ACERCA DA DINAMICIDADE LEXICAL
E DO DINAMISMO CULTURAL
Vito Cesar de Oliveira Manzolillo (UFRJ/CiFEFiL)
O léxico de todas as línguas vivas é essencialmente móvel: palavras surgem e palavras desaparecem, perdem significações antigas e adquirem novas. Filha do homem, a palavra reflete-lhe o destino: como ele, nasce, vive, transforma-se, adoece, morre e, até, ressuscita.
(Pereira, 1932:188)
O Léxico se expande, se altera e, às vezes, se contrai. As mudanças sociais e culturais acarretam alterações nos usos vocabulares: daí resulta que unidades ou setores completos do Léxico podem ser marginalizados, entrar em desuso e vir a desaparecer. Inversamente, porém, podem ser ressuscitados termos que voltam à circulação, geralmente com novas conotações. Enfim, novos vocábulos, ou novas significações de vocábulos já existentes, surgem para enriquecer o Léxico.
(Biderman, 1978:139)
Nos dias que correm, trabalhos concernentes ao léxico indubitavelmente constituem vastos campos de pesquisa à disposição dos estudiosos.
O termo, assim como a maioria das unidades lexicais de cunho científico, provém do grego, mais especificamente da forma lexikón e designa o conjunto - teoricamente infinito - de vocábulos de um idioma, constituindo
um vasto universo de limites imprecisos e indefinidos [que] abrange todo o universo conceptual dessa língua. Qualquer sistema léxico é a somatória de toda a experiência acumulada de uma sociedade e do acervo da sua cultura através das idades - Biderman (1978:139).
Características indiscutíveis dos tempos atuais, a constante ebulição nas ciências e nas técnicas - com o aparecimento de novos produtos e objetos e o aperfeiçoamento dos já existentes - e a variada gama de modificações nos costumes e nos relacionamentos refletem-se diretamente nos léxicos das línguas modernas, consoante assinala Houaiss (1983:20):
(...) em tempo de Augusto Comte (1798-1857), faz mais ou menos 130 anos, era possível designar todas as ciências, artes, técnicas e profissões com 240 palavras, repito, 240 palavras; em 1963, um grupo de estudos da UNESCO, lembrando Comte, advertia que já então, isto é, em 1963 eram insuficientes 24 mil palavras e locuções para designarem o estado da - não direi divisão do trabalho físico e mental - o estado da pulverização do trabalho, com as terminologias conexas. Não sem razão, aliás, cerca de 90% para mais dos 400 mil vocábulos das línguas de cultura modernas foram forjados do século XIX, precisemos, de meados do século XIX para cá.
A situação anteriormente descrita nada tem de estranho, pois transformar-se perpétua e continuamente é o destino inexorável de todo idioma ao longo de sua existência, muito embora, por vezes, seja forte a impressão de que as línguas são estáticas e não se modificam. Com certeza, todos os setores de uma língua encontram-se sujeitos a mudanças: a fonologia (características e condições de uso dos fonemas), a morfologia (a forma e o valor dos morfemas), a sintaxe (novas possibilidades combinatórias de palavras, além de diferentes ordens para os vocábulos nos enunciados) e o léxico, estrutura constituída de um número flutuante de elementos, na qual a mudança pode ser observada com mais facilidade (novos significados para palavras já existentes, surgimento de novas unidades lexicais e sua contraparte, abandono de significados e de unidades lexicais). Além disso, esclarece Barbosa (1998:33), “a mutabilidade lingüística, ao nível do léxico, verificável à medida que signos são criados ou sofrem modificações em seus significados, é um processo inerente à língua e não uma ameaça à sua continuidade”. Representa o meio através do qual novas necessidades lingüístico-expressivas dos falantes são atendidas. E elas são muitas porque, como todos sabem, o homem é, por natureza, um ser insatisfeito e incompleto, cujo existir está grandemente norteado pela busca de progresso e de aprimoramento pessoal e coletivo.
Em resposta a essas inquietações tipicamente humanas, o desenvolvimento da tecnologia, da ciência e das artes, alterações nos costumes e nos relacionamentos, o que, em termos práticos, traduz-se em novos artefatos, produtos, processos, instituições, conceitos, saberes e técnicas que precisam ser nomeados. A esse respeito, observe-se o que diz Houaiss (1990:20):
(...) um dos traços fundamentais do progresso humano é a multiplicação de palavras (...). Ao dominar a natureza, ao dominar as técnicas, ao dominar os conhecimentos, só se pode fazê-lo e transmiti-lo dando nome às coisas, dando nome às idéias, criando conceitos. Então, um dos traços fundamentais disso é que a memória do homem tem que ser amparada pela criação vocabular contínua.
Em suma,
o que um indivíduo vê, pressente, imagina, descobre ou inventa pode ser nomeado pela palavra. Uma vez nomeado, o conhecimento pode ser socializado e integrar-se na cultura coletiva. A língua cumpre essa tarefa graças, especialmente, ao seu léxico, que, no dizer de Edward Sapir, reflete com maior nitidez o ambiente físico e social dos falantes - Azeredo (2000:72).
