Pedro Nava: A (Des)construção da Memória

Edina Regina Pugas Panichi (UEL)

 

A presente comunicação tem por objetivo o processo de construção do texto na obra do memorialista Pedro Nava. Através dos manuscritos deixados pelo autor, fez-se um acompanhamento das escolhas feitas por Nava em seus documentos de processo - fichas, desenhos, recortes de jornais, caricaturas - que serviram como ponto de partida para sua escritura. Constatou-se, assim, que a construção do texto resulta de um trabalho árduo de busca de informações e que tal artefato artístico surge ao longo de um complexo processo de apropriações, transformações e ajustes. Tal abordagem segue as orientações da Crítica Genética e Estilística e tem como suporte de pesquisa os documentos de redação da obra Beira-Mar/Memórias 4.

Pedro Nava revela uma enorme capacidade de operacionalizar criativamente a memória. A sua curiosidade de inquiridor (herança de médico), levava-o a descer a minúcias como se desejasse fazer um diagnóstico aplicando sua ciência à língua. Nada lhe escapava. Tudo era anotado e guardado como uma possibilidade de uso.

A escolha de Beira-Mar/Memórias 4 como objeto de estudo deveu-se a dois fatores: em primeiro lugar, por sugestão do próprio escritor que, numa conversa informal com a autora deste trabalho segredou ser esse o volume que mais o agradava, por abranger o período de maior importância em sua vida - “viver os 20 anos nos anos 20” - e por agrupar os amigos contemporâneos. Em segundo lugar, pelo privilégio de termos em mãos cópias dos arquivos referentes à produção de Beira-Mar, conseguidas junto à Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, através de seu diretor, à época, Plínio Doyle.

O conjunto formado pelos documentos a que se teve acesso sobre a obra Beira-Mar compreende um vasto material que vai desde fichas, anotações para lembrete, mapas, desenhos, caricaturas, plantas de edifícios, recortes de jornal, dentre outros. Um estudo de como esse material se converteu ou foi efetivamente empregado na realização da obra requer uma delimitação, uma vez que é extremamente vasto. O procedimento de estudo será de examinar uma parte desse material que contenha suficiente significado e possa ser identificado no movimento de conversão para o texto que foi efetivamente publicado. Um ponto de descoberta estaria localizado exatamente nesse recorte, ou seja, de início o contato será com o material equivalente ao texto contido entre as páginas 171 a 174 da segunda edição da obra publicada em 1979. Buscaremos uma leitura do material selecionado para este estudo, com a finalidade de interpretá-lo com mais direcionamento, a partir da abordagem da Crítica Genética e da Estilística. Trata-se de duas dimensões distintas que devem ser a todo momento integradas. Em outras palavras, a primeira dimensão permite dispor e reconhecer o material a que se teve acesso e a segunda, a interpretação e análise propriamente ditas.

Salles (1998:13) delineia o trabalho do crítico genético apontando como a principal fonte de acesso ao percurso seguido pelo autor, documentos designados documentos de processo que são a base material para as descobertas que essa iniciativa possibilita alcançar. Quando fala da necessidade de buscar uma base teórica para a construção de suas interpretações, assim se expressa:

As diferentes perspectivas teóricas permitem aos pesquisadores olhar para aspectos diversos do processo. O poder de descoberta de cada teoria e a habilidade interpretativa de cada pesquisador oferecem a possibilidade de nos aproximarmos mais do percurso criador.

O percurso criativo revela-se como uma seqüência de ações que tem como meta a busca da satisfação por parte do autor. O levantamento de dados e seu registro em fichas, a construção do boneco (esboço preliminar da passagem a ser elaborada) com encaixe das fichas e a primeira redação são fases que se podem notar de imediato em Pedro Nava. Idéias em contínuo fluxo, são ora adotadas ora abandonadas em benefício das anteriores ou de novas idéias. A primeira escritura torna visível o movimento de destruir para construir. Ou seja, o autor garante um primeiro material físico que sai num primeiro jato, que não representa, necessariamente, o que vai em definitivo chamar de seu texto. Passa a deslocar material, inserir novas palavras e frases, anular trechos, substituir sinônimos, tudo num processo que caracteriza a idéia que se encontra em Salles (1998:28): “gestos construtores que, para sua eficácia, são paradoxalmente, aliados a gestos destruidores: constrói-se à custa de destruições.”

