LENDO UM CADERNO DE MARCEL PROUST
Guilherme Ignácio da Silva (USP)
Há pouco mais de três anos, comecei a tentar transcrever um cahier de Proust, o Cahier 28 (1910-1911), caderno escolar em formato grande com mais de cento e cinqüenta fólios repletos de textos escritos à mão por ele. Já de início percebi que, além de ter de decifrar a caligrafia bastante difícil de Proust, teria de lidar com um processo de criação artística cuja característica principal parecia ser a absoluta desordem e falta de conexão entre temas que, muitas vezes, estavam um ao lado do outro, tudo num mesmo fólio.
Sem sombra de dúvida, o que mais surpreende (e amedronta...) nesse cahier é sua extraordinária riqueza temática - às vezes, numa seqüência de dois ou três fólios, saltamos do viria a ser segundo volume da obra, À l’Ombre des Jeunes Filles en Fleurs para o primeiro, Du Côté de chez Swann, depois entramos pelo Côté de Guermantes e terminamos o passeio lendo trechos com reflexões estéticas numa antecipação do que viria a ser, mais tarde, o último volume, Le Temps Retrouvé: mesmo com a grande maioria dos fólios tratando da visita que o herói faz ao ateliê do pintor Elstir (com páginas inteiras repletas de impressões e interpretações de seus quadros), percorrendo o cahier, o leitor terá oportunidade de ler os rascunhos que tratam da famosa cena da preparação do chá de tília junto à tia Léonie, ou os que tratam da paixão arrebatadora do herói, ainda muito jovem, pelas estrelas do teatro; da importância da petite phrase no contexto do amor desesperado de Swann por Odette; das lembranças e desejos que despertam no herói os nomes de famílias nobres; das reações da avó à amizade com Saint-Loup (ainda chamado de Montargis no cahier); da visita ao salão do duque de Marengo, um representante da nobreza-império; da natureza da leitura; da primeira fase da amizade com Bloch; da descrição da arrière cuisine, lugar tão marcante para a sensibilidade da criança, no fundo da casa da tia, em Combray; da idéia bastante equivocada que Saint-Loup faz de seu tio, o barão de Charlus (ainda chamado “marquis de Guercy”), etc. - o leitor vai saborear, deste modo, toda a riqueza dos detalhes que compõem a cena do chá; vai experimentar a força da ironia de Proust introduzindo estrategicamente Mme de Villeparisis, uma Guermantes, nesse salão em que reina evidente decadência social, no salão do duque de Marengo; vai acompanhar o herói em visita ao ateliê de Elstir e, como conclusão bastante amarga e ao mesmo tempo instrutiva do narrador, ele vai ler que, da visita, só valeu a pena o contato com os quadros de Elstir, que toda a euforia com a recepção atenciosa do pintor não tem nenhum valor se comparada ao que seus quadros podem revelar...
Os leitores dos manuscritos de Proust sabem como estes, bem diferentes dos dossiês de Flaubert, dão a impressão de pura desordem, no sentido em que os textos surgem no verso ou mesmo na mesma página sem qualquer ligação evidente com o que está em face ou com o que o precede. (WILLEMART, p. 14)
Uma carta de 1908, ou seja, do momento em que começava a se delinear o que viria a ser a Recherche, nos sugere, de alguma forma, a natureza desse processo criativo que já estará em pleno funcionamento nos fólios do Cahier 28, dois anos depois:
Car j’ai en train :
une étude sur la noblesse
un roman parisien
un essai sur Ste Beuve et Flaubert
un essai sur les Femmes
un essai sur la Pédérastie (pas facile à publier)
une étude sur les vitraux
une étude sur le roman.”
Toda essa diversidade já diz muito da essência da criação artística proustiana, em que “cada rascunho é um microcosmo da própria obra, tanto no plano da escritura, quanto da narrativa, mas, sobretudo, no plano dos motivos que se esboçam, dos temas que se respondem e que vão encontrar seu eco, posteriormente, em outros contextos em que se disseminarão.”
O que vai, então, passar a decidir os caminhos de análise será sobretudo o tipo de recorte que o crítico fará deste corpus - se ele vai escolher, por exemplo, em meio a tanta diversidade temática, só um tema e procurar as suas ressonâncias em outros cahiers e no texto publicado, ou se ele vai evitar a análise temático-diacrônica e vai tentar encontrar uma possível lógica de articulação subjacente aos fólios sucessivos desse cahier. É por esse último procedimento que optei. Ele, além ter se adequado à própria limitação do corpus, me foi sugerido pelo texto de Philippe Willemart que acabo de citar, cuja idéia chave é a seguinte :Proust não escrevia de qualquer jeito, ou melhor, o scriptor proustiano deitava as palavras no papel com um desígnio preciso, embora com freqüência não sabido, mas não ao acaso, como uma primeira leitura poderia fazer pensar. (WILLEMART, Op. cit.)
Conforme acabo de mencionar, o que caracteriza os textos manuscritos do Cahier 28 (1909-1911) de Proust é a impressionante pluralidade de temas. Encontramos em seus fólios passagens do que será “Combray”, outras de “Un Amour de Swann”, numerosas descrições de pinturas, presentes depois em À l’Ombre des Jeunes Filles en Fleurs, esboços de diálogos com os Guermantes, publicados em Le Côté de Guermantes e reflexões estéticas remetendo a Le Temps Retrouvé.
