RELEVÂNCIA DISCURSIVA EM SAMBAS DE ENREDO
Paulo Monteiro Soares (UFF)
Introdução
Este trabalho tem por objetivo divulgar os resultados obtidos na pesquisa desenvolvida para a dissertação de Mestrado em Letras da UFF (área de concentração: Língua Portuguesa), intitulada Relevância discursiva em sambas de enredo do carnaval carioca dos anos 90 (defendida em 13 de dezembro de 2000).
A pesquisa, realizada sob orientação da Profa Mariângela Rios de Oliveira, procurou refinar as categorias (de relevância discursiva) figura (o essencial, o principal, o central) e fundo (o acessório, o detalhe, o secundário), determinadas primeiramente por Hopper (1979) e Silveira (1990, 1997). Foram aplicados, então, traços caracterizadores do plano de figura de narrativas prototípicas (orais e/ou escritas) a um tipo de uso lingüístico pouco observado em estudos funcionalistas: o samba de enredo.
O samba de enredo, definido por Tinhorão (1986) como poema musical de caráter narrativo-descritivo e laudatório em relação a motivos nacionais, foi selecionado em função de sua relevância no tocante à cultura brasileira, principalmente a do Rio de Janeiro. Além disso, tal tipo textual chamou a nossa atenção por constituir-se como um uso peculiar do sistema lingüístico, ou seja, consideramos o samba de enredo como um poema feito para ser cantado por milhares de pessoas, durante cerca de 80 minutos, ao longo da Avenida Marquês de Sapucaí.
Devemos salientar o destaque recebido pelas escolas de samba do Grupo Especial do Rio de Janeiro nos âmbitos nacional e internacional, tanto por parte da mídia (televisão, rádio, jornais, revistas) como das camadas socialmente privilegiadas nas últimas décadas. O samba de enredo vem despertando o interesse de diversos pesquisadores da cultura popular: Valença (1983, 1996), Cabral (1996), Longhi (1997) e Augras (1998), entre outros.
Selecionamos os sambas dos anos 90 (1990 a 1999) por este ser um período recente da trajetória de escolas de samba do Rio de Janeiro, dentre as quais podemos citar Estação Primeira de Mangueira, Portela, Beija-Flor de Nilópolis, Acadêmicos do Salgueiro, Unidos do Viradouro, Estácio de Sá, Imperatriz Leopoldinense, Império Serrano, Mocidade Independente de Padre Miguel, União da Ilha do Governador, Unidos de Vila Isabel e outras.
Tendo por base os pressupostos do Funcionalismo norte-americano (Givón, 1995; Hopper, 1979; Hopper & Thompson, 1980; Sweetser, 1990; Lakoff & Turner, 1989; Naro & Votre, 1996; Martelotta et alii, 1996; Neves, 1997; Abraçado et alii, 1997; Votre et alii, 1998), analisamos a estruturação informacional (figura e fundo) ao longo de 150 letras de sambas de enredo do período citado. Assim, a pesquisa teve como foco / eixo central a compreensão dos planos de narratividade e / ou não-narratividade de um texto a princípio voltado para o ato de se relatar uma história, em tom de homenagem, a respeito de seres humanos ou não, personalidades históricas, locais brasileiros ou estrangeiros e até dados altamente abstratos (como o azul, a loucura, a estrela, entre outros).
Aplicação dos parâmetros de relevância
A partir da coleta dos dados e da organização do corpus, efetuamos a aplicação dos parâmetros de figuricidade propostos por Hopper & Thompson (1980) e refinados por Silveira (1990) aos sambas de enredo A (mais narrativo), B (não-narrativo) e AB (com trechos narrativos e não-narrativos).
Os traços de figuricidade, verificados de forma qualitativa, foram os seguintes: seqüencialidade, identidade do sujeito, foco não-marcado, dinamicidade, modo realis, aspecto télico, verbos perfectivos, agentividade, tópicos humanos, afirmatividade, punctualidade.