Na passagem selecionada, os documentos de redação foram colocados na ordem de aparecimento no texto. De início se observa um envelope contendo o número 97, com as seguintes observações: Rua Silva Jardim Casa do Carlos. Quem lê algo como isto, jamais pode fazer idéia de que a Rua Silva Jardim é mencionada num poema de Carlos Drummond de Andrade (o Carlos a quem ele se refere) que se encontra num recorte de jornal colocado dentro do envelope. O que mais interessa nesse ponto, é que parte desse poema foi utilizado, a princípio, como epígrafe na página 171 de Beira-Mar.

A casa não é mais de guarda-mor ou coronel

Não é mais o sobrado. E já não é azul.

É uma casa entre outras. O diminuto alpendre

onde oleoso pintor pintou o pescador

pescando peixes improváveis. A casa tem degraus de mármore.

(...................................................................................................)

Rua Silva Jardim ou silvo-longe?

(CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A segunda ficha é encontrada sob número 82 e faz observações que se referem a características que o autor vê em Carlos Drummond de Andrade: falação rápida como quem quer acabar depressa, ir embora, sair. O trecho resultante é o que segue: Rememoro o Carlos Drummond dessa fabulosa década de 21 a 30 pela sucessão fotográfica de sua imagem na memória e por quatro retratos que conservei. O primeiro, de 24 a 25, mostra um moço menos magro que o adulto, ar rápido como se quisesse sair depressa do raio da objetiva da máquina (...). Mais abaixo, na mesma ficha: piscação dos olhos. Essas observações também são encontradas já com sua função no texto, na página 171: Nessa ocasião também piscava mais os olhos. O trecho encontrado ainda nessa mesma página: Todas essas fotografias mostram um moço de cabeça bem posta no longo pescoço de figura de Modigliani... teve origem na ficha numerada com 96, cujos dizeres são: pescoço Modigliani Carlos. Quem não tem conhecimento de História da Arte e não sabe que Modigliani pintava figuras com pescoços longos não compreende a observação sugerida pelo autor. Valendo-se do seu conhecimento sobre arte, Pedro Nava registra, de forma inusitada, uma característica marcante do poeta, sugerida pela pintura do artista italiano, chamando para a combinação a atenção do leitor e transformando-a numa vantagem estilística. O olhar caracteriza, dessa forma, sentimentos e visualizações inéditas para os quais se encontra a forma adequada de expressão, numa síntese das reações intelectivas e emocionais que a realidade provoca no escritor.

É bem conhecida a preocupação de Pedro Nava ao retratar os seus personagens. À maneira do médico, ele os disseca meticulosamente por dentro e por fora, não perdendo nenhum detalhe, o que comprova o seu espírito observador. A descrição de Drummond continua, com as seguintes observações: No seu todo alguma coisa da gravura de Dürer ou do quadro de Cranash representando Phillipp Schwarzerd - o Melanchthon.

Aqui os recursos criativos estão diretamente ligados ao domínio de determinadas técnicas. Certos procedimentos revelam singularidades que norteiam o fazer do escritor, como acontece com Pedro Nava no terreno das artes plásticas. O conhecimento acumulado sobre pintura, somado à sua capacidade de desenhista, permitem-lhe transpor essa experiência para sua escrita, na tentativa de concretização de seu projeto poético. Pode-se sentir, aqui, a mão do desenhista apoiando a mão do escritor, que conhecendo o instrumento para manipular a matéria de que dispõe, estabelece conexões originais relacionadas ao seu projeto de construção do texto. Dessa forma, a referência a Albrecht Dürer, conforme pudemos constatar, justifica-se. Esse pintor e gravador alemão, ao defrontar-se com a natureza física do homem, não só se preocupava em produzir com fidedignidade os traços fisionômicos de suas figuras, como também perseverava no estudo das proporções do corpo, tornando-se a beleza clássica do corpo humano o alvo de sua criação. (Gênios da Pintura: 1980, p. 262). Assim, o recurso da remissão a Dürer funciona como uma comparação implícita, resultado do interesse do autor pelo estudo da anatomia e morfologia humanas. Já a remissão a Melanchthon foi motivada por uma caricatura feita por Pedro Nava retratando Drummond nos anos 20. Constata-se uma surpreendente semelhança entre o poeta e o retrato feito por Cranash, o que possibilitou a aproximação das imagens.