Não há, entretanto, nenhuma menção, em todo o cahier, à figura de Albertine, personagem que, ao que parece, nasceu por volta de 1912 ou 1913. O cahier devia fazer parte do projeto de publicação em três volumes da obra, com um só volume reunindo a estadia no mar e a entrada no meio Guermantes, sem o volume sobre Sodoma e Gomorra, nem os dois volumes ligados a Albertine.
Grande parte dos fólios está preenchida pela visita ao ateliê do pintor Elstir, compreendendo a aproximação e abordagem no restaurante de Rivebelle, o convite à visita, a visita propriamente dita e a volta a Querqueville (Balbec), onde o herói comenta com Montargis (Saint-Loup) o que se passou.
Metade do caderno foi escrita com ele virado ao contrário. Para poder lê-lo, a gente chega ao fólio 47 v.º, vira o caderno, abre no último fólio, 94 r.º, e vem avançando até o meio.
Proust, geralmente, escreve um texto corrido num determinado fólio e utiliza o fólio ao lado para fazer acréscimos ou colocar advertências. Vários fólios contêm também acréscimos na margem esquerda.
Não são campanhas de redação exaustiva, que começariam com determinado tema e iriam com ele até o final de suas possibilidades, colocar-se-ia um ponto e se passaria a outro tema. Pela própria natureza da escrita de Proust, tessitura infindável de novas relações, o texto está sempre em aberto, dando até certa impressão caótica, a tal ponto os temas vão se sucedendo velozmente uns aos outros.
As inúmeras passagens interrompidas, na maioria das vezes, são como uma tomada de fôlego, uma pausa na redação, casos de um comportamento meio obsessivo que, após a parada, retoma incansavelmente o que já tinha sido desenvolvido.
Aliás, quanto a essas retomadas, fica sempre a impressão confusa de não se saber ao certo sua razão de ser, já que retomada, para Proust, não significa volta ao que foi escrito para empreender novos desenvolvimentos, não. Ele retoma um tema e a escrita se contorce em torno dele e o que parece lhe interessar não é o aprofundamento temático, mas sim a criação de uma sonoridade no jogo com as palavras.
Um ensaio de análise já foi escrito sobre esse caderno de Proust : “Da Forma aos Processos de Criação”, de Philippe Willemart.
Atitude não muito comum nos estudos de crítica genética, Philippe não se propôs à análise comparativa de temas ao longo de vários cadernos, optando por uma leitura imanente de um só caderno.
O principal desafio que ele se propunha era o de compreender a sucessão vertiginosa de temas ao longo dos fólios. Ele busca, então, “uma lógica subjacente à escritura que explique as relações implícitas entre fólios que estão um de frente para o outro e que, à primeira vista, não têm relação nenhuma entre si.” (WILLEMART, p. 15)
Um dos exemplos que ele analisa é o do fólio 20 r.º, em que convivem a descrição das características dos quadros do pintor Elstir, uma advertência (“Não se esquecer de Brummel en Caen”) e a descrição dos raminhos que o herói despejava dentro de uma xícara com água quente, no momento que sua tia mandava preparar seu chá.
Assim conclui Philippe: “As três partes do fólio 20 aludem ao mesmo assunto sob aparências bem diversas. A primeira parte evoca a vida misteriosa da natureza; a segunda, a ignorância dos habitantes de Caen quanto ao passado do dândi, assim como a própria família do herói quanto às relações nobres de Swann; e a terceira, enfim , as folhas secas do chá que se assemelham a um quadro de um mestre.” (WILLEMART, p. 17)
Em paralelo a esse fólio, Philippe analisa a visita de Marcel à igreja de Carquethuit, no fólio 19 v.º, que fica de frente para o 20 r.º.
Após extensa coleta de referências subjacentes entre os dois fólios e a visualização dos reflexos futuros em passagens muito distantes uma das outras no texto publicado da Recherche, o crítico constata: “os dois fólios estudados não somente se olham, mas também trocam informações que acompanham, subrepticiamente, um e outro texto e que o scriptor, sabendo ou não disso, acaba transcrevendo no texto publicado. (...) Os dois fólios constituem, conseqüentemente, um conjunto; não estão um ao lado do outro por acaso e não devem ser estudados separadamente. Eles devem ser tomados, como todos os outros textos que se seguem a eles, como indicações metonímicas do conjunto” ((WILLEMART, p. 27-28)
Uma das conclusões gerais do ensaio é a seguinte :
Sustento, então, que todos os cahiers, ou pelo menos esse cahier que eu conheço melhor, tem uma coerência, retomando a expressão de Proust, “une alliance de mots”, que vai muito além da razão cartesiana ou da inteligência e situa-se em outro nível. (WILLEMART, p. 31)
Gostaria de retomar esse procedimento de análise imanente do cahier, levando em conta também a percepção muito justa da existência de uma lógica especial que rege as aproximações entre seus fólios.
Meus instrumentos de análise devem, todavia, diferir um pouco dos utilizados por Philippe Willemart: farei uso novamente da percepção de uma certa dinâmica do olhar do narrador no texto da Recherche, conjugada à situação do herói, Marcel, nas cenas compostas por Proust.