Após a testagem percentual da freqüência dos parâmetros citados, fizemos as seguintes considerações:
1.1. Identidade do sujeito, foco não marcado e afirmatividade foram descartados na configuração do plano de figura do corpus analisado por serem dados inerentes ao discurso;
1.2. Agentividade e tópicos humanos, por apresentarem praticamente o mesmo nível de freqüência (65% em média) em todos os tipos de sambas de enredo, tornaram-se pouco relevantes no tocante à distribuição das informações;
1.3. Os traços seqüencialidade, dinamicidade, modo realis, aspecto télico, verbos perfectivos e punctualidade, por terem uma freqüência acima de 80% em trechos de cunho mais narrativo, caracterizam o plano de figura dos tipos A e AB;
1.4. Os traços atemporalidade, estaticidade, modo irrealis, aspecto durativo, verbos imperfectivos e não-punctualidade aparecem como caracterizadores do plano de fundo do tipo A e da figura do tipo B (não-narrativo);
1.5. O tipo AB, por ser resultante da mescla dos planos de figura dos tipos A e B, conjuga ao mesmo tempo os traços mencionados e propostos nesta pesquisa;
1.6. A iconicidade (relação entre função > forma) se manifesta nos tipos A, B e AB: o tipo A espelha a idéia de veiculação de fatos em seqüência cronológica por ser mais próximo da narrativa prototípica; o tipo B veicula idéias abstratas, estáticas e atemporais por fazer geralmente uma exaltação exacerbada de referentes abstratos ou concretos-inanimados; o tipo AB, ao fundir os planos de figura de A e B, apresenta elementos concretos e / ou abstratos (por exemplo, a manga no samba da Estação Primeira de Mangueira de 1993) com o provável intuito de contar a trajetória do tema do enredo e exaltá-lo em seguida, através de descrições e comentários. A seguir, apresentamos o samba de enredo mencionado, intitulado Dessa fruta eu como até o caroço (Mangueira, 1993):
Da Índia a manga se originou ô ô Parte narrativa
Floresceu como a poesia
E lá na África encantou
Pôs na boca um gosto de alegria
E foi a primeira vez que o colono português
No Brasil veio plantar
O fruto macio seduziu meu Rio
Chegou pra ficar...
Sente, oh! Linda lua
O aroma que flutua
E que me faz sonhar
Tem manga rosa Parte temática
Eu vou provar
Cheiro e magia
Bailam no ar
Entre tantos tipos de Mangueira
Há uma especial...
Na estação Primeira
Ela simboliza o samba
É a união de gente bamba
Onde desabrocham tantas flores
E hoje linda... te vejo mais bela...
Nessa passarela você explode coração
Mangueira... estou tão feliz!
É verde-rosa, é verde-rosa a minha emoção!
Seja a fruta brasileira
Da Mangueira esse colosso
Dessa fruta eu como até o caroço
1.7. Os trechos narrativos traduzem ações acabadas e os temáticos, ações (e / ou estados) inacabados / em processo;
1.8. Na parte narrativa, predominam verbos no pretérito perfeito do indicativo; na parte temática, privilegiam-se os verbos no presente do indicativo (com a noção apresentativa, sobretudo), futuro do presente do indicativo (hipóteses em relação ao destino do assunto do enredo), presente do subjuntivo (também hipotético) e imperativo afirmativo (principalmente no sentido de convidar a platéia e os componentes da escola em desfile a vivenciarem efetivamente o enredo tratado).
Proposta de tipologia de sambas de enredo
Em sambas de enredo, verificamos a tendência à manifestação de traços-figura num determinado gradiente. O continuum de relevância discursiva pode ser proposto a partir do momento em que constatamos a escalaridade dos parâmetros de figuricidade testados.
Os sambas de enredo narrativos (A), por estarem mais próximos das narrativas prototípicas, vêm em primeiro lugar na escala proposta. Em seguida, aparecem os sambas híbridos (AB); por último, os temáticos (B), que se afastam consideravelmente do eixo central de prototipicidade. O continuum de relevância dos anos 90 obedece ao esquema a seguir:
Narrativos > Híbridos > Temáticos
+ prototípico - prototípico
- metafórico + metafórico
Na escala proposta, podemos observar uma alteração dos planos de figura e a manifestação da metáfora. Por serem mais próximos do ciclo central, os sambas narrativos possuem menor incidência do fenômeno de metaforização da linguagem do que os temáticos. Relacionando iconicidade com metáfora e relevância, verificamos que existem planos de figura e fundo distintos em função do vínculo com o mundo real e o referente de cada enredo: no samba de caráter temático, os enredos são mais abstratos, por isso há uso excessivo de metáfora; no samba narrativo, notamos menor quantidade de metáfora pelo fato de se fazer referência a relatos (e não a descrições / comentários) de seres geralmente humanos e / ou concretos, obedecendo-se a uma seqüência cronológica. Nos sambas analisados, foi atestada, então, a ocorrência de deslizamento semântico (ou transferência de domínio conceptual, conceito apontado por Sweetser em 1990) no corpo dos textos em graus escalares.
Referências bibliográficas
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