O ESTILO POLÊMICO DE SÃO JERÔNIMO

NA APOLOGIA CONTRA RUFINO

Luís Carlos Lima Carpinetti (UFJF)

A palestra que ora apresentamos tem como tema os aspectos estilísticos de uma das obras de São Jerônimo, a Apologia contra Rufino. Ocuparemos uma parte do tempo da exposição do tema com a leitura de um texto de caráter introdutório e explicativo do contexto histórico e cultural no qual se insere a obra de São Jerônimo como um todo, com os aspectos peculiares e relevantes para que se possa situar a Apologia contra Rufino em seu tempo e nas condições que em que tal texto é gerado e como podemos compreendê-lo, em seus aspectos estilísticos. Nossa abordagem não tem pretensão de exaurir o tema, e, ainda que quiséssemos fazê-lo, não nos seria possível tanto pela falta de tempo, quanto pela volumosa espessura de informações subjacentes ao texto de São Jerônimo que interage com uma variada gama de obras clássicas latinas, com o legado judaico-cristão e com a rica produção dos padres da Igreja. E sendo tema de minha pesquisa de Doutorado, a pesquisa sobre os aspectos formais da obra supra-citada ainda está em curso e os instrumentos metodológicos de que nos servimos para o estabelecimento da construção formal do texto é o exercício da tradução do latim para o português, com a técnica de esfacelamento da linearidade do texto em esquematização gráfica, permitindo o reconhecimento dos valores e das funções dos elementos oracionais na formação do período e na construção das idéias. O trabalho de tradução ainda está em curso e há um volume considerável de texto a traduzir. Nós nos servimos das edições de J.-P. Migne, do século XIX, e da de Pierre Lardet, do século XX, e o trabalho que o texto de São Jerônimo suscita é um recurso constante a muitas fontes em sua tentativa de dar uma resposta satisfatória de sua posição em relação à condição de heresia de que a obra de Orígenes passou, de um momento a outro, a ser considerada portadora e, portanto, algo perigoso.

No Brasil, temos estudiosos, ainda que em número reduzido, da obra de São Jerônimo. Cabe ressaltar o trabalho de Dom Paulo Evaristo Arns, A técnica do livro segundo São Jerônimo, editado pela Imago Temos também conhecimento do trabalho do Professor Marcus Silva da Cruz que trabalhou sobre os textos das espístolas de São Jerônimo sob o ponto de vista histórico e social em seu Mestrado e Doutorado, trabalho que contém uma extensa gama de informações bibliográficas e interessante análise do legado greco-romano nas epístolas, no trabalho de Mestrado, e interessante discussão da questão das virtudes romanas e sua cristianização, a partir do texto das epístolas, em seu trabalho de tese de Doutorado. Há muito que se fazer neste sentido no Brasil, e neste sentido, pretendo contribuir para que este intelectual do século V, muitas vezes só reconhecido pela tradução latina dos originais hebraicos, na qual, por um milênio inteiro, o Ocidente leu a Sagrada Escritura, seja melhor conhecido em sua vasta e multifacetada obra que a todos assombra pela energia que está na origem de um tão volumosa produção, apesar da precariedade do material, da extensa rede de relações humanas que a produção de um livro punha em ação, em uma época em que não havia as comodidades e recursos de que hoje dispomos, como eletricidade, instrumentos como caneta esferográfica, papel de boa qualidade, máquinas de escrever, editoração eletrônica de textos... Naquela época, os instrumentos além de muito toscos, somavam-se a um ritmo de vida muito lento. Se a obra vasta e multifacetada de Jerônimo (tradutor, polemista, epistológrafo, exegeta, biógrafo, estudioso de três línguas - o hebraico, além do grego e do latim) nos soa como um milagre, certamente isso se deve, nós acreditamos, a esta precariedade dos meios disponíveis para a produção do livro, que tão bem nos descreve Dom Paulo Evaristo Arns. Em geral a iconografia do santo costuma representá-lo com livro em mãos, trabalhando, lendo e escrevendo e isto testemunha o que efetivamente o santo fez em toda a sua vida e, se vemos em Jerônimo, por vezes, traços do homem rendido ao seu tempo e por vezes, mais humano e menos “santo”, o trabalho que empreendeu pode testemunhar a favor de sua santidade, se consideramos o lugar e a importância que assumiram após seu período de vida.