Verei, então, como essas questões essenciais (olhar do narrador/situação do herói) se presentificam nos textos manuscritos do Cahier 28 e discutirei suas virtuais implicações em processos de criação do texto de À la Recherche du Temps Perdu.
Enquanto realizava o trabalho de revisão da transcrição que havia realizado desses textos, comecei a escutar uma sonoridade insinuante à qual não conseguia, entretanto, atribuir nenhum sentido. Estava certo, porém, de que essa sonoridade brotava do texto, de regiões específicas do texto que a modulavam.
Estava lendo, certa vez, trechos que tratavam da primeira carta que o herói trocou com seu novo e maior amigo, Montargis, e tive quase certeza de que a sonoridade era resultado da ironia. E que a ironia era a maneira de enxergar a questão da amizade. A sonoridade remeteria, então, à criação de uma distância crítica entre narrador e herói, um esperando aflito as cartas do amigo, o outro olhando de cima e nos mostrando o quão pouco devemos esperar da amizade. Passei a pensar que a criação dessa dinâmica era o que havia de mais essencial nos processos de criação no cahier. Uma frase meio desajeitada brottou em minha mente:
“Proust requer um trabalho textual com níveis de sensibilidade que se insinuam na forma”
Passava a notar que o que teria que descrever eram as camadas de significação que iam se construindo. Em todas as cenas havia um sentimento latente, que não era dito, mas que a sustentava, dava um “tom” a ela, atingindo nossa sensibilidade. Para delinear melhor o que vinha percebendo, devia conjugar minha frase a exercícios de análise desses textos.
Tomemos algumas passagens sobre a carta que o personagem Montargis envia a Marcel para breve comentário.
Ao fim de um mês em Querqueville, Montargis tem de deixar o hotel e retomar suas funções numa cidade de guarnição. O herói aguarda impaciente uma carta do amigo. A avó chega a consolá-lo: “a vida é assim, uma amizade não dura para sempre.” A carta chega enfim. Marcel sobe correndo para o quarto a fim de lê-la.
61 r.º
Je viens d’arriver dans un lieu dont je vous ai parlé et que vous ne/connaissez pas m’écrivait-il mais qui lui vous connaît déjà bien si les/choses ont connaissance de nos pensées. Du reste votre photographie est
la/premièrele seul objet de toute nécessité que j’avais emporté sur moi/en voyage et je l’ai installé sur la cheminée de ma chambre militaire/en arrivant. Tout l’après-midi j’ai dû me livrer aux divers exercises/de cette vie que vous devez mépriser et qui pourtant a un charme que vous/senteriez je crois. J’ai [rêvé] là au milieu d’autres grossiers qui sont/de bons garçons à qui je me garderai de parler de notre amitié car/ils n’en sont pas dignes. Une fois rentré dans ma chambre j’avais bien/voulu rester un peu tranquille pour revoir enfincetce mois de/Querqueville qui restera un de plus importans de ma vie puisque c’est
60 r.º
+ à propos de son
commencement j’ai sorti de mon portefeuille le seul petit mot que j’aie de
vous celui que vous m’avez écrit le jou pour me remercier
(voir à la page suivante) c’est de
là que date notre amitié. C’est là qu’elle a/commencé. J’espère qu’on
ne pourra jamais dire l’endroit où/elle a fini + : j’aurais voulu
rester à me remémorer tout le/cher secret d’une amitié qui serait
peu comprise ici./Mais j’ai pensé que pendant ce temps-là peut’être
vous, esprit subtil,/vous auriez pourtant abaissé un moment vos pensées vers
le pauvre/maréchal des li cavalier que vous voulez appeler
votre ami.’’
A carta está escrita no jargão da simpatia incontrolável. Em toda linha há alguma coisa assinalando o enorme apreço que Montargis afirma ter pelo herói. Sabe-se a satisfação que ela e as que se seguirão vão causar em Marcel.
57 r.º
Cesette lettres et toutes
celles qui suivent assez fréquemment me remplissent d’/enthousiasme pour
mon ami. Je montais dans ma
chambre pour les lire et
A sonoridade muito particular do trecho começa a ser sentida quando nos colocamos na perspectiva do narrador. Passamos a perceber a ironia corroendo toda a concepção da carta.
Montargis diz ter chegado a um local desconhecido do herói. Mas que o conhece bem. Primeiro grau da ironia: Montargis atribui capacidades humanas (de conhecimento) ao lugar em que vive. O segundo grau da ironia vem logo a seguir com uma frase introduzindo uma condição a esse conhecimento: o lugar conhece bem o herói, se é verdade que as coisas que nos rodeiam conhecem nossos pensamentos. Se for verdade, tudo o que rodeia Montargis conhece bem o herói. Pois Montargis deve estar pensando dia e noite, sem parar, no amigo tão especial que deixou em Balbec. A fotografia do herói é o único objeto necessário que Montargis levara consigo na viagem. Ao chegar na cidade de guarnição, a foto ganhou lugar de destaque, em cima da chaminé, para ser constantemente observada.