Alguém que procurasse num dicionário de Língua Portuguesa o significado de verecondioso, como característica atribuída a uma pessoa, neste caso, Drummond, nada encontraria, pois é um termo não pertencente ao léxico. Curiosamente o autor deixa o rastro na ficha que preservou sob número 79, em que se vê claramente o jogo de conversão que efetuou:

Vérécondieux = retido, reservado

discreto. Pode-se fazer verecondioso

Carlos Drummond

Sem recurso no vernáculo para atribuir uma característica com que desejava descrever um aspecto da personalidade de Drummond, o autor constrói verecondioso através dos procedimentos que se pode verificar na ficha que utilizou para esse propósito. Ao mesmo tempo que é limitadora, a matéria comprova seu lado de oferta de possibilidades, como observa Dufrenne (1998:132):

Quanto ao criador, também ele pode se iniciar no código e se instruir junto das obras. Nesse sentido, ele encontra à sua disposição uma língua já feita. Sim, mas que ele vai refazer. Essa língua não é uma ferramenta para ele, a não ser uma ferramenta que ele forjaria no próprio ato da criação, e sua sintaxe também não é um sistema de coações que lhe seria imposto sem que dele se pudesse libertar.

Na ficha que se segue, na seleção aqui feita, ficha que contém o número 85, encontram-se as palavras modéstia orgulhosa. O autor as emprega no seguinte trecho da página 171: Era muito magro mas extremamente desempenado, tinha o gauche que tornar-se-ia folclórico, um ar de orgulhosa modéstia (não sei se posso colocar juntas as duas palavras, entretanto não acho outras) (...) Temos aqui um adjetivo incompatível, a princípio, com o substantivo a que se refere. Uma união sutil de intenção criadora e expressão artística. O trabalho seletivo do autor buscou dar coerência à sensação que queria transmitir. Dessa forma, o acerto da imagem obtida pela união das duas palavras como tradução da sensação, corrobora o acerto da sugestão. O criador está sempre transgredindo as normas que o código lhe oferece e, segundo Dufrenne (1998:137), apesar de lhes reconhecer a autoridade, nessa dialética da liberdade e da necessidade, o autor encara tais prescrições como obrigações e não como coações. Assim, busca extrair de seu vocabulário até a última essência das possibilidades significativas das palavras, forçando-as a concepções inéditas por meio de alianças sutis e choques combinatórios para alcançar o seu objetivo, nesse caso, ressaltar uma outra característica de Drummond.

Os arquivos do escritor nos fornecem subsídios para a compreensão de como as anotações são apreendidas e transportadas para o texto. Revelam, ainda, a necessidade de pesquisa exaustiva sem a qual a obra não se sustentaria. Para descrever a casa de Drummond, Pedro Nava além de esboçar uma planta para lhe servir de guia, destacando a varanda e o quarto do poeta, faz um levantamento de sinônimos para o substantivo casa uma vez que a sua escritura, naquele momento, se ressentia da variedade do termo. Para essa descrição, encontramos uma ficha sem numeração, misturada entre os documentos de processo que registrava a seguinte listagem: casa, prédio, construção, habitação, moradia, imóvel, edifício, domicílio, residência, lares, penates. Essa necessidade pôde ser constatada quando da redação dos originais. Ao compor o texto, usa casa, edificação, prédio (esta última palavra é aposta a uma correção em que anteriormente aparecia a expressão casa). O mesmo acontece mais adiante, quando também se percebe uma correção sobre nova menção da palavra casa, substituída por domicílio. A mesma coisa ocorre duas linhas abaixo, de novo com a palavra casa sendo substituída por imóvel. Ao voltar a mencionar a casa de Drummond para dar continuidade a seu relato, o autor emprega o termo edifício, que se percebe estar escrito sobre uma correção (impossível de decifrar). Resultam pelos menos seis diferentes formas para o termo casa empregados em seqüência. No livro, a página que contém a descrição, assim está composta (observar o aproveitamento do poema A Casa sem Raiz):

Esta a casa que frequentei só, com Alberto Campos, com Emílio Moura, para visitar o poeta. Era uma simpática edificação, defronte à Igreja da Floresta, pintada de óleo verde, com entrada central, escada de degraus de mármore dando no “diminuto alpendre” cujas paredes ostentavam, como era moda em Minas, afrescos (o do pescador que ornava o prédio do Carlos, foi-se, conforme verifiquei em romaria de saudade feita com Ângelo Osvaldo a 16 de dezembro de 1976). Esse alpendre dava para as portas de serventia do domicílio e à direita, para a do quarto independente habitado pelo poeta. Em cima deste quarto, telhado de duas águas fazendo chalé, simétrico ao do lado oposto do imóvel. Os dois, ligados pela cobertura da parte central. Tudo isto desapareceu sendo substituído pela desgraciosa lage de concreto que deu ao edifício que era gentil, aspecto de caixote.