 

O CRISTIANIMO, A LUTA HISTÓRICA

E A OBRA DE SÃO JERÔNIMO

O texto que abordaremos como objeto de análise e tradução é resultante de uma evolução histórica e cultural da civilização cristã, a qual tem início no seio do judaísmo e ganha paulatinamente a civilização greco-romana ocidental e se expande também em domínios semíticos orientais e regiões do norte da África.

Vale a pena lembrar o texto do Evangelho de Lucas, capítulo 2, 41-52, onde encontraremos Jesus, falando aos doutores e causando, nestes, surpresa e admiração pela sabedoria de suas respostas. Esta alusão prenuncia o futuro da vida pública de Jesus entre os hebreus, com cuja cultura estabelecerá uma interlocução, inaugurando um sentido novo a todo o desiderato messiânico presente na cultura multissecular de profetas que anunciavam a vinda do Messias, em especial Isaías, trazendo para a história dos hebreus o coroamento de todas as esperanças depositadas na figura do Messias, que Jesus decide então abraçar em sua carreira pública. Educado na cultura judaica, Jesus tem completo domínio de suas tradições. Adulto, porém, Jesus apresentará um projeto que encontrará obstáculos e sua mensagem irá introduzir uma espécie de mal-estar no ambiente cultural e religioso ou, antes, será o catalisador do mal-estar generalizado, seja este mal estar o dos homens em relação à sua prática religiosa, sejam as doenças que acometem o povo de inúmeras formas, estruturas sociais caducas e sem vitalidade, opressões e escravidões suportadas e sempre lembradas na vida dos judeus... Um mestre-menino dialoga com os doutores da lei e, quando adulto, este mesmo menino agirá com maestria, imprimindo um movimento novo com muitas facetas novas: Deus em sua mensagem passa a ser um deus próximo, que dá a vida, saúde, ao despertar no coração a força e o princípio divinos de que muitos corações esfriados se distanciaram, passando a viver vidas mecânicas e pautadas na letra da lei, esquecendo-se do grande conteúdo da lei mosaica. Os Atos dos Apóstolos, em suas inúmeras narrativas em que os apóstolos, já abençoados pela infusão do Espírito Santo, buscam divulgar a mensagem cristã, dão-nos a medida de outra realidade evangélica - a de que Cristo não veio para a paz, mas para a espada. O texto neotestamentário é o espelho da luta, da busca sôfrega de realizar os ideais de vida, o relacionamento com Deus, justo e misericordioso, a vida na graça de Deus. Para tal, a luta traduzia-se em criação discursiva. Falava-se do Cristo, falava-se de Jesus com narrativas da Velha Aliança, a fim de situar Jesus no ambiente hebreu de onde Jesus era originário. Falava-se aos povos helenizados e é célebre a passagem de Paulo dirigindo-se aos atenienses para falar do deus desconhecido e atribuir ao vazio da dedicatória à estátua do deus que lá então se encontrava o conteúdo da sua mensagem e dando o nome de Jesus a este deus que os atenienses desconheciam. O signo da luta, representado pela espada, na fala do Cristo, segundo o texto evangélico, está aí presente, nesta tarefa de articular a boa-nova de Jesus com as culturas vigentes na época. Quantas vezes foram martirizadas pessoas que professavam a fé em Jesus Cristo? Quantas vezes perseguidas, quantas vezes ridicularizadas? É sob o signo da luta que o cristão irá conquistar o seu direito de cidadania, a sua liberdade de expressão religiosa, bem como poder expandir a sua fé.

Se fazemos estas considerações, é que esta vertente é uma face da obra que estamos tratando. A princípio o cristianismo se debate com o judaísmo, e os cristãos têm dificuldade de se tornarem independentes do judaísmo, do qual se nutrem por algum tempo, convivendo lado a lado. É fato que os cristãos admitem o passado judaico como fonte histórica e religiosa. Mas, passado certo tempo, torna-se mais independente e interage com outras culturas até que encontrará Roma, palco de grandes perseguições aos cristãos.

A religião oficial romana não tolerava o culto cristão e aqueles que o praticavam não eram complacentes com a obrigação de prestar culto ao Estado e, por esta razão, ofendidos com esta restrição por parte dos cristãos, os magistrados e a aristocracia romana desencadearam grandes perseguições, levando ao circo os cristãos, oferecendo-os como vítimas aos leões, infligindo-lhes, assim, pesado castigo pela obstinação com que permaneciam confessando a sua fé em Jesus Cristo.