Todas as linhas da carta soam falsas, não têm sustentação comprobatória. Qual a necessidade dessa foto para Montargis, de forma que, dentre as outras coisas que poderia precisar em viagem, ela é a única que levara consigo? Como falar da humanidade perceptiva das coisas a não ser que se descarte a impossibilidade em favor do sentimento de carinho que se quer exprimir?
Para o narrador, essas frases esboçam os limites incontornáveis da amizade, as ilusões em meio às quais se propõe viver aquele que depende da amizade.
O exemplo da carta nos dá mostras suficientes dos limites intelectuais do amigo e remetem, ao mesmo tempo, ao descompasso entre a amizade e o aprofundamento das questões artísticas e intelectuais.
Fólios atrás ficamos sabendo que a avó prezava Montargis por sua elegância cheia de simplicidade, por sua simpatia bem-educada que ele tem por Marcel e pela boa influência que ele terá na carreira literária deste. Ela rejeita um tipo como Bloch.
91 v.º
En me dis quand j’étais triste de la quitter pour partir dî
ner aux environs avec Bloch
Montargis elle me disait
et en m’embrassant
mepoussant “Mais non au contraire je suis enchantée cela te distraira, mais
dehors
pas de Bloch, tâche donc qu’il ne le suit plus” “Tu lui
ironiquement de la seule +
diras que je desapprouve disait-elle avec un tendre sourire qui
la
en étendant son affection de
moi à Montargis {<>} raillait
elle-même voulant dire “je sais bien que mon approbation
est la dernière chose dont il se soucierait”.
O narrador nos explica, então porque Montargis conquistara sua avó.
93 v.º
‘Montargis qui
avait conquis ma grand-mère sans doute/parce qu’il m’av
elle sentait qu’il m’aimait plus que mes/autres amis, qu’un mot plein de
coeur dit sur moi lui prouvait/plus de franchise et de sensibilité que
beaucoup de savoir ou de/prétention, aussi parce qu’il avait un charme et
un naturel/qui plaisaient à tout le monde, et aussi parce qu’elle
sentait/en lui un ami gai, un ami énergique, un ami - quoi qu’/il
y prétendait - sans aucune complication intellectuelle et/esthétique, en un
mot quel de ces êtres qu’elle pensait dans/la vie devoir
être aussi utiles, aussi salutaires pour moi /qu’elle jugeait néfastes,
malsains ceux qui pouvaient/cultiver et accroître mes dispositions nerveuses.
Enfin sans/aller jusqu’à dire que ma grand’mère si détachée
pour/elle-même de ce qu’on a appelé depuis snobisme mondain/poussât l’abnégation
jusqu’à être snob pour moi, le/côté “belle relation” qu’était
Montargis, la pensée qu’il/pouvait me donner un peu le goût du monde, des
plaisirs/calmes qui seraient pour moi une distraction au travail,/un remède
contre la nervosité et la mélancolie de l’/isolement ne lui étaient pas
indifférents non plus.’’
Ora, o narrador está trabalhando em profundidade sua distância com relação ao herói. Como em vários episódios da Recherche, há um dado inicial de base: Marcel tem um novo amigo, Montargis, garoto bem-nascido e muito educado que ele encontrou na praia de Querqueville. A partir daí, vemos o narrador trabalhando na problematização desse dado.
A sonoridade irônica que nos atinge reclama análise para as cenas. O que é descrito, pela maneira que é descrito, deixa de ser fato e passa a ser problema. A própria distância entre narrador e herói que vai se criando impede qualquer leitura que não seja a que se proponha a lidar com problemas. Não há identificação com os personagens.
A avó, por sua vez, enxerga a amizade com Montargis como um fato: Montargis é a companhia mais adequada para Marcel no momento, ele não é um Bloch qualquer. Mas para nós, que estamos olhando as coisas junto com o narrador, a imagem da avó tomando a amizade como um fato é mais um ítem de uma situação problemática, não mais um fato. Sabemos o quanto as qualidades de Montargis são parciais, o quanto sua simplicidade esconde de um orgulho enraizado de suas origens aristocráticas. E os resultados nulos que essa amizade teria para o aprimoramento das disposições literárias do herói.
Em última análise, o que ligaria os mais diversos fólios do caderno entre si seria a criação dessas situações problemáticas.
Essa hipótese parecia se ver confirmada nos inúmeros fólios em que o assunto era a visita ao ateliê do pintor Elstir. Ali a sonoridade ligada à ironia tinha um uso tão recorrente que achei que fosse realmente o momento de dizer: “Meu Deus, descobri a chave interpretativa do cahier !!”. E como ela era complexa! Pois, ao perceber que, ao longo dos fólios, Proust estava se exercitando para criar, com as palavras, aquela sonoridade, aquele “tom” inconfundível ligado à ironia, passava a perceber o cuidado enorme que deveria ter todo aquele que quisesse escrever um ensaio, por exemplo, sobre “A Pintura na Recherche”, ou “A Arte na obra de Proust”, porque essas idéias gerais (Pintura, Arte) não poderiam existir enquanto entidades puras, pois, como via no caso de Elstir, o que havia era o pintor sendo mergulhado na rede de associações do livro, tornando-se objeto de análise como todos os outros personagens que integram essa rede. Sobre ele o narrador pousava um olhar encantado, simpático, distanciado e irônico. Tomemos como exemplo a passagem do manuscrito que trata da descoberta do retrato de Miss Sacripant.
