteceu com “dissabor” (que já significou “falta de sabor” e agora é “desgosto”, “contrariedade”); “biruta” (cujo significado primeiro é “aparelho para indicar a direção dos ventos” e agora significa “pessoa doida, louca ou pouco comedida”).

Há também as ampliações semânticas das palavras e de expressões, processo bastante freqüente e resultante da criatividade e observação arguta dos usuários, com a finalidade de satisfazer as novas demandas comunicativas, tipo “legal”, “é isso aí!”, “já era”, “fim da picada”.

O processo de conversão - a derivação imprópria da gramática tradicional - também é usado para dar voz à capacidade significativa da unidade léxica. O primeiro elemento de um sintagma composto por “substantivo + adjetivo” pode ser eclipsado, creditando ao adjetivo do grupo o valor substantival da forma em causa: exemplo disso encontra-se em “ginástica aeróbica” que pode ser simplesmente designada por “aeróbica”, “hidrocor” por “caneta hidrocor”, “celular” por “telefone celular”; no entanto esse mecanismo não funciona em 100% dos casos, havendo termos que a ele resistem, como se comprova com “ginástica olímpica” e “ginástica rítmica”, em que o esquema apontado não se reproduz.

São menos freqüentes os casos de conversão de verbo conjugado empregado como se adjetivo fosse, tal como se vê em "cor de burro quando foge" e o verde-rosa-cheguei da Estação Primeira de Mangueira”; também são pouco encontradiços os afixos tratados como formas livres, não raro vistos como abreviações do tipo “micro” por “microcomputador” (no caso de “micro” já se registra o uso do derivado “micreiro”, a comprovar o status nocional a ele conferido); outro caso de afixo que foi guindado à forma livre é o da expressão “cheque-pré” por “cheque pré-datado”, “pós” por “pós-graduação”.

Ocorrem também numerais atuando com força adjetival, como se constata no indiscutível elogio “Você é dez!”, “Casal vinte” (esta forma empregada quando ambos os elementos do par portam as mesmas de excelência).

A imprensa e a literatura são os maiores agentes da divulgação de neologismos: um termo novo pode mover, comover, remover, demover uma opinião, antes do mais sensível à ironia e ao estranhamento que dela advêm. Com uma palavra inesperada, inusitada, pode-se vencer o desgaste natural dos ditos, proporcionando que se comuniquem idéias antigas renovadas pela maneira de se expor o enunciado, de que é exemplo a inovação do verso de Vandré “quem sabe faz a hora” por “quem sabe faz na hora”, o que reconhecidamente empobrece o teor e a amplitude significativa da elaboração artística, mas dá conta da necessidade pontual e urgente pretendida por quem reformulou a elocução.

Impõe-se distinguir a criação do homem comum da do literato: a primeira visa à comunicação imediata, reajustando o código para maior interação falante-ouvinte; já a criação poética orienta-se, não pelo imediatismo do entendimento desejável, mas pela busca da estética não-utilitarista. No dizer do homem comum, a inovação carece de ser referendada pelo grupo de usuários; na do poeta, aceita, ou não, pelo grupo, a inovação cumpre o seu papel estruturador de um universo em criação.

Guilbert (1975:40-43) classificou os dois gêneros de neologismos aludidos - o do homem comum e o do poeta - respectivamente como denominativo e estilístico: o denominativo surge da necessidade de nomeação de uma nova experiência, e o estilístico, ainda que fugaz, deriva de imposições comunicativas inusitadas.

O certo é que, como os indivíduos a que servem de instrumento expressivo, só os idiomas mortos se petrificam, não se transformam, não se colorem de novos matizes.