Foi pesada a luta dos cristãos para conquistar o seu lugar no mundo ocidental. E será que haverá um dia em que o homem achará o seu lugar, o exato momento em que poderá viver em liberdade, exercer livremente sua criatividade, vencer o medo e a miséria, saber como transformar a sociedade e a história a partir de seus ideais? Certamente que sim, e nisto apostamos.

Em princípio, as fontes bíblicas a que fizemos menção permitem-nos refletir sobre a natureza do contato entre a religião pagã e a religião cristã, sem mencionar as religiões de povos vizinhos à região da Palestina. A necessidade de estabelecer idéias corretas para crenças corretas, para o reto viver e o reto agir e fará necessário combater as inúmeras heresias - o ebionismo, o elcasaísmo, o simonismo, os barbelognósticos, originários do gnosticismo, e o marcionismo, o valentinismo, o montanismo que ameaçam a fé e a unidade da Igreja.

No quarto século, época à qual nos reportamos, deparamo-nos com uma grande quantidade de heresias. Os concílios que se reuniram na época para sanar dúvidas a respeito da fé deveram sua existência a estas heresias, dentre as quais podemos citar o origenismo ao qual encontra-se associada a elaboração da Apologia contra Rufino, objeto de nosso estudo.

Orígenes, de quem acabamos de falar, nasceu em Alexandria em 185 da era cristã. Tendo sua família perdido todos os seus bens, foi com dificuldades que ele estudou. Viveu em uma época em que a Igreja ainda não se havia pronunciado sobre tantas questões relativas ao dogma, pois seu corpo de doutrinas ainda não se havia formado e Orígenes com suas atividades de exegeta bíblico, sobretudo aplicando nestas atividades seus conhecimentos de filosofia grega, explicava a religião cristã utilizando a maneira grega de explicar a religião e seus mistérios, lendo alegoricamente as escrituras da religião judaico-cristã. Entre os pontos que suscitaram discussões estão a pre-existência das almas. Orígenes dizia que elas haviam pecado no estado de puros espíritos e que sua entrada em um corpo mortal submetido a necessidades e doenças, sua assimilação a animais, sua vida terrestre, em uma palavra, era o castigo de seus pecados. Outro ponto: a ressurreição dos mortos no dia do juízo final. Segundo Orígenes, os mortos que ressuscitarão tomarão uma figura mais etérea que os restos mortais, e que estes receberão do soberano juiz sua recompensa ou castigo. Orígenes não acreditava, contudo, no castigo eterno. Entre outras coisas, Orígenes dizia que a semelhança do homem com seu criador cessou com o pecado e o paraíso era, em sua visão, carregada de elementos simbólicos: as árvores eram puros espíritos, os rios, as virtudes celestes etc.

Duzentos anos após o nascimento de Orígenes, durante os quais Orígenes era considerado a luz do Evangelho depois dos apóstolos, e que a imensa obra de Orígenes era referência para o mundo cristão, sua obra torna-se alvo de violentas discussões e durante um bom tempo irá ser causa de controvérsias, de divisões entre bispos e clérigos. Tudo começou quando Aterbius, teólogo sutil que havia tomado como tarefa combater Orígenes, resolveu ir à diocese de Jerusalém e lá, assistindo a homilias, lançou um manifesto público pelo qual denunciava a diocese de Jerusalém como foco da funesta lepra do origenismo. Este ato desencadeou a controvérsia origenista. Na diocese de Jerusalém, havia um mosteiro no qual vivia Jerônimo em companhia das senhoras Paula e Eustóquia, situado na cidade de Belém. Na diocese de Jerusalém, dirigida por João, o monge Jerônimo desculpou-se por escrito, enquanto que o bispo, montado em seu orgulho, não se desculpou. Jerônimo estava na posição de quem havia traduzido, segundo depoimento de Rufino, setenta opúsculos do alexandrino Orígenes, e achou por bem desculpar-se. O bispo João de Jerusalém estava apenas preocupado em reverter a situação de dependência de sua diocese em relação à sede metropolitana de Cesaréia. A este bispo aliou-se Rufino. Em seguida, o bispo de Chipre Epifânio de Salamina, cioso de ortodoxia, resolveu dirigir-se a Jerusalém e tirar a limpo o que então se passava. Em celebrações nos lugares santos de Jerusalém, a intervenção do bispo Epifânio junto aos colegas de episcopado e aos fiéis só fez as coisas piorarem. Por exemplo, em decorrência de desentendimentos entre os monges de Belém e o bispo João de Jerusalém, este ordenou que os monges de Belém ficassem privados sacrifício diário da missa, fato que deixou os monges profundamente tristes. Ser ortodoxo e ter a garantia de estar a salvo do labéu de heresia era tudo o que se desejava nesse momento. A obra de Jerônimo, objeto de nosso estudo inclui-se na luta contra o estigma de heresia.