Propriedade intrínseca do léxico, já foi possível perceber, é sua mobilidade, isto é, sua capacidade de transformação ao longo do tempo, característica comum dos fenômenos antropológicos e sociais de maneira geral. Por dizer respeito basicamente à realidade extralingüística, o vocabulário, definido por Vilela (1979:55) como “o último nível lingüístico antes da passagem à realidade não lingüística”, encontra-se sujeito a todo tipo de variação apresentada pelo mundo biossocial, deixando transparecer a visão de mundo - também ela mutante - da comunidade que o partilha. Alves (1990:89), ao caracterizá-lo como “conjunto estruturado de todas as unidades léxicas de uma língua que são utilizadas numa mesma sincronia”, deixa implícita a idéia de que, com o passar do tempo - com a mudança de sincronia -, o léxico também se modifica.
Na verdade, o vocabulário, mais do que uma reunião de elementos reais, efetivos, constitui um conjunto de virtualidades e de possibilidades, ou seja, sua capacidade de ampliação constante já se encontra prevista em sua própria estrutura interna.
Complementando o raciocínio, recorre-se mais uma vez a Houaiss (1990:19). São suas estas palavras:
O número de vocábulos ou palavras nunca foi um número preestabelecido, nem nunca o será. Ele é função, necessariamente, do meio em que se insere a coletividade falante. Na medida em que o universo físico e as relações sociais se complexificam (ou se simplificam), o número de vocábulos aumenta (ou diminui).
Devido a essas características, conclui-se com Vendryes (1943:256) que, muito mais do que a gramática, “o vocabulário jamais está pronto, porque depende das circunstâncias” , obrigando os falantes a “aprendê-lo” até o final de suas vidas.
Conforme se viu em linhas precedentes, mobilidade lexical quer dizer tanto surgimento quanto desaparecimento de itens, exatamente como sucede na realidade. É o que explicita Preti (1998:119):
O léxico [em comparação com a sintaxe] melhor se presta a mostrar as transformações sociais de uma comunidade e se constitui na parte menos conservadora de uma língua. Vocábulos que surgem e desaparecem, num processo contínuo e natural de neologia e obsolescência, são o reflexo mais perfeito das mudanças sociais.
Mudança e progresso apresentam dois lados contraditórios: ao trazerem novidades, muitas vezes, sepultam o já estabelecido, que perde espaço diante da inovação, quer seja ela um objeto, artefato ou produto, quer seja ela um hábito, costume ou fenômeno cultural. Convém notar ainda que, nem sempre, a unidade léxica nova aparece para nomear um referente inédito. Um sinônimo pode ser acolhido simplesmente para que se possam vencer os desgastes naturais das palavras, comunicando velhas coisas de novas maneiras, pois, na verdade,
as palavras freqüentemente empregadas perdem seu efeito (...); se o único ofício da linguagem fosse de falar à inteligência, as palavras mais comuns seriam as melhores: a nomenclatura da álgebra não muda. Mas a linguagem não se dirige somente à razão: ela quer comover, ela quer persuadir, ela quer agradar - Bréal (1992:185).
Centrando agora o foco de atenção nas possibilidades de expansão lexical à disposição dos falantes, percebe-se que variadas são as maneiras pelas quais os neologismos podem surgir numa língua. Deixando de lado as raríssimas criações ex-nihilo (a partir do nada) e aquelas “fruto de errôneos ou falhos verbetes de dicionários (...) ou de equívoca segmentação do discurso” - cf. Assumpção Jr. (1986:26, nota 32) -, em linhas gerais, isso se dá pela criação de formas inéditas a partir de palavras da própria língua, mormente através de processos como derivação e composição, mas igualmente por meio de recursos como uso de siglas ou de acrônimos, onomatopéia, redução, reduplicação (ou duplicação silábica), recomposição e palavra-valise (ou cruzamento vocabular). São os neologismos ditos intrínsecos. Outra alternativa são os chamados neologismos semânticos, de sentido ou conceptuais, ou seja, o alargamento de significado de forma já conhecida, mediante aplicação de artifícios como a metáfora, a metonímia e a conversão, por exemplo. Além dessas opções, devem ser mencionados ainda os empréstimos lingüísticos (neologismos extrínsecos), adoção de forma - eventualmente apenas de significado - proveniente de outro sistema, situação na qual a capacidade criadora dos usuários é posta de lado, uma vez que o elemento novo já vem pronto. Não obstante suas diferenças estruturais, a capacidade de documentar uma nova realidade sociocultural é a característica comum de todas essas possibilidades neológicas.
Rumo à conclusão, lembre-se o fato de que uma inovação lexical de qualquer natureza é, em geral, uma ação individual e anônima, sendo o seu responsável, bem como o instante de seu surgimento, passíveis de identificação apenas em situações especiais. Por outro lado, nem todas as inovações propostas serão acolhidas pelo sistema. Somente aquelas aceitas pela coletividade terão garantida sua incorporação à língua.
Acrescente-se ainda que, com respeito aos sistemas lingüísticos, as formas mais corriqueiras de mutação interna são justamente as devidas a aquisições e a perdas lexicais. O estudo dessas mudanças, além do interesse estritamente lingüístico, desperta igualmente o sociológico, uma vez que permite analisar as transformações histórico-sociais por que passam os grupos humanos e também as influências culturais por eles sofridas ao longo do tempo.
Bibliografia
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