A mudança é inerente a todas as línguas vivas e, no caso, de países importadores de tecnologia, como é o caso do Brasil, é inevitável que o vocabulário científico e tecnológico e mesmo o corriqueiro, de cada dia, sejam implementados por palavras oriundas das nações donde as novidades emigraram. Como magistralmente ensinou Celso Cunha (1981: 31-32)

o problema do empréstimo lingüístico não se resolve com atitudes reacionárias, com barreiras ou cordões de isolamento à entrada de palavras ou experiências de outros idiomas. Resolve-se com o dinamismo cultural, com o gênio inventivo do povo. Povo que não forja cultura dispensa-se de criar palavras com energia irradiadora e tem de conformar-se, queiram ou não queiram os seus gramáticos, à condição de mero usuário de criações alheias.

Segundo Deroy (1956:67), todos os componentes do léxico são passíveis de serem emprestados, embora a facilidade com que esse assenhoramento se processa não seja distribuído por igual.

Das classe nocionais, são os substantivos que mais facilmente são “emprestados”, posto que carregam consigo a denominação nativa do objeto importado que designam.

Os adjetivos já não apresentam a mesma autonomia: a sua assimilação exige uma introjeção mais aprofundada do recorte significativo que portam. Ultimamente, vários adjetivos têm transitado na Língua Portuguesa, alguns tendo vindo para ficar, como é o caso de clean, cult, diet, nonstop, sexy; a essas expressões somam-se as de mesmo valor adjetival, como fulltime e siglas como VIP, que passam a atuar qualificando indivíduos, compartimentos, situações. Ainda com o foco voltado para os adjetivos, há que se considerar o emprego das preposições inglesas in e out e a francesa avec que, em português, podem significar, cada uma a seu modo, “moderno”/ “positivo”, “antiquado”/ “ultrapassado” e “acompanhado”.

Entretanto esse movimento de incorporação das preposições inglesas “in”e “out” como adjetivo em português não se repetiu com “by”, que passou a integrar o rol das preposições em português, como se vê em “agendas by Cantão” “móveis by Celina”; ocorrência como essas revela a profunda influência, em especial, do modelo inglês nos setores lexicais, mesmo nos elencos mais fechados do idioma.

Ainda com vista à influência inglesa no português brasileiro, cabe refletir sobre o pronome pessoal neutro “it”, incorporado ao português com peso substantival, significando “encanto pessoal”, “magnetismo”, “charme” (este último termo de filiação francesa). Outra incorporação interessante a registrar é a decorrente da forma verbal “must”, significando “algo novo” e “make-up”, hoje recobrindo o aclimatadíssimo galicismo “maquillage”, de há muito incorporado como “maquiagem”.

Muitos são os exemplos a compor o mosaico lexical de uma língua transplantada falada por um povo importador de técnicas, soluções e idéias: parafraseando o Poeta maior, pode-se dizer que “mais diria se não fora para tanto exemplo tão pouco tempo”.

Do que aqui se expôs, por fim, depreende-se que o destino dos idiomas e os papéis que a eles estão reservados no mundo moderno, relacionam-se diretamente à riqueza dos indivíduos que os falam e os praticam. E o Brasil, país que amalgama etnias e resulta da miscigenação de tão diferentes povos, sincrético por história e natureza, nunca teve dificuldade em acolher o que lhe chegasse por desejo ou imposição - e nesse rol estão pessoas, mercadorias, técnicas, pensamentos, palavras e obras.

A verdade é que a legitimação do que se diz ou do que se deve dizer depende fundamente da chancela da comunidade, do povo - povo que constrói nações, fortalece impérios, escreve e reescreve a sua história, vitaliza idiomas: povo que, por direito, justiça e fato, é o único, legítimo e verdadeiro “dono da língua”.

 

BIBLIOGRAFIA

COSERIU, E. Lições de Lingüística Geral. Trad. BECHARA, E. Rio de Janeiro : Ao Livro Técnico, 1980.

CUNHA, C. Política e cultura do idioma. In: Língua, na/cão e alienação. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1981.

DEROY, L. L'emprunt linguistique. Paris : Les Belles Lettres, 1956.

GUILBERT, L. La créativité lexicale. Paris : Larrouse Université, 1975.

HOUAISS, A. A crise da nossa língua de cultura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.