Trata-se de uma pequena tela que Marcel descobre já quase no final da visita ao pintor. Ela está virada para a parede. Ele se agacha, a desvira e contempla extasiado o mais belo quadro da visita. Elstir pede que o herói desvire novamente o quadro, antes que sua mulher entre no ateliê.
Dada a quantidade de acréscimos e cortes, prefiro reproduzir a transcrição que respeita a disposição das palavras na página do caderno.
56 v.º
jolie aquarelle
‘Cependant j’avais
retourné une esquisse
sans doute fort ancienne, c’
était un petit
portrait de’{actrice comme il en exis} {on les voy}
ou petite actrice
de grande cocotte comme il y en avait à la fin de l’empire, un
mais bordé d’un rang de pensées dilatés
petit feutre d’homme sur
des cheveux assez courts, de beaux yeux mélan
coliques et mélancoliques, une maigreur qui accusait la grosseur de
la bouche et la saillie des joues, une petite veste d’homme, une
presque
jupe toute simple comme aujourd’hui une femme de chambre ne s’en
contenterait [plus] <
> bordée du même rang de pensée qu’il
y avait en bas du feutre. Ce
La chair était traitée avec tant de
délicatesse, le regard brun était si limpide, les pensées étaient
faite
si veloutées que toute la
femme semblait peinte avec de l’eau et des
Reprendre à partir de là Et
fleurs. C’est
Quelle délicieuse chose lui dis-je. Il parut
Lala
Miss
mécontent que je l’aie
retourné j’avais déjà aperçu Lala
des
Sacripant 1873
iles 1869.
Oh c’est une chose pochade de jeunesse dit-il ce
la
un costume de ver dans une revue
n’est rien, c’était une
petite femme qui a joué deux fois dans une
Miss
féerie.
Tout cela est bien loin”. Et elle qu’est-elle devenue
Sacripant
Mlle Lala des Iles
. Mais Il me regarda d’un air étonné puis me
dit rapidement : Mais je ne sais pas, ne vous occupez pas de
cette esquisse cela n’a aucun intérêt. Tenez retournez le
j’entends Mme. Elstir qui arrive et bien que cette jeune personne
n’ait joué je vous assure aucun rôle dans ma vie, que je ne l’aie
connue que l’espace d’un portrait, il est inutile que Mme.
Elstir ma femme l’ait sous les yeux. J’ai gardé cela seulement
comme un document amusant des modes de cette époque.
Novamente o dado de base : Marcel descobre um belíssimo quadro de Elstir. Mas o pintor não gosta muito dessa descoberta, talvez seja um amor frustrado de sua juventude.
O que o herói está em vias de descobrir é que “Miss Sacripant” é Odette Swann e que Elstir já foi, um dia, M. Biche, pintor oficial do salão Verdurin e, muito provavelmente, também tomou parte na galeria de amantes de Odette. Ou seja, paralelamente ao fascínio sempre renovado de Marcel pela pintura de Elstir, o narrador está tentando inserir o pintor na cadeia ficcional do romance.
E quando Elstir menciona a entrada iminente de sua esposa, está sendo preparada nova rede de associações. Marcel perceberá um novo dado da psique do pintor: a idolatria pelas formas da vida. Mme Elstir é um quadro vivo, origem e prolongamento de sua arte.
O trabalho de texto tenta, assim, aprofundar a complexidade da cena de uma visita aprazível a uma pessoa talentosa. De forma que, analisar a descrição dos quadros como descrições puras de algo como a “Essência da Pintura”, seria abstrai-los dos contextos em que eles se inserem, forjando interpretações.
O próprio isolamento de Elstir não me parece ser uma antecipação da idéia da absoluta solidão daquele que cria. Elstir é homem muito reservado, janta sozinho no restaurante em Rivebelle, tranca-se no estúdio e vive para a sua obra. Mas esse isolamento deve ser visto à luz de seu passado na casa dos Verdurin e à luz do olhar simpático, distanciado e irônico do narrador ao falar da disponibilidade de doar que tem o pintor.
Elstir se isola e passa seus dias entre as quatro paredes de seu ateliê, mas já foi um dia um dos convidados mais indiscretos e fanfarrões do salão Verdurin. O isolamento foi ditado pelo sentimento de ser incompreendido pela maioria das pessoas. Agora, com o garoto que parece compreender o valor de sua obra, chegou o momento de sair do casulo e dar tudo de si: atenção, paciência, carinho e presentes. Ora, estamos retornando ao quadro de encenação cômica de afeto que é a amizade. Se Elstir se isolou em respeito ao valor de sua obra, ao se comportar efusivamente com aquele que ele supõe compreendê-la, ele está desrespeitando-a, já que o valor da obra vai além das simpatias pessoais.
76 v.º
‘‘
Seuls de rares
d’eux - savent
souvent nous fai être aimables, généreux et
simples. {Ils ne le
sont} {Ils} Ils ont en eux seraient heureux de
se donner si les coeurs
pouvaient les recevoir. Mais ils {sont}
se
{ne}
savent qu’ils ne sont pas compris. Alors ils se gardent, et
toute
cette enveloppe de la’intimité,
du loisir, de la vie matérielle qui est
comme l’écorce, le devant de l’âme pour eux-mêmes. Ils ca-
chent les oeuvres, ferment leur porte, ne veulent pas être dérangés
dans les repas, fuient le monde, refusent de faire des connaissances.
recevoir de réponse
La grande dame qui les invite
sans succès les trouve mal élevés,
leur voisin les trouve
sauvage, leur cousin camarade de
collège fier, l’amateur fantasque, leur cousin [purement]
dénaturé. Mais
Pour un peu le ministre les trouveraient factieux.