Preocupado em não ser repetitivo, o autor vai buscar para a palavra casa elementos que possam substituí-la numa rede de associações de significado que as conectam, sem prejuízo de significação. O termo identificador, ou seja, o mais geral, encabeça a listagem e a série sinonímica vai sendo distribuída, observando-se a peculiaridade de cada elemento no seu ajustamento ao contexto, o que vem comprovar a afirmação de Martins (1989:107): Admiramos o ajuste vocabular de um texto, mas não temos idéia da luta que o autor travou com as palavras para chegar ao bom resultado.

Na ficha de número 81 há uma relação apresentada em três colunas contendo adjetivos que buscam qualificar o sentido dramático da poesia de Drummond:

Pungente Lírico Desencanto

Teatral Satírico Cólera

Suspense Perdurável Épico

Cinematográfica Duradoura Pânico

Humour Tensão Verbal Chapliniana

Sarcasmo Hermetismo Síntese

Amargura Liberdade Medida

Doçura Indagação diante do insondável Provocante

Sincopada Provocativa Seriedade

Na ficha há um total de 27 termos caracterizadores da poesia de Drummond. O autor emprega 24, também na forma de três colunas no texto publicado que se encontra na página 174 da edição aqui em estudo. Nas colunas citadas, as palavras aparecem em caixa alta, algumas alteradas para adjetivos como foi o caso de humour transformada em humourística, conservando o traço da forma francesa. O texto resultante foi o que segue: Nasceram com suas produções mais remotas sua indagação diante do insondável, o sentido dramático, o suspense desta poesia

PUNGENTE LÍRICA ÉPICA

TEATRAL DURADOURA MEDIDA

HUMOURÍSTICA PERDURÁVEL PROVOCANTE

SARCÁSTICA HERMÉTICA PROVOCATIVA

AMARGA SATÍRICA PROVOCATÓRIA

SINCOPADA LIBÉRRIMA CHAPLINIANA

SÉRIA DESENCANTADA PANTOMÍMICA

TENSA COLÉRICA ECUMÊNICA

Os aspectos diversos da poesia drummondiana oferecem, aqui, um campo fértil para a exploração rítmica do adjetivo num jogo concertado do material verbal. A distribuição gráfica à maneira de versos, remete à produção intelectual do autor que a adjetivação múltipla procura abarcar. O adjetivo representa, aqui, o índice mais sensível das reações intelectuais e emocionais de Pedro Nava ante as coisas e os fatos, donde se infere a sua particular avaliação da obra do poeta. Da fusão das funções, de um lado conceitual e de outro musical e rítmica, isto é, afetiva, nasce esta mistura de encantamento intelectivo e sensorial em que o ato criador é pensado.

Dois procedimentos básicos são registrados no percurso criativo de Pedro Nava: diálogo entre linguagens e interdependência de diversos códigos. É o que se pode observar, por exemplo, quando o autor faz uso de caricaturas e delas extrai descrições de um extremo grau de acuidade. Poesia se transforma em texto que por sua vez se transforma em uma planta da casa de Drummond. Desenhos transformam-se em textos, da mesma forma como pinturas sugerem imagens aproveitadas pelo autor. São seleções e combinações gerando transformações e traduções. Dessa forma, pode-se constatar que a criação não surge do nada. Ela se baseia em dados preexistentes que, manipulados pela mão do escritor, assumem um novo formato dependendo dos objetivos que este tem em vista. Segundo suas próprias palavras:

Os fatos da realidade são como pedra, tijolo - argamassados, virados parede, casa, pelo saibro, pela cal, pelo reboco da verossimilhança - manipulados pela imaginação criadora (...). Só há dignidade na recriação. O resto é relatório (...). (B.C. p. 288)

A pesquisa dos processos lingüísticos e dos recursos que o autor seleciona entre aqueles que se oferecem a uma opção possível, se não nos revela os segredos da obra permite-nos, ao menos, uma maior aproximação de seu processo criativo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. Trad. Roberto Figurelli. 3. ed. São Paulo: Perspectiva., 1998.

Gênios da Pintura: góticos e renascentistas. São Paulo : Abril Cultural, 1980.

MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística: a expressividade na língua portuguesa. São Paulo : T. A. Queiroz; Edusp, 1989.

NAVA, Pedro. Balão cativo: memórias 2. 4. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1986.

------. Beira-Mar: memórias 4ª 2. ed. Rio de Janeiro : José Olympio, 1979.

SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo : FAPESP : Annablume, 1998.