A Apologia contra Rufino faz parte de um prolongado conflito em que se digladiaram Jerônimo e Rufino, motivados pela publicação de uma tradução de uma obra de Orígenes, o Peri Archon, feita por Rufino. Logo em seguida, Jerônimo publica uma resposta à obra, traduzindo a mesma obra de Orígenes. Aconteceu entre os dois uma situação muito constrangedora que consistiu no fato de que Jerônimo causou melindres em Rufino, publicando a tradução do mesmo texto. Segundo o próprio Jerônimo, sua tradução não continha erros lingüísticos nem falseava os verdadeiros pareceres de Orígenes; já a tradução de Rufino ficou muito mal vista depois da publicação da tradução de Jerônimo. Rufino endereçou uma Apologia contra Jerônimo, acusando-o sutil e indiretamente por meio de elogio, dos quais Jerônimo denuncia a falsidade e acusa Rufino de incriminá-lo de forma cruel sob a aparência de elogios. A resposta de Jerônimo é sua autodefesa e exposição dos elogios falsos de Rufino. No todo, a obra é instigante, pois apresenta o ser humano buscando a verdade da fé, tentando escapar das ciladas e do estigma da heresia. O estilo da obra traz a marca do calor do debate, o furor da busca da verdade, o tom de total engajamento.

 

BREVE NOTÍCIA BIOGRÁFICA DE SÃO JERÔNIMO

Jerônimo, em latim Hieronymus, padre e doutor da Igreja latina, nascido em Estridão, na Dalmácia, por volta de 331 da era cristã, morto em Belém, em 420. Fez sólidos estudos em Roma, recebeu o batismo aos 20 anos, visitou a Gália(369), estudou teologia em Tréveris, depois dirigiu-se à Ásia Menor e embrenhou-se no deserto de Cálcis onde viveu 3 anos como anacoreta(373-376). Ordenado padre, ele foi para Constantinopla onde se submeteu a São Gregório Nazianzeno seus primeiros trabalhos exegéticos. Em 382, ele está em Roma onde orienta piedosas mulheres, em particular Paula e Eustóquia. Em 385, volta para o Oriente e fixa-se em Belém, onde Paula havia fundado um mosteiro. Ele faz revisão do texto grego da Bíblia dos Setenta e faz uma tradução latina a partir do texto hebraico da Bíblia que ficou conhecida como Vulgata. Ele escreveu, além disso, um número imenso de obras de exegese e de história eclesiástica. Suas epístolas são um quadro vivo de seu tempo. Seu estilo é claro e vigoroso, às vezes prolixo, suas idéias são às vezes excessivas. Alma generosa, caráter ardente, suas discussões são ásperas, sobretudo aquelas que ele teve a respeito de Orígenes com seu antigo amigo Rufino. Sua festa é aos 30 de setembro.

 

O ESTILO POLÊMICO DO TEXTO DA APOLOGIA CONTRA RUFINO

O texto que lemos a seguir é uma tradução do texto latino da edição de Pierre Lardet, publicada em 1983, pelas Edições Cerf de Paris. Nele poderemos nos dar conta da herança da oratória clássica no texto de Jerônimo. Se pensarmos na afirmação de Ettore Paratore sobre a “mesma veemência, o mesmo furor pessoalista que caracteriza o seu modelo Cícero” em sua História da Literatura Latina (p. 961), da edição citada na bibliografia, podemos encontrar um eco no texto da Apologia contra Rufino do texto muito célebre das Catilinárias e esta comparação nos mostra semelhanças e diferenças. O furor pessoalista e a veemência é comum a ambos. Mas a diferença consiste em que Cícero ocupa, em relação ao seu assunto e com relação à pessoa que acusa, o lugar de superior isenção e isto lhe confere status de grandeza moral, honra, eloqüência e cumprimento dos deveres do cargo público que ocupa, elementos que o tornarão célebre muito além de seu tempo. Jerônimo, ao contrário, não se dirige diretamente, como Cícero o faz no texto citado, ao seu rival Rufino; pelo contrário, é a Pamáquio e Marcela que dirige sua resposta aos atos, palavras e, principalmente, os escritos de Rufino, denunciando a perfídia dos elogios que ocultam as armadilhas da inimizade. É possível perceber no texto de Jerônimo e, em especial, no fragmento traduzido, um grau maior de cumplicidade entre os rivais Jerônimo e Rufino, ao passo que em Cícero, no texto das Catilinárias, já encontramos uma isenção maior do orador em relação ao assunto. Cícero esmaga com sua palavra, com o poder de seu cargo, com a força política que lhe garante segurança e autoridade, ao seu oponente Catilina. Jerônimo, em posição menos favorável, tenta equilibrar, com argumentação e arrolamento de fatos e escritos de Rufino, a sua posição em prol da ortodoxia católica, na qual quer ser reconhecido e considerado como defensor das verdades da fé cristã, apesar de ter traduzido as obras de Orígenes que, depois que este passou a ser considerado herético, seu tradutor Jerônimo passa a ter um passado maculado, de certa forma, por haver traduzido as obras de Orígenes, sendo a tradução uma forma de reconhecer automaticamente, no autor que é traduzido, um valor implícito. Desta forma, vejamos o texto traduzido, que também tem eco do segundo salmo que interroga: Quare fremuerunt gentes et populi meditati sunt inania? (Por que se amotinaram as nações e os povos tramaram vãs conspirações?) (Salmo 2,1).