Mais qu’ils rencontrent un être qu’ils trouvent assez semblable à eux
fût-ce un enfant comme j’étais encore, pour éprouver pour lui
de la sympathie et sentir que celle qu’ils lui inspirent vient de
la compréhension de ce qu’ils sont, d’une inclination vraie, alors
les rois orgueilleux
et solitaires font leurs débuts rois orgueil-
leux et solitaires font leurs débuts dans cette sociabilité qu’
à
ils ignoraient et chacun des rôles qu’ils y remplissent, donnant
cette plénitude, cette saveur, de ne pas être joué par habitude
mais par un besoin profond qui leur fait répondre à leur usage
75 v.º
en leur donnant tout leur sens ces mêmes goûts où l’humanité a
fait
cessé depuis longtemps de mettre du désir. Comme
un général qui
a une petite fille et qui joue pour elle à la poupée, par affection
pour moi il me laissait en sortant de lui-même et
(...)
Il Lui qui ne répondait jamais à une
lettre m’écrivit deux fois de suite à Querqueville - les lettres
mettaient 2 jours pour parcourir les 4 kilomètres qu’il y a de
Querqueville à Blainville pour me dire de ne pas oublier de
venir déjeuner.’’
Ao tratar de Elstir, o narrador está exercitando seus dotes de distanciamento e problematização de situações em que o herói toma parte. A percepção que passara a ter quando revisava aqueles fólios em que o narrador esboçava o contexto da amizade com Montargis estava se confirmando agora também com a descrição do encontro com o pintor.
Ora, estava aí um dos maiores riscos que corre aquele que se propõe a analisar manuscritos: muito daquilo que acreditava estar identificando nos textos poderiam ser apenas restos de minhas lembranças de leitura do próprio texto publicado de À la Recherche du Temps Perdu.
Conhecia bem o texto de “Un Amour de Swann” e tinha em mente a revelação de que o pintor que aparece no salão Verdurin era o próprio Elstir.
Sabia também que, em À l’Ombre des Jeunes Filles en Fleurs, havia uma passagem na qual o narrador comparava Elstir a Swann, justamente pela idolatria de ambos pelas formas da vida.
Et ainsi la beauté de la vie, mot en quelque sorte déporvu de signification, stade situé en deçà de l’art et auquel j’avais vu s’arrêter Swann, était celui où par ralentissement du génie créateur, idôlatrie des formes qui l’avaient favorisé, désir du moindre effort, devait un jour rétrograder peu à peu un Elstir. (JF, II, p. 207).
Conhecia o desenvolvimento que tal idolatria teria no percurso da personagem, estando ciente de que em Le Temps Retrouvé, com a morte de M. Verdurin, Elstir sente ter perdido uma parte substancial de sua própria obra.
De plus en plus enclin à croire matérialistement qu’une part notable de la beauté réside dans les choses, ainsi que, pour commencer, il avait adoré en Mme Elstir le type de beauté un peu lourde qu’il avait poursuivi, caressé dans ses peintures, des tapisseries, il voyait disparaître avec M. Verdurin un des derniers vestiges du cadre social, du cadre périssable - aussi vite caduc que les modes vestimentaires elles-mêmes qui en font partie - qui soutient un art, certifie son authenticité(...); mais surtout en M. Verdurin il voyait disparaître les yeux, le cerveau, qui avaient eu de sa peinture la vision la plus juste, où cette peinture, à l’état de souvenir aimé, résidait en quelque sorte(TR, IV, p. 349).
Quem sabe não estaria, então, partindo de idéias prontas e aplicando-as ao que lia nos manuscritos? A cogitação dessa possibilidade trazia dor e decepção.
Continuava revisando a transcrição do cahier e não dava mais tanta importância às notas que tomara para desenvolvimento futuro.
Terminada a revisão, estava lendo novamente o caderno quando, certo dia, tive de me render à evidência de que o que acreditara perceber dos processos de criação ali presentes não era de todo irrelevante e tinha realmente alguma razão de ser. Apenas não era tudo o que se podia dizer da dinâmica dos processos de criação nesse cahier.
Ao perceber que, ao longo de vários fólios, o narrador se exercitava na criação de contextos problemáticos através dos quais caminhará o nosso crente e ingênuo Marcel, estava tocando na essência da prosa de Proust, independente de se tratar de textos manuscritos ou publicados. A questão é que vários outros fólios não continham isso que chamava de essência. O que me levava a crer que, ou essa essência simplesmente não existia (o que não era possível, pois estava claro aquele trabalho de problematização encetado pelo narrador, em muitos momentos), ou ela pertencia só a uma parte dos textos.
Essa percepção que, num primeiro momento, deprimia, por relativizar aquela descoberta que acreditava ter feito, possibilitava, depois, um termo de comparação para descobrir o que caracterizava a(s) essência(s) dos outros textos.