 

TRADUÇÃO DO TEXTO LATINO

CUMPRIMENTOS HIPÓCRITAS DE RUFINO

Eu vos pergunto: que ressentimento é esse? Por que se inflamam? Por que endoidecem? Porque repeli o simulacro de um panegirista? Porque eu não quis ser louvado por uma boca hipócrita? Porque, sob o nome de um amigo, desvendei as armadilhas de um inimigo? No prefaciozinho, sou chamado de irmão e companheiro e muito abertamente são expostos meus crimes, o que eu teria escrito, os louvores pelos quais eu teria elevado às nuvens Orígenes. Ele declara tê-lo feito em uma boa intenção; mas como pode, agora que ele é meu inimigo, levar a cabo sua crítica sobre os mesmos pontos que ele tinha louvado, quando então era meu amigo? Ele tinha querido, em sua tradução, seguir-me como pioneiro e servir-se de nossos opúsculos para conceder autoridade à sua obra. Tinha bastado que dissesse uma vez o que eu tinha escrito: porque foi necessário voltar a repetir as mesmas asserções e freqüentemente recitar - como se ninguém acreditasse em seus próprios louvores - expor as próprias citações. O louvor simples e puro não se inquieta quanto à lealdade dos que ouvem. Por que ele temeu que não acreditassem nele ao elogiar-me, sem recorrer ao testemunho de minhas próprias palavras? Vós nos vedes compreender sua sagacidade e que brincamos freqüentemente nas escolas da pregação da estrofe sarcástica. Aquele em que surpreendemos as astúcias da maldade não pode alegar retidão. Admitamos que ele tenha errado uma, ou quando muito, duas vezes! Por que erra com critério e amiúde? E assim encobriu um erro por inteiro, de modo que não me é lícito negar o que ele elogia!

 

CONCLUSÃO

Antes de estabelecermos uma conclusão, estamos percorrendo um caminho e, para se chegar ao estabelecimento final do que seja o estilo polêmico de São Jerônimo no texto que é objeto de nossa análise, será necessário deslindar muitos outros textos que subjazem ao texto da Apologia, bem como trabalhar sobre a questão do gênero do texto, tarefas que estamos buscando levar a bom termo.

 

BIBLIOGRAFIA

ARNS, Dom Paulo Evaristo. A técnica do livro segundo São Jerônimo. Tradução de Cleone Augusto Rodrigues. Rio de Janeiro : Imago, 1993.

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BÍBLIA VULGATA. Madrid : BAC, 1946.

CRUZ, Marcus Silva da. A herança romano-helenística nas cartas de São Jerônimo. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro : UFRJ, 1992.

-----. Da virtus romana à virtude cristã: um estudo acerca da conversão da aristocracia de Roma no IV século a partir das epístolas de Jerônimo. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro : UFRJ, 1997.

DANIÉLOU, J. , MARROU, H. Nova história da Igreja. Dos primórdios a São Gregório Magno. Tradução de Dom Paulo Evaristo Arns. Petrópolis : Vozes, 1984.

PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Tradução de Manuel Losa. Lisboa : Calouste Gulbenkian, 1983.

São Jerônimo. Apologie contre Rufin. Introduction, texte critique, traduction et index par Pierre Lardet. Paris : Cerf, 1983.