Mal sabia eu que estava em vias de descobrir não apenas o que caracterizava o outro conjunto de textos que não continham aqueles procedimentos narrativos de problematização, mas também, de quebra, a chave da passagem de um e outro conjunto de textos para o que viria a ser publicado na Recherche.
Os outros textos a que me refiro, textos nos quais o trabalho de problematização estava ausente, são textos que tratam da descrição dos raminhos que Marcel depositava na água quente para preparar o chá da tia, das sensações despertadas pela leitura num domingo em Combray, das associações nascidas da pronúncia de um nome de origem alemã, do furor do herói à procura da catedral de Carquethuit.
O que há de comum a todos eles é a expansão dos vínculos da memória e da imaginação. São daqueles textos que, na primeira leitura, dão a impressão de não serem guiados por nenhuma lógica, de terem sido construídos por puro acúmulo exaltado de impressões e sensações. Eles chegam a dar a impressão de uma falta de freios, de limites. Um detalhe é um mundo que se abre sob a pressão da imaginação do narrador. Por falta de um outro nome, chamaria tais passagens de “idílios de lembrança e imaginação”.
Ora, se no caso dos outros textos, percebera um trabalho incansável de problematização das cenas por parte do narrador e, depois, tomado de escrúpulos, passara a detectar o estímulo de minhas reflexões partindo do texto próprio publicado da Recherche, não era por má qualidade de minha análise. Pois são justamente esses textos de alta problematização que atravessarão as fronteiras do manuscrito e serão transpostos para a obra.
Os outros, dos “idílios”, só atravessarão essas fronteiras se se mostrarem passíveis de problematização. Ou seja, se saírem da categoria de “idílios de lembrança e imaginação” e entrarem no outro grupo. Forçando a mão, se saírem de Jean Santeuil e entrarem na Recherche.
Tomemos, como exemplo, a descrição do raminho usado na preparação do chá da tia.
Tanto nos manuscritos, quanto no texto publicado, o narrador segue uma lógica mais ou menos fixa para realizar a descrição. No Cahier 28, o texto vai do fólio 20 r.º ao fólio 23 r.º, passando pelos fólios de verso, também inteiramente preenchidos. No texto publicado, o texto se localiza logo depois da revelação da madeleine e pega parte das páginas 50 e 51 do primeiro volume da edição da Pléiade.
O narrador começa sempre falando do estado em que se encontravam os galhinhos: endurecidos e frágeis, podendo se quebrar a qualquer toque. Depois ele menciona as florzinhas que estavam presas no complexo arabesco formado pelos galhinhos. Em seguida, vem uma imagem: o conjunto formado pelos galhinhos, pelas florzinhas e pelas folhinhas pálidas dava a impressão de um desenho de algum grande mestre da pintura que as teria feito pousar para tirar delas o máximo de efeito decorativo. Ele se detém também na riqueza de formas das folhinhas, sugerindo uma asa transparente de mosca, o avesso de um selo, uma pétala de rosa. Chegando ao final, vem a constatação que, embora de aspecto ressecado e sem vida, remetem inconfundivelmente à planta viva que o herói já vira antes.
A parte decisiva da comparação entre eles está no final de cada um.
Listo, a seguir, as linhas finais, de conclusão dos vários esboços sobre o mesmo tema no cahier.
Começo com o finalzinho do fólio 22 r.º, início do fólio 23 r.º. É a primeira redação.
22 r.º
Car {tout avait
survécu même le ca} {dans} {tout avait} c’était si bien
23 r.º
la plante elle-même que je
la regardais au bord étendu
au bord de la Vivonne par une
chaude journée, que tout y y avait
laissé sa trace, y subsistait même sa couleur, si puissante encore
fripées
qu’elle faisait des petites coques d’or des fleurs à côté des sèches
tiges d’albâtre
Na conclusão dessa primeira redação, prevalece a impressão de que os raminhos sequinhos remetem à planta viva que Marcel observara estendido na margem do Vivonne. A conclusão insiste nas marcas que a vida deixou nos raminhso secos.
No fólio 23 v.º, há outra conclusão para o tema.
23 v.º
puisque au moment où toutes séchées
’allais jeter
leurs délicieux bouquets et leurs
elles
je les versais
dans l’eau bouillante à laquelle elles allaient
allais les jeter à peine voilées
donner un goût fané, elles avaient
gardaient encore comme dans
dont elles
une sorte de crépuscule {l’éclat
qui}{éclairent de leur fantaisie}
d’automne
{bouquets, et leurs roses capricieuses} {l’éclat et presque} les
douces chaudes colorations par quoi leurs bouquets fleurissaient le sac de tisane
comme un après midi d’été.’’
Nessa segunda redação, a imagem do garoto deitado junto ao rio desapareceu, mas permanece a intenção de ressaltar a vida que as florzinhas guardam em sua degenerescência. Para fixar a imagem da permanência da vida, utiliza-se, então, palavras ligadas à luminosidade. Aparece o substantivo ‘‘ éclat’’ , o verbo ‘‘éclairer’’ e o substantivo ‘‘après midi’’, relativizando a idéia de um ‘‘tipo de crepúsculo’’ que estava associada à morte das plantinhas.
Passo ao texto da parte de baixo do fólio 23 r.º. Um acréscimo que desenvolve nova conclusão ao tema.
23 r.º
et f
faisaient/ce sac de pharmacie (d’où j’allais les précipiter dans l’eau
/ bouillante à qui elles donneraient un goût fané ) fleuri
où/ jouaient les bouquets rêveurs, et où s’ouvraeint
les/ coupes ébréchées de rose et d’or, fleurissants/et doux comme un jour
d’été.’
Mesma idéia de luminosidade será retomada nessa terceira e última campanha de redação sobre o tema. As flores, que darão um gosto ‘‘fané’’ à água que está fervendo, apresentam-se na forma cheia de pujança de ‘‘buquês sonhadores, nos quais se abriam as taças douradas e de cor rosa, florescentes e doces como um dia de verão’’.
Ora, embora o ressecamento dos raminhos esteja, o tempo todo, remetendo ao ambiente mórbido do quarto da tia, em todas as conclusões está ausente o dado mais importante: a presença da morte. E é esse dado que transporta o texto da categoria de “idílio de lembrança e imaginação” para a categoria de problema, quando ele, em algum outro cahier, poderá, então, ter acesso definitivo ao texto da Recherche.
Com o dado da morte, o trecho deixaria de ser curiosidade estética da natureza que Marcel percebia ao servir o chá para a tia e passaria a fazer parte do conjunto de características que remetem à vida apagada, reduzida, obsessiva e doentia que era a dela. A passagem não é de pouca monta. Marcel passa a ver na materialidade do raminho a força invisível do Tempo, que sempre conduz à morte. No final do livro, a percepção da essência do Tempo e da conexão da obra de arte com a eternidade, recolocarão para ele a questão da morte.
(...) a conversão à eternidade, que é a decisão da escrita, passa pelo confronto com a morte. A morte é elemento constitutivo da obra, assim como (e porque) o tempo é o horizonte interpretativo. E porque a morte está no horizonte da temporalidade finita, estará também na obra, na condição de angústia motivadora. Não há como tomar consciência da transitoriedade e elevar-se acima da representação frívola da vida sem perceber o nó trágico que amarra o efêmero ao eterno, o instante ao intemporal. (LEOPOLDO E SILVA, p. 6)
Sublinho, na conclusão do texto publicado, as referências subliminares à morte que estavam ausentes dos textos manuscritos, dos “idílios de lembrança e imaginação”:
(...) cette flamme rouge de cierge, c’était leur coleur encore, mais à demi éteinte et assoupie dans cette vie diminuée qu’était la leur maintenant et qui est comme le crépuscule des fleurs. Bientôt ma tante pouvait tremper dans l’infusion bouillante dont elle savourait le goût de feuille morte ou de fleur fanée une petite madeleine dont elle me tendait un morceau quand il était sufisamment amolli.
O olhar que se pousa sobre os raminhos passa a sentir, junto aos curiosos efeitos artísticos que esse objeto tão efêmero lhe mostra, a intromissão delicada, mas decisiva da morte. Pelo gosto de coisa morta que já impregnou o biscoito, a tia oferece ao garoto, antecipadamente, experiências capitais que teriam de ser conjugadas à tarefa de escrever o livro.
O jogo de complementação entre um narrador distanciado que problematiza todas as cenas que descreve e um herói sensível e seu tanto inocente é um dos traços de união subjacente aos vários fólios que compõem o cahier e pode definir criticamente o estágio de elaboração de um texto. As conclusões mais importantes parecem ser as seguintes: o que imprime força e impulsiona os textos dos manuscritos da Recherche é uma necessidade crítica; e o que os aproxima é sempre o grau a mais de complexidade e problematização.
Deixaria em aberto a pergunta: seria o acaso da morte de Proust que o impediu de terminar Le Temps Retrouvé? Se sim, ficaria o enigma, levantado por Nathalie Mauriac, de ele ter encontrado tempo para alterar completamente Albertine Disparue e continuar a problematizar os dados de que dispunha (PROUST, 1993). Quer dizer: talvez fosse o caso de se dizer que, realmente, sua teoria da memória ficava aquém, em termos de rendimento ficcional, do potencial crítico da prosa que ele criara e que vimos em atividade nos fólios do Cahier 28.
BIBLIOGRAFIA CITADA
BRUN, Bernard. Étude génétique de l’ouverture de La Prisonnière”. In : Cahiers Marcel Proust 14, Études Proustiennes VI. Paris : Gallimard, 1987, p. 221-287.
KOLB, Philip. Apresentação a Cahiers Marcel Proust 8, Le Carnet de 1908. Établi et présenté par Philip Kolb. Paris : Gallimard, 1976.
LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Proust: o Pathos da Temporalidade. (cópia xerox).
PROUST, Marcel. A la Recherche du Temps Perdu. Paris : Bibliothèque de la Pléiade, T.I 1987, T.II 1988, T.III 1988, T.IV 1989.
------. La Fugitive. Cahiers d’Albertine Disparue Teste établi, présenté et annoté par Natahlie Mauriac Dyer. Paris : Le Livre de Poche, 1993.
WILLEMART, Philippe. Da Forma aos Processos de Criação. Manuscrítica 8. São Paulo : Annablume/APML, p. 11-35.